segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Hannah Arendt - Origens do Totalitarismo: Parte II Imperialismo (2.2 - Unidade Racial como Substituto da Emancipação Nacional)

Origens do Totalitarismo

Hannah Arendt

Parte II 
IMPERIALISMO

Se eu pudesse, anexaria os planetas. 
Cecil Rhodes 

2. O Pensamento Racial Antes do Racismo
     2.2 - Unidade Racial como Substituto da Emancipação Nacional
          A ideologia racista na Alemanha só se desenvolveu após a derrota do velho exército prussiano ante Napoleão. Seu surgimento foi obra dos patriotas prussianos e do romantismo político, e não da nobreza e de seus porta-vozes. Em contraste com o tipo francês de ideologia racista forjada como arma para a guerra civil e para a divisão do país, o pensamento racial dos alemães resultou do esforço de unir o povo contra o domínio estrangeiro. Seus autores não procuraram aliados além das fronteiras: buscaram despertar no povo a consciência de uma origem comum. Isso na verdade excluía a nobreza, por causa das suas relações notoriamente cosmopolitas, embora estas fossem menos acentuadas entre os Junkers prussianos do que entre o resto da nobreza europeia; de qualquer forma, excluía a possibilidade de basear o racismo na classe mais exclusiva do povo.
     A ideologia racista alemã acompanhou as longas e frustradas tentativas de unir os numerosos Estados alemães; permaneceu — pelo menos em seus estágios iniciais — tão intimamente ligada a sentimentos nacionais que se tornou difícil distinguir na Alemanha o mero nacionalismo do racismo declarado. Sentimentos nacionais inofensivos eram expressos em termos que hoje sabemos racistas, de modo que até mesmo os historiadores que identificaram o racismo alemão do século XX com a linguagem peculiar do nacionalismo alemão são levados a confundir o nazismo com o nacionalismo alemão, contribuindo desse modo para que se subestime a extraordinária atração que a propaganda de Hitler exerceu internacionalmente. As peculiares condições do nacionalismo alemão só mudaram após 1870, quando o país se unificou e o racismo alemão, juntamente com o imperialismo alemão, pôde se manifestar integralmente. Desde então, porém, várias características diferentes modificaram o pensamento racista na Alemanha, tornando-o ideologicamente específico.
     Contrariamente ao que ocorreu na França, a nobreza prussiana sentia que os seus interesses estavam estreitamente ligados à posição da monarquia absoluta e, pelo menos desde os tempos de Frederico II, almejava ser reconhecida como legítima representante da nação como um todo. Com exceção do período das reformas prussianas (de 1808 a 1812), a nobreza da Prússia não se assustou com a ascensão da burguesia, nem receou uma coligação entre as classes médias e a casa governante, já que o rei da Prússia era o maior latifundiário do país, permanecendo primus inter pares a despeito dos esforços dos reformadores. Portanto, foi fora da nobreza que surgiu a ideologia da raça que, na Alemanha, transformou-se em arma para os nacionalistas. Desejando a união de todos os povos de língua alemã, eles insistiam na importância da origem étnica (racial) comum. Eram liberais na medida em que se opunham ao domínio exclusivo dos Junkers prussianos. Enquanto essa origem comum era definida pela língua comum, não se podia chamá la de ideologia racial propriamente dita.[17]
     Somente a partir de 1814 essa origem comum passa a ser frequentemente descrita em termos de "parentesco de sangue", de laços familiares, de unidade tribal, de origem pura sem "misturas". Essas definições, que surgem quase simultaneamente nas obras do católico Josef Goerres e de liberais nacionalistas como Ernst Moritz Arndt e F. L. Jahn, comprovam o fracasso das esperanças de despertar verdadeiros sentimentos nacionais no povo alemão por outros meios culturais — como idioma ou história. Por causa dessa impossibilidade de transformar o povo alemão em nação, da ausência de reminiscências históricas comuns e da aparente apatia popular pelo futuro destino comum, nasceu uma exortação nacionalista dirigida a instintos tribais como eventual substituto daquela aparente unidade nacional que constituía, aos olhos de todo mundo, a esplêndida força da nação francesa. A ideia apresentada como doutrina orgânica da história, e segundo a qual "cada raça é um todo separado e completo",[18] foi inventada por homens que necessitavam de definições ideológicas de unidade nacional para substituir o conceito de nacionalidade política (inexistente na Alemanha). Esse nacionalismo frustrado levou Arndt a afirmar que os alemães — os últimos a adquirirem "a unidade orgânica" — tinham pelo menos a sorte de formarem uma raça pura e sem mistura, um "povo genuíno".[19]
     A definição orgânica e naturalista da origem dos povos é uma das principais características das ideologias historicistas alemãs. Não obstante, não constitui ainda o verdadeiro racismo, pois mesmo aqueles que se utilizavam da terminologia racial defendiam com ela o conceito da genuína nacionalidade, que é o princípio da igualdade dos povos. Assim, no mesmo artigo em que compara as leis dos povos com as leis do mundo animal, Jahn insiste em que na genuína e equitativa pluralidade dos povos e em sua completa multitude se encontra a única forma de realização dos anseios da humanidade.[20] E Arndt, que mais tarde expressaria forte simpatia pelos movimentos de libertação nacional dos poloneses e italianos, exclamou: "Maldito aquele que subjugar e dominar povos estrangeiros".[21] Uma vez que os sentimentos nacionais alemães não haviam resultado do genuíno desenvolvimento nacional, mas foram simples reações contra a ocupação estrangeira,[22] as doutrinas nacionais tinham um caráter negativo peculiar, destinavam-se a erguer um muro em torno do povo, a atuar como substitutos de fronteiras que não podiam ser definidas com clareza pela geografia ou pela história.
     Enquanto a forma primitiva da ideologia racista da aristocracia francesa servia como instrumento de divisão interna e como arma para a guerra civil, a forma inicial da doutrina racista alemã criava-se como arma de unidade interna, vindo a transformar-se, depois, em arma para a guerra entre as nações. Assim como o declínio da nobreza francesa como classe importante na França teria anulado essa arma se os inimigos da Terceira República não a houvessem ressuscitado, também a realização da unidade nacional alemã teria roubado o significado da doutrina orgânica da história, se os maquinadores do imperialismo moderno não a houvessem restaurado, com o fito de atrair o povo e esconder a realidade de seus interesses sob a respeitável máscara do nacionalismo. O mesmo não se pode dizer, porém, de outra fonte do racismo alemão que, embora aparentemente afastada do âmbito político, teve influência bem mais forte sobre as ideologias posteriores.
     O romantismo político tem sido acusado de haver gerado a ideologia racista, como foi e sempre poderia vir a ser acusado de inventar qualquer outra opinião irresponsável, desde que se queira. Adam Mueller e Friedrich Schlegel representam a frivolidade geral do pensamento moderno, onde praticamente qualquer opinião pode entrar em voga durante certo tempo. Nenhuma verdade, nenhum evento histórico, nenhuma idéia política estava a salvo da mania, que a tudo podia atingir e a tudo destroçar, desde que fossem novas e originais as maneiras de emitir novas e fascinantes opiniões. "O mundo deve ser romantizado", disse Novalis, querendo "conferir alto sentido ao que era comum, aparência misteriosa ao que era ordinário e dignidade de incógnita ao que era conhecido".[23] Um dos objetos romantizados — o povo — podia, de um momento para o outro, transformar-se em Estado, em família, em nobreza ou em qualquer outro elemento que — pelo menos no começo — passasse pela cabeça de um desses intelectuais ou que, mais tarde — quando, já maduros, haviam aprendido a realidade do pão de cada dia —, lhe fosse encomendado por algum freguês pagante.[24] É, portanto, quase impossível estudar-se a evolução de qualquer das opiniões que competiam livremente entre si, e das quais o século XIX é tão assombrosamente rico, sem que se analise o romantismo em sua forma alemã.
     O que esses primeiros intelectuais modernos realmente prepararam não foi tanto a evolução de qualquer opinião particular quanto a mentalidade genérica dos modernos eruditos alemães; estes já provaram mais de uma vez que não existe ideologia a que não se submetam de bom grado, quando está em jogo a única realidade que nem mesmo um romântico poderia dar-se ao luxo de ignorar: a realidade das posições pessoais. Para esse tipo de conduta, o romantismo serviu de excelente pretexto em sua ilimitada idolatria da "personalidade" do indivíduo, cuja própria arbitrariedade era prova de gênio. Qualquer coisa que servisse à assim chamada produtividade do indivíduo, ou seja, ao jogo totalmente arbitrário de suas "ideias", podia tornar-se o centro de todo um modo de encarar a vida e o mundo. Esse cinismo peculiar ao culto romântico da personalidade tornou possíveis certas atitudes modernas entre os intelectuais, atitudes estas razoavelmente bem representadas por Mussolini, um dos últimos herdeiros desse movimento, quando ele dizia ser, ao mesmo tempo, "aristocrata e democrata, revolucionário e reacionário, proletário e antiproletário, pacifista e antipacifista". O implacável individualismo do romantismo nunca significou algo mais sério do que isto: "todos têm o direito de criar a sua própria ideologia". O que havia de novo na experiência de Mussolini era a "tentativa de pô-la em prática com toda a energia possível".[25]
     Devido a esse "relativismo", a contribuição direta do romantismo para a evolução do sentimento racista foi quase nula. Do jogo anárquico que a qualquer instante permite a qualquer um ter pelo menos uma opinião pessoal e arbitrária, decorre quase naturalmente o direito à formulação e divulgação de qualquer opinião concebível. Muito mais característica do que esse caos era a crença fundamental na personalidade como fim último. Na Alemanha, onde o conflito entre a nobreza e a classe média em ascensão nunca foi travado no campo político, o culto da personalidade tornou-se o único meio de alcançar pelo menos certa forma de emancipação social. A classe governante do país mostrava tão abertamente seu tradicional desprezo pelo comércio e seu desgosto por associações com os comerciantes, a despeito da riqueza e da importância crescentes desses últimos, que não lhes era fácil encontrar um meio de atingir certa dignidade. O clássico Bildungsroman alemão, Wilhelm Meister, no qual o herói da classe média é educado por nobres e atores, porque o burguês de sua própria esfera social é desprovido de "personalidade", prova suficientemente a irremediabilidade da situação então reinante para a classe média.
     pertenciam, travaram uma batalha amarga e, infelizmente, muito bem-sucedida em prol de sua própria posição social. Até mesmo aqueles que haviam escrito em defesa da nobreza sentiam que os seus próprios interesses estavam em jogo quando se tratava da ascensão social. Para poderem competir com direitos e qualidades de nascimento, formularam o novo conceito de "personalidade inata", que iria obter a aprovação geral da sociedade burguesa. A "personalidade inata", exatamente como o título de herdeiro de uma família antiga, passou a decorrer do nascimento, sem ser adquirida pelo mérito. Assim como a falta de história comum para a formação da nação havia sido artificialmente sanada pela implantação do conceito naturalista de desenvolvimento orgânico, também na esfera social supunha-se que a natureza proporcionava ao indivíduo o título que a realidade política lhe havia negado. Cedo, escritores liberais passaram a vangloriar-se de serem os "verdadeiros nobres", em contraposição aos surrados títulos de barão e quejandos, que afinal podiam ser concedidos e cancelados, e afirmavam, implicitamente, que seus privilégios naturais — a força ou o gênio — não podiam ser atribuídos a qualquer feito humano.[26]
     Logo ficou patente o aspecto discriminatório desse novo conceito social. Durante o período de antissemitismo social, que introduziu e preparou a descoberta do ódio aos judeus como arma política, foi o conceito da falta da "personalidade inata" — ou da inata falta de tato, da inata falta de produtividade, da inata vocação para o comércio etc. — que distinguiu a conduta do comerciante judeu da dos seus colegas em geral. Em sua febril tentativa de invocar algum orgulho próprio contra a arrogância de classe dos Junkers, sem, contudo, ousar bater-se por liderança política, a burguesia buscou, desde o início, olhar com desprezo não tanto as classes inferiores, mas simplesmente os outros povos. Muito típica disso é a pequena obra literária de Clemens Brentano,[27] escrita para o clube ultranacionalista antinapoleônico — e lida por seus membros que se reuniram em 1808 sob o nome de "Die Christlich-Deutsche Tisch-gesellschaft" [A Sociedade Alemã e Cristã de Reuniões]. Em sua maneira, altamente sofisticada e espirituosa, Brentano mostra o contraste entre a "personalidade inata", o indivíduo genial, e o "filisteu", que ele identificava com franceses e judeus. Doravante, a burguesia alemã tentaria pelo menos atribuir a outros povos — inicialmente aos franceses, mais tarde aos ingleses e sempre aos judeus — todas as qualidades que a nobreza desprezava como tipicamente burguesas. Quanto às misteriosas qualidades que uma "personalidade inata" recebia ao nascer, eram exatamente as mesmas que os verdadeiros Junkers diziam possuir.
     Embora os padrões da nobreza contribuíssem, desse modo, para o surgimento do pensamento racista, não se pode atribuir aos próprios Junkers a culpa pela formação dessa mentalidade. O único Junker desse período a desenvolver uma teoria política própria, Ludwig von der Marwitz, nunca fez uso de termos racistas. Segundo ele, as nações eram separadas pelos idiomas — uma diferença espiritual e não física — e, embora fosse violento inimigo da Revolução Francesa, falava como Robespierre quando se tratava de possível agressão de uma nação contra outra: "Aquele que planeja expandir suas fronteiras deveria ser considerado um pérfido traidor em meio a toda a república europeia de Estados".[28] Foi Adam Mueller quem insistiu na descendência pura como teste de nobreza, e foi Haller que, indo além do fato óbvio de que os poderosos dominam os que não têm poder, disse ser da lei natural que os fracos fossem dominados pelos fortes. Os nobres, naturalmente, aplaudiram com entusiasmo quando souberam que sua usurpação do poder era não somente legal, como. também estava de acordo com as leis naturais, e foi em decorrência das definições burguesas que, no decorrer do século XIX, foram mais cautelosos do que antes em evitar "mésalliances".29
     Essa insistência na origem tribal comum como essência da nacionalidade, formulada pelos nacionalistas alemães durante e após a guerra de 1814, e a ênfase que os românticos davam à personalidade inata e à nobreza natural prepararam a Alemanha intelectualmente para pensar em termos racistas. Da primeira ideia, surgiu a doutrina orgânica da história com as suas leis naturais; da outra, surgiu no fim do século XIX a grotesca imitação de super-homem, com o destino "natural" de dominar o mundo. Enquanto essas tendências evoluíam paralelamente, representavam apenas meios temporários de fuga da realidade política. Mas, fundidas numa só, constituíram a própria base do racismo como ideologia plenamente desenvolvida. Isso, contudo, não veio a acontecer primeiramente na Alemanha, e sim na França, e não foi obra de intelectuais da classe média, mas de um nobre altamente talentoso e frustrado, o conde de Gobineau.

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[17] Esse era o caso, por exemplo, da Philosophische Vorlesungen aus den Jahren 1804-1806, II, 357, de Friedrich Schlegel. O mesmo se aplica a Ernst Moritz Arndt. Ver Alfred P. Pundt, Arndt and the national awakening in Germany, Nova York, 1935, pp. 116ss.
[18] Joseph Goerres, em Rheinischer Merkur, 1814, n? 25.
[19] Em Phantasien zur Berichtigung der Urteile über Künftige deutsche Verfassungen, [Fantasias para a retificação dos juízos sobre as condições futuras da Alemanha], 1815.
[20]  "Os animais de raça mista carecem de verdadeira potência geradora; da mesma forma, pessoas híbridas não se propagam, como um povo, por si mesmas. O ancestral da humanidade está morto e a raça original está extinta. É por isso que cada povo moribundo é um infortúnio para a humanidade. (...) A nobreza humana não pode ser expressa num povo só." Em Deutsches Volk-stum, 1810. A mesma posição é expressa por Goerres, que, a despeito de sua definição naturalista de povo ("todos os membros são unidos por um laço sangüíneo comum"), adota um verdadeiro princípio nacional quando diz: "Nenhum ramo tem o direito de dominar o outro" (op. cit.).
[21] Blick aus der Zeit aufdie Zeit [Olhar do tempo sobre o tempo], 1814. Citado por Alfred P. Pundt, op. cit.
[22]  "Só depois que a Áustria e a Prússia haviam caído após uma luta vã, é que realmente comecei a amar a Alemanha. (...) Quando a Alemanha sucumbiu diante da conquista e da dominação, tornou-se para mim única e indissolúvel", escreve E. M. Arndt em seu Erínnerungen aus Schweden [ Lembranças da Suécia], 1818, p. 82. Citado por Pundt, op. cit., p. 151.
[23]  "Neue Fragmentensammlung" [Nova coletânea dos fragmentos] (1798), em Schriften [Escritos], Leipzig, 1929, tomo II, p. 335.
[24] A respeito da atitude romântica na Alemanha, ver Carl Schmitt, Politische Romantik, Munique, 1925.
[25]  Mussolini, "Relativismo e fascismo", em Diuturna, Milão, 1924. Tradução citada por F. Neumann, Behemoth, 1942, pp. 462-3.
[26] Ver o interessante panfleto contra a nobreza do escritor liberal Buchholz, Unter-suchungen ueber den Geburtsadel [Pesquisas sobre a nobreza de nascenca], Berlim, 1807, p. 68: "A verdadeira nobreza não pode ser dada ou tomada; pois, como a força e o gênio, estabelece-se a si mesma e existe por si mesma".
[27] Clemens Brentano, Der Philister vor, in und nach der Geschichte [O filisteu antes, durante e na história], 1811.
[28]  "Entwurf eines Friedenspaktes" [A elaboração de um tratado de paz], em Gerhard Ramlow, Ludwig von der Marwitz und die Anfànge konservativer Politik und Staatsauffassung in Preussen [Marwitz e o início da política conservadora e organização estatal da Prússia], Historische Studien, vol. 185, p. 92.
[29] Vide Sigmund Neumann, Die Stufen des preussischen Konservatismus [Primórdios do conservadorismo prussiano], Historische Studien, vol. 190,1930. Quanto a Adam Mueller é importante a leitura de seu Elemente der Staatskunst [Elementos da arte de Estado], 1809.

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