terça-feira, 5 de agosto de 2025

Marcel Proust - O Caminho de Guermantes (2a.Parte - Será que é porque não revivemos)

em busca do tempo perdido

volume III
O Caminho de Guermantes

Segunda Parte

Capítulo Segundo

     Será que é porque não revivemos os nossos anos em sua sequência contínua, dia a dia mas sim na lembrança fixada no frescor ou na insolação de uma manhã ou de uma tarde, recebendo a sombra de um tal ponto isolado, fechado, invisível, parado e perdido, longe de todo o resto, e que assim as mudanças graduadas, não só no exterior mas também nos nossos sonhos e no nosso caráter em evolução, mudanças que nos conduziram insensivelmente pela vida, de um tempo a um outro bem diverso, achando-se suprimidas, se revivemos uma outra lembrança resgatada de um ano diferente, encontramos entre eles, graças a lacunas, as imensas muralhas de esquecimento, algo como o abismo de uma diferença de altitude, como a incompatibilidade de duas qualidades incomparáveis da atmosfera respirada e de colorações envolventes? Mas, entre as lembranças que acabava de ter, sucessivamente, de Combray, de Doncieres e de Rivebelle, sentia naquele instante bem, mais que uma distância de tempo, a distância que haveria entre universos diferentes, onde a matéria não seria a mesma. Se, numa obra, quisesse imitar aquela em que surgissem brunidas minhas mais insignificantes recordações de Rivebelle, ser-me-ia necessário traçar veios cor-de-rosa, em definitivo translúcida, compacta, refrescante e sonora a substância até então análoga à argila escura e tosca de Combray. Porém Robert, tendo acabado de dar suas explicações ao cocheiro, veio reunir-se a mim no carro. Fugiram as ideias que me haviam aparecido.
     São deusas que se dignam às vezes a se tornar visíveis a um mortal solitário, na volta de um caminho e até em seu quarto quando está dormindo, enquanto elas, de pé no vão da porta, lhe trazem a sua anunciação. Mas, logo que se juntam duas pessoas, elas desaparecem, os homens em sociedade não as percebem nunca; eu me encontrei lançado à amizade.
     Bem que Robert, ao chegar, me advertira que o nevoeiro era muito intenso, mas, enquanto conversávamos, a névoa não deixou de espessar-se. Já não era a bruma leve que eu desejara ver elevar-se da ilha e nos envolver, à Sra. de Stermaria e a mim. A dois passos, os lampiões se apagavam e era então a noite, tão profunda como em pleno campo, numa floresta, ou melhor, em alguma suave ilha da Bretanha para a qual eu tivesse querido ir; senti-me perdido como nas costas de um mar setentrional onde arriscamos vinte vezes a vida antes de alcançar um albergue solitário; deixando de ser uma miragem que se procura, o nevoeiro se transformava num daqueles perigos contra os quais se luta, de modo que tivemos, para achar nosso caminho e atingir um porto abrigado, as dificuldades, a inquietação e por fim a alegria proporcionada pela segurança tão insensível ao que não está ameaçado de perdê-la ao viajante perplexo e extraviado. Só uma coisa quase comprometeu o meu prazer durante nossa aventurosa caminhada devido ao assombro irritado em que me lançou por um momento. 

- Sabes, contei a Bloch - disse Saint-Loup - que não gostavas dele tanto assim, que lhe achavas certas vulgaridades. Eis como eu sou, gosto das situações resolvidas - concluiu com um ar satisfeito e com um tom que não admitia réplica.

     Eu estava estupefato. Não apenas depositava a confiança mais absoluta em Saint-Loup, na lealdade de sua amizade, e ele a traíra pelo que dissera a Bloch, mas também me parecia que, além disso, deviam impedir de fazê-lo não só seus defeitos como suas qualidades, aquela extraordinária dose de educação que podia levar a polidez até uma certa falta de franqueza. Seria seu ar triunfante aquele que assumimos para dissimular algum embaraço, confessando uma coisa que sabemos que não deveríamos ter feito? Traduziria o seu inconsciente? Uma estupidez que elevava à condição de virtude um defeito que não lhe conhecia? Um acesso de mau humor passageiro contra mim que o levasse a abandonar-me, ou o registro de um acesso de mau humor passageiro contra Bloch, a quem quisera dizer algo desagradável, mesmo me comprometendo? Aliás, seu rosto estava estigmatizado, enquanto me dizia essas palavras vulgares, por uma horrível sinuosidade que apenas lhe vira uma ou duas vezes na vida, e que, seguindo primeiro aproximadamente a parte central do rosto, tão logo chegada aos lábios torcia-os, dando-lhes uma hedionda expressão de baixeza, quase de bestialidade, bem passageira e certamente ancestral. Devia haver nesses momentos, que sem dúvida só se repetiam uma vez a cada dois anos, um eclipse parcial de seu próprio eu pela passagem, sobre ele, da personalidade de um antepassado que ali se refletia. Tanto quanto o ar de satisfação de Robert, suas palavras "gosto das situações resolvidas" se prestavam à mesma dúvida e poderiam incorrer na mesma censura. Queria dizer lhe que, se a gente gosta de situações resolvidas, é preciso ter esses acessos de franqueza no que diz respeito a si próprio, e não alardear virtude muito fácil à custa dos outros. Mas o carro já havia parado à porta do restaurante, cuja ampla fachada envidraçada e fulgurante era a única a vencer a escuridão. O próprio nevoeiro, devido à confortável claridade do interior, parecia, já da calçada, indicar a entrada com a alegria desses criados que refletem as disposições do patrão; irisava-se dos mais delicados matizes e mostrava a entrada como a coluna luminosa que guiou os hebreus. Aliás, havia muitos destes entre os fregueses. Pois era nesse restaurante que Bloch e seus amigos vinham encontrar-se há muita tempo, ébrios de um jejum tão esfaimante como o jejum ritual que pelo menos só ocorre uma vez por ano -, jejum de café e de curiosidade política.
     Visto que toda excitação mental confere um valor predominante, uma qualidade superior aos hábitos que a ela se relacionam, não há gosto um pouco vivo que não reúna em torno de si uma sociedade a que unifica, e onde a consideração dos outros membros é o que, principalmente, cada um procura na vida. Aqui, conquanto seja uma aldeia do interior, podereis encontrar apaixonados pela música; o melhor do seu tempo, o mais luzidio de seu dinheiro, vão parar nas sessões de música de câmara, nas reuniões em que se fala de música, no café onde se encontram entre amadores e onde se acotovelam com os músicos da orquestra. Outros, apaixonados pela aviação, esforçam-se por ser bem recebidos pelo velho garçom do bar envidraçado do alto do aeródromo; ao abrigo do vento, como na jaula de vidro de um farol, poderão seguir, na companhia de um aviador que não voa no momento, as evoluções de um piloto que executa loopings, ao passo que um outro, invisível no instante anterior, vem aterrissar bruscamente, abater-se com o grande rumor de asas do pássaro. O pequeno grupo que se reunia para tentar perpetuar e aprofundar as emoções fugidias do processo Zola, da mesma forma dava grande importância a esse café. Mas era mal visto pelos jovens nobres, que formavam a outra parte da freguesia e tinham adotado uma segunda sala do café, separada da outra somente por um leve parapeito decorado de vegetação. Consideravam Dreyfus e seus partidários como traidores, embora, vinte e cinco anos depois, quando as ideias já tinham tido tempo de se classificar, e o dreyfusismo de assumir uma certa elegância na História, os filhos, bolchevizantes e valsistas, desses mesmos aristocratas jovens devessem declarar aos "intelectuais" que os interrogavam, que certamente, se tivessem vivido naquele tempo, seriam partidários de Dreyfus; sem mais saber ao certo o que fora o Caso do que o que foram a condessa Edmond de Pourtales ou a marquesa de Galliffet, ambas esplendores extintos no dia em que haviam nascido. Pois, na noite desse nevoeiro, os nobres do café que mais tarde deveriam ser os pais desses jovens intelectuais retrospectivamente dreyfusistas ainda eram solteiros. Certo, um casamento rico era visado pelas famílias de todos, mas ainda não se realizara no caso de nenhum deles. Ainda virtual, contentava-se esse rico matrimônio, desejado ao mesmo tempo para vários (havia diversos "partidos ricos” em vista, mas enfim o número de grandes dotes era muito menor que o de aspirantes), em acender uma certa rivalidade entre esses rapazes.
     Para infelicidade minha, como Saint-Loup tivesse ficado alguns minutos com o cocheiro, a fim de lhe recomendar que voltasse para buscar-nos após o jantar, tive de entrar sozinho. Ora, para começar, uma vez na porta giratória, a que não estava acostumado, achei que não conseguiria mais sair. (Diga-se de passagem, para os amadores de um vocabulário mais preciso, que essa porta-tambor, apesar de sua aparência pacífica, chama-se porta-revólver, do inglês revolving-door.)
     Naquela tarde, o dono do café, que não se atrevia a molhar-se indo lá fora, nem deixar seus fregueses, permanecia contudo perto da entrada para ter o prazer de ouvir as queixas joviais dos que chegavam, iluminados pela satisfação de pessoas que tinham custado a chegar e passado pelo medo de perder-se. Entretanto, a risonha cordialidade de sua acolhida se dissipou ante um desconhecido que não sabia se livrar das giratórias de vidro. Essa prova flagrante de ignorância fê-lo franzir os sobrolhos, como a um examinador que não tem vontade de pronunciar o dignus est intrare. Para cúmulo do azar, fui sentar-me na sala reservada à aristocracia, de onde ele veio me retirar rudemente, indicando, com uma grosseria a que logo se adaptaram todos os garçons, um lugar na outra sala. A sala não me agradou, tanto mais que a banqueta em que me encontrava já estava repleta de gente e que eu tinha à minha frente a porta reservada aos judeus que, não sendo giratória, ao abrir-se e fechar a todo instante me enviava um frio terrível. Mas o dono da casa recusou outro lugar, dizendo: 

- Não, senhor, não posso incomodar todo mundo por sua causa. -

     Aliás, esqueceu em breve o comensal tardio e incomodativo que eu era, pois mostrava-se submisso a cada recém-chegado, que, antes de pedir sua caneca de cerveja, sua asa de frango frio, ou o seu grog (pois há muito já passara a hora do jantar), devia, como nos antigos romances, pagar sua cota falando de sua aventura no momento em que penetrava naquele asilo de calor e segurança, onde o contraste com aquilo de que havíamos escapado fazia reinar a jovialidade e a camaradagem que se divertem ante o fogo de um bivaque.
     Um contava que o seu carro, julgando ter chegado à ponte da Concórdia, fizera três vezes a volta em torno aos Inválidos; outro que o seu, tentando descer a avenida dos Champs-Élysées, entrara num matagal do Rond-Point, de onde levou três quartos de hora para sair. Depois, seguiam-se lamentações acerca do nevoeiro, frio, do silêncio de morte nas ruas, lamentações ditas e ouvidas com ar excepcionalmente alegre, o que explicava a doce atmosfera da sala onde, à exceção do lugar que eu ocupava, fazia calor, por causa da luz muito viva que obrigava a piscar os olhos já desabituados a enxergar, e pelo rumor da conversa que devolvia a atividade os ouvidos.
     Os que chegavam mal conseguiam manter silêncio. A singularidade das peripécias, que julgavam únicas, lhes queimava a língua e eles procuravam com os olhos alguém com quem pudessem entabular conversação: O próprio dono do estabelecimento perdia o senso das distâncias: 

- O senhor príncipe de Foix perdeu-se três vezes, vindo da porta de Saint-Martin - não receava dizer rindo, não sem designar, como numa apresentação, o célebre aristocrata a um advogado judeu, o qual, ainda outro dia, fora separado dele por uma barreira bem mais difícil de transpor do que a sebe ornada de verduras. 
- Três vezes! Vejam só! - disse o advogado, tocando no seu chapéu.

     O príncipe não gostou da frase de aproximação. Fazia parte de um grupo aristocrático para o qual o exercício da impertinência, mesmo a respeito da nobreza quando esta não era da primeira classe, parecia seca ocupação única. Não responder a uma saudação; se o homem cortês reincidisse, soltar uma risadinha trocista, ou erguer a cabeça para trás com ar furioso; fingir não reconhecer um homem idoso que lhes houvesse prestado um serviço; reservar o punho da mão e as saudações aos duques e aos amigos muito íntimos dos duques que estes lhes apresentassem: tal era a atitude desses jovens e em particular do príncipe de Foix. Essa atitude era favorecida pela desordem da primeira juventude (quando, até na burguesia, parecemos ingratos e nos mostramos grosseiros porque, tendo esquecido durante meses de escrever a um benfeitor que acaba de perder a esposa, passamos a não cumprimentá-lo, para simplificar as coisas), mas era inspirada principalmente por um super agudo esnobismo de casta. É verdade que, a exemplo de certas afecções nervosas cujas manifestações se atenuam na idade madura, tal esnobismo em geral devia deixar de se traduzir de um modo tão hostil entre os que tinham sido jovens tão insuportáveis. Uma vez passada a juventude, é raro que permaneçamos confinados à insolência. Havíamos achado que só ela existia, e de súbito descobrimos, por mais príncipe que sejamos, que há também a música, a literatura, e até mesmo a deputação. A ordem dos valores humanos encontra-se mudada, e entramos em conversação com pessoas que outrora fulminávamos com o olhar. Boa oportunidade a desses jovens que tiveram paciência para esperar e cujo caráter é bastante bem formado se assim se pode dizer para que sintam prazer em receber, por volta dos quarenta, as boas graças e a acolhida que lhes foram secamente recusadas aos vinte!
     A propósito do príncipe de Foix convém dizer, visto que a ocasião é propícia, que ele pertencia a um grupo de doze a quinze jovens e a um grupo ainda mais restrito de quatro. O grupo de doze a quinze possuía a característica, a que, suponho, escapava o príncipe, de que os jovens apresentavam, cada um, um duplo aspecto. Crivados de dívidas, pareciam uns pobre, diabos aos olhos dos fornecedores, apesar de toda a satisfação que este mostravam ao lhes dizer:

"Senhor conde, Senhor marquês, Senhor duques.'' Esperavam livrar-se dos problemas por meio do famoso "casamento rico", também chamado "saco graúdo", e, como os dotes polpudos que cobiçavam não passavam de quatro ou cinco, vários dirigiam surdamente suas baterias para a mesma noiva. O segredo ficava tão bem guardado que, quando um deles ia ao café e dizia: 

- Meus excelentes camaradas, eu sou muito amigo de vocês para não lhes anunciar o meu noivado com a Srta. de Ambresac -, ressoavam diversas exclamações, pois muitos deles, julgando tudo já acertado para eles mesmos com a própria senhorita, não tinham o sangue-frio necessário para sufocar, no primeiro instante, seu grito de raiva e de estupefação: 
- Então, agrada-te casar, Bibi? - não podia evitar de exclamar o príncipe de Châtellerault, que deixava cair o garfo, de espanto e desespero, pois acreditava que o mesmo noivado da Srta. de Ambresac ia em breve ser tornado público, mas com ele, Châtellerault. E, no entanto, Deus sabe tudo o que seu pai habilmente contara aos Ambresac contra a mãe de Bibi. 
- Então, agrada-te casar? - não pode deixar de indagar de novo a Bibi, que, mais bem preparado, pois que tivera o tempo todo para escolher sua atitude desde que era "quase oficial", respondia sorrindo: 
- Estou contente não por me casar, de que não tinha aliás nenhuma vontade, mas por esposar Daisy d'Ambresac, que me parece deliciosa. - 

     Durante essa resposta, o Sr. de Châtellerault conseguira recobrar-se e pensava que era preciso, o mais rápido possível, voltar suas baterias na direção da Srta. de Ia Canourgue ou de Miss Foster, os grandes partidos nº 2 e nº 3, pedir paciência aos credores que esperavam o casamento d'Ambresac e, por fim, explicar às pessoas a quem dissera que a Srta. de Ambresac era encantadora que esse casamento era bom para Bibi, mas que ele teria brigado com toda a sua família se a tivesse desposado. A Sra. de Soléon, segundo diria, chegara ao ponto de afirmar que não iria recebê-los.
     Mas, se aos olhos dos fornecedores, donos de restaurantes, etc., eles pareciam pessoas de poucas posses, em compensação, seres duplos, quando se encontravam na sociedade, não eram mais julgados conforme a deterioração de sua fortuna e os tristes expedientes de que lançavam mão para tentar repará-la. Voltavam a ser o Senhor príncipe, o Senhor duque de Tal, e só eram avaliados de acordo com seus brasões. Um duque quase bilionário e que parecia reunir tudo em si ficava abaixo deles, porque, como chefes de linhagem, eles eram antigamente príncipes soberanos de uma pequena região onde tinham o direito de cunhar moeda, etc.. Muitas vezes, nesse café, um baixava os olhos quando um outro entrava, de forma a não forçar o recém chegado a saudá-lo. É que ele havia, em sua perseguição imaginativa da riqueza, convidado um banqueiro para jantar. De cada vez que um homem da sociedade entra, nessas condições, em relações com um banqueiro, este lhe faz perder uns cem mil francos, o que não impede o homem mundano de recomeçar com outro. Continua-se a queimar círios à a consultar médicos.
     Mas o príncipe de Foix, ele próprio rico, pertencia não só a esse grupo elegante de uns quinze rapazes, mas a um grupo mais fechado e inseparável, de apenas quatro membros, de que fazia parte Saint-Loup, Nunca se convidava um deles sem os outros, chamavam-nos os quatro gigolôs, eram vistos sempre juntos em passeio, nos castelos, onde lhes davam quartos que se comunicavam entre si, de modo que tanto mais que eram todos muito bonitos corriam rumores sobre sua intimidade.
     Pude desmenti-los da maneira mais formal no que dizia respeito a Saint-Loup. Mas o curioso é que, se mais tarde se soube que esses rumores eram verdadeiros no tocante aos quatro, em compensação, cada um deles o tinha ignorado totalmente quanto aos outros três; e, no entanto, cada um deles cuidara de bem informar-se acerca dos outros, seja para matar um desejo ou melhor, um sentimento de rancor, ou impedir um casamento, ou levar vantagem sobre o amigo desmascarado. Um quinto (pois nos grupos de quatro geralmente têm-se mais que quatro) se juntara aos quatro platônicos, e este era mais platônico do que os outros. Porém, escrúpulos religiosos o contiveram até muito depois que o grupo dos quatro se desunisse, ele, já casado, pai de família, implorava a Lourdes que o próximo filho fosse menino ou menina e, nos intervalos, lançava-se sobre os militares. Apesar dos modos do príncipe, o fato é que a frase dita em sua presença não lhe fora dirigida diretamente, o que fez menos forte a sua cólera do que o teria a não ser assim. Além do mais, aquela reunião noturna tinha algo de excepcional. Afinal, o advogado não tinha mais condições da travar conhecimento com o príncipe de Foix do que o cocheiro que havia conduzido esse nobre senhor. Assim, este último julgou poder responder, com ar arrogante e como que à parte, àquele interlocutor que, graças ao nevoeiro, era como um companheiro de viagem encontrado nalguma prata situada nos confins do mundo, batida pelos ventos ou envolta nas brumas. 

- Perder o caminho não é nada; o pior é não encontrá-lo. -

     A justeza desse pensamento assombrou o dono da casa, pois já o ouvira ser expresso. Com efeito, ele tinha o hábito de comparar sempre aquilo que ouvia ou lia a um determinado texto já conhecido, e sentia despertar sua admiração caso não visse diferença. Tal estado de espírito não é desprezível, pois, aplicado às conversações políticas, à leitura dos jornais, forma opinião pública e, desse modo, torna possíveis os maiores acontecimentos. Muitos donos de café alemães, admirando apenas seu freguês ouviam-no diversas vezes naquela tarde. Igual, quando diziam que a França, a Inglaterra e a Rússia "buscavam" a Alemanha, tornaram possível, por ocasião do incidente de Agadir, uma guerra que aliás não rebentou. Os historiadores, se não erraram em desistir de explicar os atos dos povos pela vontade dos reis, devem substituí-la pela psicologia do indivíduo, do indivíduo medíocre.
     Em política, o dono do café onde eu acabara de chegar só aplicava, fazia algum tempo, sua mentalidade de professor de recitação a um certo número de trechos sobre o Caso Dreyfus. Se não achava os termos conhecidos nas frases de um freguês ou nas colunas de um jornal, declarava enfadonho o artigo, ou insincero o freguês. O príncipe de Foix, ao contrário, maravilhava-o a ponto de mal deixar seu interlocutor acabar a frase.

- Bem dito, meu príncipe, muito bem dito (o que, em suma, queria dizer, "recitado sem erro"), é isso, é isso! - exclamava, expandindo-se, como se diz nas Mil e Uma Noites, "até os limites da satisfação". Mas o príncipe já desaparecera na salinha. Depois, como a vida continua mesmo após os mais singulares acontecimentos, os que saíam do mar de nevoeiro encomendavam, uns a sua bebida, outros o seu jantar; e, entre estes, os rapazes do Jockey que, devido ao caráter anormal do dia, não hesitaram em se instalar em duas mesas na sala grande, e assim se acharam bem perto de mim. Desse modo, o cataclismo estabelecera, mesmo da salinha à sala grande, entre todas essas pessoas estimuladas pelo conforto do restaurante, depois de longamente errarem no oceano de bruma, uma familiaridade da qual eu era o único excluído e que devia assemelhar-se à que reinava na Arca de Noé. De repente, vi o dono do café dobrar-se em curvaturas, os maitres d'hôtel acorrerem todos, o que chamou a atenção dos fregueses. 
- "Depressa, chamem Cyprien, uma mesa para o Senhor marquês de Saint-Loup - gritava o dono do café, para quem Robert não era apenas um grão-senhor que gozava de verdadeiro prestígio, mesmo aos olhos do príncipe de Foix, mas um freguês que levava a vida à larga e gastava muito dinheiro naquele restaurante.

     Os fregueses da sala grande olhavam com curiosidade, os da salinha chamavam sem parar o amigo que acabava de enxugar os pés. Mas, no momento em que Saint-Loup ia entrar na salinha, avistou-me na grande: 

- Meu Deus! - exclamou o que fazes aí, e com essa porta aberta à tua frente? - disse, não sem lançar um olhar furioso ao patrão, que correu para fechá-la desculpando-se com os garçons: 
- Sempre lhes digo que a mantenham fechada. Eu fora obrigado a afastar a minha mesa e outras que estavam diante da minha, para ir ao encontro de Robert. 
- Por que saiu do lugar? Gostas mais de jantar aí do que na salinha? Mas, meu caro, vais ficar enervado. O senhor vai me fazer o favor de condenar essa porta - disse ao dono do estabelecimento. -

     Neste mesmo instante, senhor marquês, os fregueses que chegarem a partir de agora hão de passar pela saleta, eis tudo.
     E, para melhor mostrar seu zelo, encarregou dessa operação um maitre d'hôtel e vários garçons, fazendo em voz alta ameaças terríveis caso ela não fosse levada a bom termo. Deu-me excessivas demonstrações de respeito para que eu esquecesse que elas não tinham começado desde a minha chegada, mas unicamente após a entrada de Saint-Loup e, para que eu não acreditasse todavia que eram devidas exclusivamente à amizade que me demonstrava seu rico e aristocrático freguês, endereçava-me às escondidas pequenos sorrisos onde parecia declarar-se uma simpatia bem pessoal.
     Por trás de mim, a frase de um freguês me fez virar a cabeça por um segundo. Acabara de ouvir, em vez das palavras: "Asa de frango, muito bem, um pouco de champanha, mas bem seco", estas outras: "Eu preferiria a glicerina. Sim, quente, muito bem." Tive curiosidade de ver quem era o asceta que se infligia um tal cardápio. Voltei vivamente a cabeça para Saint-Loup a fim de não ser reconhecido pelo estranho gourmet. Era simplesmente um médico meu conhecido, a quem um cliente, aproveitando-se do nevoeiro para encurralá-lo naquele café, fazia uma consulta. Como os banqueiro os médicos dizem "eu".

continua na página 182...
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