sábado, 23 de agosto de 2025

Massa e Poder - Malta e Religião: As Religiões de Lamentação

Elias Canetti

MALTA E RELIGIÃO

      As Religiões de Lamentação

      As religiões de lamentação marcaram a face da terra. No cristianismo, obtiveram uma espécie de validade universal. A malta que as sustenta tem vida curta. O que terá conferido consistência às formas da fé oriundas da lamentação? O que lhes terá proporcionado sua singular perseverança, estendendo-se já por milênios?
     A lenda em torno da qual elas se formam é a de um ser humano ou deus morto injustamente. Trata-se sempre da história de uma perseguição, seja ela uma caçada ou um acossamento. Um julgamento injusto poderá também estar vinculado a ela. Se se trata de uma caçada, o alvo atingido é o errado: o mais nobre caçador, em vez do animal do qual se estava atrás. É possível também que, numa inversão das coisas, o animal caçado avance sobre o caçador, ferindo-o mortalmente, como na lenda de Adônis e do javali. Justamente essa morte é o que jamais poderia ter acontecido, e o sofrimento que ela provoca ultrapassa todas as medidas.
     Pode ocorrer de uma deusa amar a vítima e lamentar-se por ela, como faz Afrodite por Adônis. Em sua forma babilônica, o nome da deusa é Ishtar, e Tammuz chama-se o belo jovem, morto precocemente. Entre os frígios, é a deusa-mãe Cibele que chora por seu jovem amante, Átis. “Verdadeiramente furiosa, ela atrela leões a seu carro, vaga por todo o monte Ida com seus coribantes, aos quais fez tão furiosos quanto ela própria, e chora por seu Átis; de seus coribantes, um perfura os próprios braços, outro corre pelas montanhas com os cabelos esvoaçantes, um terceiro toca uma corneta e um outro ainda golpeia um tambor ou produz um estrondo batendo duas chapas de metal; o Ida inteiro está revolto e fanaticamente enfurecido.”
     No Egito, é Ísis quem perdeu seu marido, Osíris. Ela o busca incansavelmente; aflita, atravessa o país e não descansa até encontrá-lo. “Vem para tua casa”, lamenta-se ela: “Vem para tua casa [...] não te vejo e, no entanto, meu coração anseia por ti e meus olhos te desejam. Vem para aquela que te ama, que te ama, ó bem-aventurado! Vem para tua irmã, vem para tua mulher, para tua mulher, cujo coração parou. Vem para tua esposa. Sou tua irmã, nascida da mesma mãe, e não deves ficar longe de mim. Os deuses e os homens voltaram seus rostos para ti e, juntos, por ti choram [...] Eu te chamo e choro; ouvem-me até no céu, mas tu não ouves minha voz, embora eu seja tua irmã, que amaste na terra; não amaste ninguém além de mim, meu irmão!”
     Pode ser também — caso posterior e não mais mítico — que um grupo de parentes e discípulos lamente-se pela vítima, como por Jesus ou por Hussain, o neto do profeta e verdadeiro mártir dos xiitas.
     A caçada ou perseguição é descrita em todos os seus detalhes; trata-se de uma história precisa, sustentada num nível inteiramente pessoal; sempre corre sangue — mesmo a mais humana de todas as paixões, a do próprio Cristo, não prescinde do sangue e das feridas. Cada uma das ações de que se compõe a paixão é percebida como injusta; quanto maior a distância dos tempos míticos, mais se verifica a tendência a prolongar a paixão e a provê-la de inúmeros traços humanos. A caçada ou acossamento, porém, é sempre sentida do ponto de vista da vítima.
     Perto de seu m, forma-se uma malta de lamentação; sua lamentação, contudo, exibe uma característica particular: o morto morreu por amor aos homens que o lamentam. Era seu salvador, ou porque fosse seu maior caçador ou porque possuísse méritos outros e maiores. Sua preciosidade é ressaltada de todas as formas; ele é precisamente aquele que não podia estar morto. Sua morte não é reconhecida pelos que se lamentam. Estes querem tê-lo de volta à vida.
     Na descrição da malta arcaica de lamentação — aquele caso australiano que mencionei —, ressaltei que a lamentação tem início com o moribundo. Os vivos buscam retê-lo consigo e cobrem-no com seus corpos. Acolhem-no no amontoado que compõem, comprimindo-o por todos os lados e intentando não entregá-lo. Com frequência, ainda o chamam de volta após a morte, e somente quando têm certeza de que ele não retornará mais é que começa a segunda fase, na qual o impelem para o mundo dos mortos.
     No caso da malta de lamentação de que se fala aqui, aquela que se forma como lenda em torno de um morto precioso, a morte é prolongada de todas as formas. Seus parentes ou fiéis — que se igualam nesse caso — negam-se a abrir mão dele. A primeira fase, a do desejo de retê-lo, é a decisiva, e toda a ênfase recai sobre ela.
     Trata-se do período em que, de todas as partes, as pessoas acorrem, e quem quer que deseje lamentar-se é bem-vindo. Nesses cultos religiosos, a malta de lamentação se abre e se amplia, formando uma massa que cresce sem que seja possível contê-la. Tal se verifica nas festas em honra do próprio morto, quando sua paixão é representada. Cidades inteiras aderem a essas festas, além de, frequentemente, bandos gigantescos de peregrinos vindos de longe. Contudo, a abertura da malta de lamentação dá-se também ao longo de vastos períodos de tempo; o número de fiéis multiplica-se. Tudo principia com os poucos e leais postados ao pé da cruz, na qualidade do núcleo da lamentação. Na primeira festa de Pentecostes é possível que sejam já seiscentos cristãos; à época do imperador Constantino são 10 milhões. O núcleo da religião, porém, permanece o mesmo: seu centro é a lamentação.
     Por que tantas pessoas juntam-se à lamentação? Qual o seu atrativo? No que ela auxilia os homens? Em todos os que a ela aderem dá-se a mesma coisa: a malta de caça ou acossamento expia seus pecados como malta de lamentação. Os homens eram perseguidores e, à sua maneira, seguem vivendo como tais. Buscam carne alheia, cortam-na e se alimentam do tormento das criaturas fracas. Em seus olhos reflete-se o olho embaciado da vítima, e o último grito com que se deleitam enterra-se indelével em suas almas. A maioria deles talvez nem perceba que, juntamente com seu corpo, está alimentando também o que abriga em si de tenebroso. Mas a culpa e o medo intensificam-se irresistivelmente neles, de modo que, sem que o percebam, anseiam pela redenção. Juntam-se, assim, a alguém que morre por eles, e, em sua lamentação por este, sentem-se eles próprios como perseguidos. O que quer que tenham feito, por mais furiosamente que tenham agido, colocam-se naquele momento ao lado da dor. Uma súbita e profunda mudança de lado se verifica. Isso os liberta da culpa acumulada pela morte e do medo de que esta os atinja. O que quer que tenham feito a outrem, um outro o toma agora para si, e na medida em que, fielmente e sem nenhuma reserva, se juntam a ele, escapam — assim esperam — da vingança.
     Verifica-se, assim, que as religiões de lamentação são imprescindíveis à economia psíquica dos homens, e seguirão sendo enquanto eles não forem capazes de abrir mão de, reunidos em maltas, matar.
     Das religiões de lamentação que chegaram até nós e se deixam examinar com maior exatidão, a dos xiitas islâmicos é a mais instrutiva. Igualmente correto seria descrever o culto a Tammuz ou Adônis, a Osíris e Átis. Estes, porém, pertencem ao passado; nós os conhecemos somente a partir dos escritos cuneiformes e hieroglíficos, ou dos relatos dos escritores clássicos, e, embora tais relatos sejam inestimáveis, mais conclusivo parece- nos ser ocupar-nos de uma crença que não apenas segue existindo nos dias de hoje, como também se apresenta, nos lugares onde existe, sob uma forma mais aguda e não atenuada.
     A mais significativa de todas as religiões de lamentação é o cristianismo. Sobre a sua vertente católica haverá ainda o que dizer aqui. Quanto aos momentos concretos do cristianismo, porém, aqueles de real comoção das massas, descrever-se-á adiante não um momento de genuína lamentação, o que se tornou raro, mas um outro: a festa da ressurreição, na igreja do Santo Sepulcro em Jerusalém.
     A lamentação propriamente dita, sob a forma de uma malta apaixonada que se abre, transformando-se numa verdadeira massa, manifesta-se com um ímpeto inesquecível na festa do muharram dos xiitas.

continua página 215...
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

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