A Montanha Mágica
Capítulo VI
“Operationes spirituales”
.
Ferge observou que, sem menosprezar a pêra e a atividade silenciosa, não se inventara
ainda nenhuma tortura mais infame do que a apalpação da pleura. Nem naqueles tempos
poderiam ter imaginado coisa pior.
– Bem, fizeram isso para curá-lo – objetou Settembrini.
– A alma obstinada e a justiça ofendida – argumentou Naphta – justificam igualmente
uma supressão passageira da misericórdia. Além disso, era a tortura um produto do progresso
nacional.
O italiano duvidou de que Naphta estivesse em seu juízo perfeito.
Ah, sim, não divagava. O Sr. Settembrini era apenas um beletrista e, evidentemente, não
estava familiarizado com a história do processo na Idade Média. Esta era de fato
progressivamente racionalista, no sentido de ser Deus, aos poucos, eliminado da jurisprudência,
em prol de ponderações baseadas na razão. Foi abolido o ordálio, porque haviam notado que o
mais forte vencia, ainda que a justiça não se achasse a seu lado. Pessoas da mentalidade do Sr.
Settembrini, céticas e críticas, tinham feito essa observação e conseguido a substituição do antigo
e ingênuo processo penal pela Inquisição, que já não se fiava na intervenção de Deus, senão que
se empenhava em arrancar ao réu a confissão da verdade. Nenhuma condenação sem confissão!
Que consultassem a gente do povo: esse instinto estava profundamente arraigado. Por completa
que fosse a cadeia das provas – a condenação era considerada injusta enquanto faltasse a
confissão. Como obtê-la? Como descobrir a verdade, além dos meros indícios, além da simples
suspeita? Como saber o que escondiam o coração e o cérebro de quem dissimulava a verdade, de
quem se recusava a revelá-la? Quando o espírito se mostrava recalcitrante, não existia outro
recurso senão o de apelar ao corpo, que era mais acessível. A tortura, como veículo da confissão
indispensável, era imposta pela razão. Mas quem reclamara e introduzira o processo baseado na
confissão era o Sr. Settembrini, e por conseguinte cabia-lhe também a responsabilidade pela
tortura.
O humanista pediu aos demais que não acreditassem em nada disso. Tratava-se de
gracejos diabólicos. Se a teoria do Sr. Naphta fosse certa, se realmente a razão tivesse inventado
aquela atrocidade, isso demonstraria, quando muito, o quanto necessitava ser escorada e
esclarecida, e quão poucos motivos tinham os adoradores do instinto natural para recear que um
dia as coisas se passassem na terra de um modo excessivamente razoável. No entanto, não havia
dúvida de que o seu interlocutor se equivocara. Aquela monstruosidade jurídica não podia ser
derivada da razão, porquanto os seus alicerces jaziam na crença no inferno. Que eles lançassem
um olhar aos museus e às câmaras de tortura. Isso bastava para perceber que aqueles métodos de
beliscar, esticar, tostar e apertar com parafusos manifestamente haviam brotado de uma
imaginação pueril e obcecada, do desejo de imitar piedosamente o que acontecia nos lugares do
castigo eterno, lá no além. Ainda se tencionara fazer, dessa forma, o bem do malfeitor. Supusera
se que a sua própria alma sofredora lutava pela confissão, e que só a carne, como princípio do
mal, se opunha a essa boa vontade. De maneira que se pensara prestar um serviço caridoso ao
subjugar a carne por meio de tormentos. Loucura de ascetas!...
Naphta quis saber se os antigos romanos tinham sofrido da mesma loucura.
– Os romanos? Ma che!
No entanto, também eles costumavam empregar a tortura como elemento processual.
Um impasse lógico... Hans Castorp procurou encontrar uma saída, trazendo à baila o
problema da pena de morte, por sua própria iniciativa, como se lhe competisse imprimir outro
rumo a uma discussão dessas. A tortura estava abolida, se bem que os juizes de instrução ainda
usassem uma técnica parecida para amolecer os acusados. Mas a pena de morte parecia imortal,
era indispensável. Os povos mais civilizados conservavam-na. Os franceses tinham feito péssimas
experiências com o seu sistema de deportações. Simplesmente não havia o que fazer, na prática,
com certas criaturas antropoides, a não ser cortar-lhes a cabeça.
Não se tratava aí de “criaturas antropoides” – corrigiu-o o italiano –, mas de homens
como o engenheiro e como o próprio Settembrini. Apenas eram fracos de vontade, vítimas de
uma sociedade mal organizada. E falou de um grande criminoso, várias vezes assassino,
pertencente àquela espécie que os promotores públicos, nas suas acusações, costumam qualificar
de “bestial”, ou de “feras com cara de homem”. Esse homem cobrira de versos as paredes da sua
cela, e os seus versos absolutamente não eram maus, eram mesmo muito melhores do que os que
os promotores fabricam de vez em quando.
Isso lançava uma luz singular sobre a arte, segundo observou Naphta. Mas fora disso não
havia nada de curioso nesse fato.
Hans Castorp havia esperado que Naphta advogasse a conservação do suplício. Opinou
que este talvez fosse tão revolucionário quanto o Sr. Settembrini, mas o era no sentido
conservador, como revolucionário do conservantismo.
– Ora – sorriu o Sr. Settembrini, muito senhor de si —, o mundo passará por cima dessa
revolução do retrocesso anti-humano. O Sr. Naphta prefere difamar a arte a admitir que ela
confere a dignidade de homem até ao indivíduo mais depravado. Com um fanatismo desses não
se pode conquistar a juventude ávida de luz. Acaba de ser fundada uma liga internacional com o
objetivo da abolição da pena de morte em todos os países civilizados. Eu tenho a honra de fazer
parte dela. Ainda não foi escolhido o lugar onde se realizará o seu primeiro congresso, mas a
humanidade pode ter confiança em que os oradores que ali fizerem ouvir a sua voz hão de surgir
munidos de argumentos. – E o humanista enumerou esses argumentos, entre eles sobretudo o da
possibilidade sempre existente do erro judiciário, do “assassínio legal”, e o outro de que nunca se
devia abandonar a esperança de ver o criminoso emendar-se. Citou até a sentença: “Minha é a
vingança”, e também explicou que o Estado, desde que mais se empenhasse no aperfeiçoamento
do homem do que na violência, não tinha direito de retribuir o mal pelo mal. Rejeitou a ideia da
“punição”, após ter combatido a da “culpa”, sobre a base de um determinismo científico.
A seguir, a “juventude ávida de luz” teve que presenciar como Naphta torcia o pescoço a
cada um desses argumentos. Escarneceu da relutância de derramar sangue e do respeito à vida
manifestados pelo filantropo. Afirmou que tal culto da vida individual provinha das épocas mais
triviais da burguesia armada de guarda-chuva. Mas bastava que estivesse em jogo uma única ideia
que ultrapassasse a da “segurança”, qualquer coisa superpessoal, superindividual – o que era o
único estado digno do homem e portanto o estado normal, num sentido superior – e
imediatamente a vida individual não só era sacrificada, sem titubear, à ideia superior, mas também
oferecida espontaneamente pelo próprio indivíduo. A filantropia do senhor seu antagonista,
acrescentou Naphta, esforçava-se por privar a vida de todos os seus acentos sombrios e
mortalmente sérios; empenhava-se na castração da vida, inclusive por meio do determinismo da
sua chamada ciência. Mas a verdade era que a ideia da culpa não podia ser abolida pelo
determinismo, e, pelo contrário, tornava-se ainda mais grave e mais formidável graças a ele.
– Essa não é má! Será que o senhor exige que a desgraçada vítima da sociedade se sinta
realmente culpada e se encaminhe ao cadafalso por convicção?
– Sim, senhor. O criminoso acha-se compenetrado da sua culpa como de si próprio. É tal
como é e não quer ser diferente, e justamente nisso reside a culpa. – O Sr. Naphta transportou
então a culpa e o mérito da esfera empírica para a esfera metafísica. Verdade era que no fazer e
no agir reinava a determinação; ali não havia liberdade, mas esta existia onde se tratava do ser. O
homem era assim como queria ser e continuaria a querê-lo até o seu extermínio. Se assassinava,
porque gostava disso “mais do que da vida”, não pagava um preço excessivo dando essa vida.
Que morresse, já que gozara a mais profunda volúpia.
– A mais profunda volúpia?
– Sim, senhor, a mais profunda de todas.
O outro crispou os lábios. Hans Castorp pigarreou de leve. Wehsal deixou cair o maxilar,
enquanto o Sr. Ferge dava um suspiro. Settembrini observou com finura:
– Está se vendo que há uma maneira de generalizar que dá ao assunto um matiz pessoal.
O senhor teria vontade de matar?
– Isso não é da sua conta. Mas se o tivesse feito, garanto-lhe que me riria na cara dos
ignorantes humanitários que se dispusessem a alimentar-me de lentilhas até o meu óbito natural.
Não há nenhum sentido no fato de o assassino sobreviver ao assassinado. Esses dois, sem a
presença de mais ninguém, tão sozinhos como jamais o são duas criaturas a não ser numa
circunstância análoga, participam, um agindo e o outro sofrendo, de um segredo que os une para
sempre. Seus destinos são inseparáveis.
Settembrini confessou displicentemente que carecia do órgão capaz de compreender tal
misticismo da morte e do homicídio, e que não lamentava essa falta. Não tinha nada que objetar
aos talentos religiosos do Sr. Naphta – indiscutivelmente superiores aos seus próprios —, mas
fazia questão de declarar que não os invejava. Uma invencível necessidade de asseio mantinha-o
distante de uma esfera onde aquela reverência diante do infortúnio, havia pouco mencionada pela
juventude cúpida de experiências, reinava evidentemente não apenas no sentido físico, mas
também no sentido espiritual; numa palavra: uma esfera onde a virtude, a razão e a saúde de nada
valiam, ao passo que o vício e a enfermidade desfrutavam da mais alta estima.
Naphta confirmou que de fato a virtude e a saúde não constituíam estados religiosos. – É
de grande importância – acrescentou – deixar perfeitamente claro que a religião nada tem que ver
com a razão e com a ética, uma vez que nada tem que ver com a vida. Esta se alicerça em
condições e bases que pertencem em parte à teoria do conhecimento, em parte ao domínio da
moral. As primeiras chamam-se tempo, espaço, causalidade; as segundas, moralidade e razão.
Todas essas coisas não são apenas estranhas e indiferentes à religião, mas até mesmo lhe são
hostilmente antagônicas; pois precisamente elas é que formam a vida, a pretensa saúde, isto é, a
maneira de ser inteiramente filisteia e o espírito cem por cento burguês, cuja antítese absoluta e
genial é justamente o mundo religioso. Aliás, não quero negar que a esfera da vida possa produzir
o gênio. Existe um modo de viver burguês de inegável probidade monumental, uma majestade de
filisteu, que se pode julgar digna de reverência, desde que não se esqueça que ela, assim como se
planta diante de nós, na sua dignidade quadrada, com as mãos nas costas e o peito saliente,
representa a irreligiosidade personificada.
Hans Castorp levantou o dedo indicador como um escolar. Disse que não queria
melindrar nenhum dos dois partidos. Mas uma vez que indubitavelmente estavam falando de
progresso, do progresso da humanidade, e por conseguinte de política, da república da eloquência
e da civilização do Ocidente culto, gostaria de expressar a opinião de que a diferença, ou, se o Sr.
Naphta insistia nesse ponto, o antagonismo entre a vida e a religião tinha a sua origem no que
existia entre o tempo e a eternidade. Pois o progresso realizava-se exclusivamente no tempo e
não tinha lugar na eternidade, dando-se o mesmo com a política e a eloquência. Ali, as pessoas
apoiavam, por assim dizer, a cabeça no regaço de Deus e fechavam os olhos. E esta era, numa
formação confusa, a diferença entre religião e moralidade.
Settembrini replicou que a sua maneira ingênua de exprimir-se era menos inquietante do
que seu medo de ferir sentimentos alheios e sua tendência para fazer concessões ao Diabo.
Ora, no que tocava ao Diabo, o Sr. Settembrini, e ele, Hans Castorp, já haviam discutido
fazia muito tempo. “O Satana, o ribellione!” Restava saber a que diabo acabava de fazer concessões.
Àquele da rebelião, da crítica e do trabalho, ou ao outro? Que impasse perigosíssimo: um diabo à
direita, um diabo à esquerda. Como, em nome do Diabo, era possível escapar a ambos?
– Dessa forma – objetou Naphta – não se apresentava de maneira própria a situação, tal
como o Sr. Settembrini desejava vê-la. O essencial, na sua concepção do universo, era que fazia
de Deus e de Satã duas pessoas ou dois princípios diversos, colocando a vida entre eles, como
objeto de disputa, aliás em conformidade completa com as idéias da Idade Média. Em realidade,
porém, Deus e o Diabo eram uma e a mesma coisa, e ambos se opunham à vida, ao modo de
viver burguês, à ética, à razão, à virtude, devido ao princípio religioso que juntos representavam.
– Que embrulhada asquerosa! Che guazzabuglio próprio stomachevole! – explodiu Settembrini. – O bem e o mal, a santidade e a malvadez, tudo misturado! Sem discernimento, sem vontade!
Sem a capacidade de reprovar o que era reprovável! – Sabia o Sr. Naphta o que estava negando,
ao confundir, em presença da juventude, Deus e Satã, e ao rejeitar o princípio ético em nome
dessa execranda dualidade? Negava o valor, negava toda escala de valores – era espantoso dizê-lo!
Bem, nesse caso não existiam o bem e o mal, mas apenas o universo sem ordem moral.
Tampouco existia o indivíduo com a sua dignidade crítica, mas somente a coletividade absorvente
e niveladora de tudo, e o ocaso místico no seu seio. O indivíduo...
Que coisa deliciosa ver o Sr. Settembrini tornar a considerar-se um individualista! Mas
para sê-lo. era preciso conhecer a diferença entre a moralidade e a bem-aventurança, que esse
cavalheiro iluminista e monista ignorava redondamente. Numa esfera onde se concebia a vida, de
um modo estúpido, como tendo a sua finalidade em si própria, e não se procurava um fim e um
objetivo que a ultrapassassem, reinava uma ética social, uma ética de espécie, uma moralidade de
vertebrado, mas nada de individualismo. Este prosperava exclusivamente no terreno do religioso
e do místico, no pretenso “universo sem ordem moral”. Que era, afinal, e que se propunha fazer
a tal moralidade do Sr. Settembrini? Achava-se ligada à vida e por isso não ia além do útil. Era,
portanto, despida de heroísmo num grau deveras lamentável. Servia para se chegar a ser velho,
feliz, rico, sadio e nada mais. E essa mentalidade filisteia, baseada na razão e no trabalho, era para
o Sr. Settembrini uma ética! Quanto a ele, Naphta, tomava a liberdade de qualificá-la de mísero
modo de viver burguês. Settembrini exigiu do seu interlocutor que se moderasse. Mas a sua
própria voz vibrava de paixão quando declarou ser insuportável que o Sr. Naphta falasse sem
cessar do modo de viver burguês, Deus sabia por quê, num tom de aristocracia desdenhoso,
como se o contrário – e ninguém ignorava o que era o contrário de viver – fosse qualquer coisa
mais distinta.
Novos chavões, novas deixas! Dessa vez tinham chegado ao problema da distinção e à
questão da aristocracia. Hans Castorp, rubro e exausto pelo frio e pela multiplicidade de assuntos,
além disso inseguro quanto à inteligibilidade ou ao atrevimento febril da sua própria linguagem,
confessou com os lábios quase inertes que sempre visionara a morte trajando uma golilha
engomada à moda espanhola, ou pelo menos um uniforme um tanto menos solene que incluía
um colarinho alto, ao passo que a vida usava um simples colarinho moderno... Mas ele mesmo,
assustando-se diante dos devaneios ébrios e da inconveniência das suas palavras, apressou-se a
afirmar que não era precisamente isso o que tencionava dizer. Queria, no entanto, saber se não
existiam pessoas, certas criaturas humanas, que era impossível imaginar como mortas, justamente
por serem por demais ordinárias. Isso significava que pareciam a tal ponto feitas para a vida que
davam a impressão de ser incapazes de morrer e indignas de receber a consagração da morte.
O Sr. Settembrini expressou a esperança de que Hans Castorp dissesse essas coisas
somente para encontrar oposição. O jovem sempre o acharia disposto a socorrê-lo quando se
tratasse da defesa espiritual contra tais tentações. “Feito para a vida”, dissera ele, empregando
essas palavras num sentido pejorativo. “Digno da vida!” Eis o termo de que convinha servir-se
em seu lugar, e os conceitos logo se encadeariam em verdadeira e perfeita ordem. “Digno de
viver” essa ideia conduzia imediatamente, por meio de uma associação fácil e natural, à outra,
“digno de amor”, ideia tão intimamente ligada à primeira, que se podia dizer que só era digno de
verdadeiro amor o que era verdadeiramente digno de viver. O conjunto dessas duas qualidades –
digno de viver e digno de amor – exprimia o que se chamava distinção.
Hans Castorp achou essas deduções encantadoras e sobremodo interessantes. Disse que
o Sr. Settembrini o conquistara por completo pela sua teoria plástica. Que se argumentasse como
se quisesse – e havia certos argumentos, como, por exemplo, aquele que afirmava ser a doença
uma forma de existência superior e ter por isso algo de solene –, mas uma coisa era certa, a saber:
que a enfermidade acentuava em excesso o elemento corporal, que reduzia e restringia o homem
inteiramente ao corpo e prejudicava dessa forma a sua dignidade a ponto de aniquilá-la, pelo fato
de nos rebaixar ao estado de mera carne. A doença era portanto inumana.
– Pelo contrário, a doença é sumamente humana – retrucou Naphta em seguida. – E ser
homem é ser doente. Em realidade, o homem é essencialmente um enfermo. O fato de ele estar
doente é o que o torna homem, e aqueles que desejam curá-lo e induzi-lo a fazer as pazes com a
natureza, a “voltar à natureza”, embora nunca tivesse sido natural, toda essa corja de
regeneradores, de paladinos da alimentação crua, de vegetarianos, naturistas e helioterapeutas que
se exibem hoje em dia à guisa de profetas, enfim, todos os adeptos de Rousseau não almejam
outra coisa a não ser desumanizar e embrutecer o homem... Estão falando de humanidade e de
distinção. O homem é um ser nitidamente desprendido da natureza e sente-se no mais alto grau
oposto a ela. O que o distingue de qualquer outra forma de vida orgânica é precisamente o
espírito. Nele, isto é, na doença, baseia-se a dignidade do homem e a sua distinção. Numa
palavra: ele é tanto mais homem quanto mais enfermo, e o gênio da enfermidade é mais humano
do que o da saúde. É estranho ver como alguém que se finge de filantropo fecha os olhos diante
destas verdades fundamentais da humanidade. O Sr. Settembrini preconiza o progresso. Como se
o progresso, se é que existe uma coisa assim, não fosse devido exclusivamente à enfermidade, isto
é, ao gênio, que, por sua vez, nada é senão doença! Como se os homens sadios não tivessem
vivido, em todos os tempos, das conquistas feitas pelos doentes! Houve quem se abismasse
consciente e voluntariamente nas regiões da doença e da loucura, a fim de adquirir para a
humanidade conhecimentos suscetíveis de transformar-se em saúde, depois de serem ganhos pela
insânia, e cuja posse e exploração, depois do sacrifício heróico, já não dependessem da
enfermidade e da demência. Esta era a genuína morte na cruz...
“Ah!”, pensou Hans Castorp. “Vem à tona o jesuíta de idéias próprias, com suas
combinações e sua maneira de interpretar a morte na cruz! Já se vê por que não chegou a ser
padre, joli jésuite à la petite tache humide!” E dirigindo-se, intimamente, a Settembrini, acrescentou:
“Agora, leão, é a sua vez de rugir”. E este se pôs a “rugir”, declarando que tudo quanto Naphta
acabava de sustentar não passava de miragens, rabularias e confusão feita para enganar o mundo. – Diga! – lançou na cara do seu antagonista. – Diga-o sob a sua responsabilidade de educador,
sustente sem rodeios, na presença dessa juventude em formação, que o espírito é enfermidade!
Sim, senhor, é com tais argumentos que os conduzirá ao espírito e lhes inspirará fé nele! E
declare ainda que a doença e a morte são nobres, ao passo que a saúde e a vida são vis, porque
este é o método mais garantido para levar o educando a servir a humanidade! Davvero, è criminoso!
– E qual um cruzado saiu em defesa da distinção inerente à saúde e à vida, essa distinção
que a natureza conferia, e que não precisava preocupar-se quanto ao espírito. Proclamou “a
forma”, à qual Naphta, com altivez, opôs “o logos”. No entanto, aquele que nada queria saber do
logos professava “a razão”, enquanto o paladino do logos defendia “a paixão”. Tudo isso era
confuso. “O objeto”, dizia um, e o outro respondia: “O eu”. Por fim se puseram a falar, um de
“arte” e o outro de “crítica”. Mas sempre voltavam à “natureza” e ao “espírito”, discutindo qual
dos dois era mais nobre e ventilando o “problema aristocrático”. Dessa contenda, entretanto, não
resultou nem clareza nem ordem, nem sequer de caráter dualista e militante. Pois as posições não
somente eram opostas, como também se confundiam. Os adversários, ao invés de se limitarem a
combater-se reciprocamente, amiúde se contradiziam a si próprios. Settembrini muitas vezes dera
vivas retóricos à crítica, e sem embargo punha-se agora a reivindicar as honras
do princípio nobre para o contrário dela, que, segundo ele, era a arte. Em outras ocasiões, Naphta
surgira mais de uma vez como defensor do “instinto natural”, perante Settembrini, que tratara a
natureza de “potência estúpida”, de mero “fato e fado”, diante dos quais a razão e o orgulho do
homem não tinham direito de abdicar. A essa altura dos debates, porém, Naphta colocou-se ao
lado do espírito e da “doença”, porque somente nesse campo se encontravam a distinção e a
humanidade, ao passo que o italiano se arvorou em advogado da natureza e da sua nobreza sadia,
sem pensar em emancipar-se dela. Não menor era a embrulhada no que dizia respeito ao objeto e
ao eu. Nesse ponto, a confusão – que aliás para eles era sempre a mesma – parecia mais
irremediável do que nunca, chegando a um ponto em que absolutamente não se sabia mais qual
dos dois antagonistas era o homem piedoso e qual o livre-pensador. Naphta proibia a
Settembrini, em termos severos, qualificar-se de “individualista”, já que negava a oposição entre
Deus e a natureza, estabelecia como o problema do homem, como o seu conflito interior,
unicamente a contenda entre os interesses individuais e coletivos, e portanto se aferrava a uma
ética burguesa, ligada à vida considerada como, finalidade em si, uma ética desprovida de
heroísmo, que visava ao útil e via a lei moral nos objetivos do Estado; ele, Naphta, por sua vez,
sabia muito bem que o problema interno do homem tinha a sua raiz no antagonismo entre o real
e o transcendental; por isso representava o verdadeiro individualismo, o individualismo místico, e
era em realidade o campeão da liberdade e do “sujeito”. Mas, se era assim – pensou Hans Castorp –, que seria feito então do “anonimato” e da “coletividade”, para salientar, a título de exemplo,
uma única incoerência? Que acontecera com aquelas opiniões precisas que Naphta exteriorizara,
durante o colóquio com o Padre Unterpertinger, quanto à “catolicidade” do filósofo oficial,
Hegel, ao laço íntimo que ligava os conceitos “político” e “católico”, e à categoria do “objetivo”
que formavam juntos? A estadística e a educação – não tinham elas sempre formado o campo
particular das atividades da ordem de Naphta? E que tipo de educação! O Sr. Settembrini,
indiscutivelmente, era um pedagogo diligente, zeloso até as raias do importuno e do maçante;
mas, com respeito à objetividade ascética, desprezadora do eu, os seus princípios nem de longe
podiam arriscar-se a competir com os de Naphta. Mando absoluto! Disciplina de ferro! Coação!
Obediência! O terror! Tudo isso talvez tivesse o seu aspecto honroso, porém levava em
pouquíssima consideração a dignidade crítica do indivíduo. Era o regulamento militar do
prussiano Frederico e do espanhol Loyola, pio e austero até o sangue. Restava apenas uma única
pergunta, a saber, como Naphta chegara a esse sanguinário absoluto, embora confessadamente
não acreditasse em nenhum conhecimento puro e em nenhuma ciência incondicional; numa
palavra: embora não acreditasse na verdade, naquela verdade objetiva, científica, cuja busca
representava para Lodovico Settembrini a lei suprema de toda a moral humana. Nesse ponto, a
piedade e a austeridade estavam ao lado do Sr. Settembrini, ao passo que parecia relaxado e
licencioso o procedimento de Naphta, que subordinava a verdade ao homem e declarava que
verdade era aquilo que mais convinha a este. Não se parecia essa maneira de fazer a verdade
depender dos interesses do homem, com o modo de viver burguês e com a mentalidade
utilitarista dos filisteus? Nisso não se manifestava propriamente aquela objetividade de ferro.
Havia nessas idéias muito mais liberdade e individualismo do que Leo Naphta estaria disposto a
admitir – posto que elas tivessem um sentido “político” semelhante àquele de certa máxima de
Settembrini, segundo a qual a liberdade era a lei do amor ao próximo. Saltava aos olhos que assim
se ligava a liberdade ao homem, da mesma forma como Naphta o fazia com a verdade. Tal
procedimento era decididamente mais ortodoxo do que liberal, mas também essa diferença
ameaçava apagar-se no curso das definições. Ah, esse Sr. Settembrini! Havia boas razões para que
ele fosse literato, sendo neto de um político e filho de um humanista. Magnanimamente
preocupava-se com a crítica e com a beleza da emancipação e dirigia-se cantarolando às mocinhas
que encontrava na rua. Enquanto isso, o pequeno e penetrante Naphta achava-se coibido por
votos severos. E, não obstante, este era quase um devasso, tamanha a sua liberdade de
pensamento, e aquele um puritano, sob certos aspectos. O Sr. Settembrini temia o “espírito
absoluto” e queria a todo o transe identificar o espírito com o progresso democrático. Espantava
se diante da libertinagem religiosa do militar Naphta, que misturava Deus e o Diabo, a santidade
e a malvadez, o gênio e a doença, não reconhecendo nenhuma espécie de escala de valores, de
julgamento racional e de vontade. Quem era, afinal de contas, o livre-pensador e quem o homem
pio? Onde se achava a verdadeira posição, o genuíno estado do homem? Devia ele desfazer-se, de
modo tão libertino quanto ascético, no seio da coletividade absorvente e niveladora de tudo, ou
cumpria-lhe tomar o partido do “indivíduo crítico”, em cujo interior se debatia o conflito entre a
estroinice e a austeridade virtuosa do burguês? Infelizmente, os princípios e os aspectos colidiam
uma e outra vez; havia abundância de contradições íntimas, e era extremamente difícil para a
responsabilidade de um civil não somente chegar a uma decisão em meio às divergências, como
simplesmente manter os elementos da discussão separados numa forma clara e pura. A
dificuldade era tamanha, que parecia tentadora a ideia de atirar-se de cabeça de encontro ao
“universo sem ordem moral” de que falara Naphta. Era a encruzilhada geral, o emaranhamento
completo, a grande confusão, e Hans Castorp acreditava perceber que os adversários se teriam
mostrado menos encarniçados se durante a sua querela essa confusão não lhes houvesse pesado
sobre a alma.
Tinham subido juntos até o Berghof. A seguir, os três pensionistas haviam acompanhado
os externos de volta, até defronte de sua casinha, e ali permaneceram ainda muito tempo de pé
sobre a neve, enquanto Naphta e Settembrini se digladiavam – pedagogicamente, como Hans
Castorp bem sabia, e no intuito de influenciar a formação da juventude ávida de luz. Para o Sr.
Ferge, todos esses assuntos eram por demais elevados, como repetidas vezes deu a entender, e
Wehsal demonstrou pouco interesse desde que haviam deixado de falar de flagelações e torturas.
Hans Castorp, com a cabeça baixa, sulcava a neve com a ponta da bengala e refletia sobre a
grande confusão.
Finalmente separaram-se. Era impossível conservarem-se eternamente de pé, e o colóquio
não tinha limites. Os três pensionistas do Berghof tomaram novamente o rumo do seu domicílio,
e os dois pedagogos rivais tiveram de entrar juntos na sua casinha, um para alcançar a sua cela
forrada de sedas, e o outro para subir ao seu cubículo de humanista, com a papeleira e a garrafa
de água. Hans Castorp, porém, encaminhou-se ao seu compartimento da sacada, com os ouvidos
cheios do tumulto e do estrépito das armas dos dois exércitos que, avançando de Jerusalém e da
Babilônia, sob as dos banderas, haviam-se entrechocado no alvoroço de uma batalha confusa.
continua pág 305...
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Leia também:
Capítulo II
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
“Operationes spirituales”(c)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
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