terça-feira, 26 de agosto de 2025

Massa e Poder - Malta e Religião: A festa xiita do Muharram

Elias Canetti

MALTA E RELIGIÃO

      A festa xiita do Muharram

      A partir de uma cisão no islamismo, que ostenta traços inequívocos de uma religião de guerra, nasceu uma religião de lamentação possuidora de um grau de concentração e extremismo não encontrável em parte alguma: a fé dos xiitas. Trata-se da religião oficial do Irã e do Iêmen, bastante disseminada também na Índia e no Iraque.
     Os xiitas acreditam num líder espiritual e temporal de sua comunidade ao qual dão o nome de imã. Sua posição é mais importante do que a do papa. Ele é o portador da luz divina, e é também infalível. Somente o fiel que segue seu imã pode ser salvo. “Aquele que morre sem conhecer o verdadeiro imã de seu tempo, morre como um in el.”
     O imã descende diretamente do profeta. Ali, o genro de Maomé — casado com a filha deste último, Fátima — é considerado o primeiro imã. O profeta confiou a Ali conhecimentos especiais, não revelados a seus outros seguidores, e tais conhecimentos são transmitidos hereditariamente em sua família. Maomé nomeou-o expressamente seu sucessor nos ensinamentos e no comando. Ali é o eleito por disposição do profeta: somente a ele cabe o título de “soberano dos verdadeiros fiéis”. Os filhos de Ali, Hassan e Hussain, herdaram-lhe, então, o ofício: eram os netos do profeta. Hassan foi o segundo e Hussain o terceiro imã. Qualquer outro que se arrogasse alguma soberania sobre os fiéis era um usurpador.
     A história política do islamismo após a morte de Maomé incentivou a construção de uma lenda em torno de Ali e de seus filhos. Ali não foi eleito califa de imediato. Nos primeiros 24 anos que se seguiram à morte de Maomé, esse cargo supremo foi ocupado sucessivamente por três de seus companheiros de luta. Somente depois de morto o terceiro é que Ali chegou ao poder, mas governou apenas por pouco tempo. Numa sexta-feira, durante o serviço religioso na grande mesquita de Kufa, foi assassinado com uma espada envenenada por um opositor fanático. Seu filho mais velho, Hassan, vendeu seus direitos por uma soma de vários milhões de diréns e retirou-se para Medina, onde, passados alguns anos, morreu em consequência de uma vida extravagante.
     Os sofrimentos de seu irmão mais novo, Hussain, tornaram-se o verdadeiro cerne da fé dos xiitas. Comportado e sério, ele era o oposto de Hassan, e vivia uma vida calma em Medina. Embora, com a morte do irmão, ele houvesse se tornado o chefe do xiismo, por um longo tempo Hussain não se deixou envolver em intrigas políticas. Quando, porém, o califa regente morreu em Damasco, e o filho deste pretendeu assumir-lhe a sucessão, Hussain negou-lhe seu respeito. Os habitantes da turbulenta cidade de Kufa, no Iraque, escreveram então a Hussain, convidando-o a visitá-los. Queriam-no como califa; uma vez lá, tudo lhe seria concedido. Hussain pôs-se a caminho, levando consigo a família, as mulheres, as crianças e um pequeno grupo de seguidores. Tinha à frente um longo caminho pelo deserto. Tendo alcançado as proximidades da cidade, esta já o havia abandonado. Seu governante enviou-lhe ao encontro uma vigorosa tropa de cavaleiros, que o intimaram a entregar-se. Hussain negou-se a fazê-lo, e cortaram lhe o acesso à água. Ele e seu pequeno grupo foram cercados. Na planície de Kerbela, no décimo dia do mês de muharram do ano de 680, segundo o nosso calendário, Hussain e os seus, que valentemente se defenderam, foram atacados e derrotados. Com ele tombaram 87 pessoas, dentre estas um grande número de seus familiares e dos de seu irmão. Seu cadáver ostentava as marcas de 33 estocadas de lança e 34 golpes de espada. O comandante das tropas inimigas ordenou a sua gente que cavalgasse sobre o corpo de Hussain. No chão, o neto do profeta foi pisoteado pelos cascos dos cavalos. Sua cabeça foi cortada e enviada para o califa em Damasco, que a golpeou na boca com seu bastão. Presente, um velho companheiro de Maomé advertiu-o: “Guarda teu bastão. Vi a boca do profeta beijar esta boca”.
     As “provações da estirpe do profeta” compõem o verdadeiro tema da literatura religiosa xiita. “Reconhecem-se os verdadeiros membros desse grupo por seus corpos emagrecidos pelas privações, pelos lábios ressequidos pela sede e os olhos molhados pelo choro incansável. O verdadeiro xiita é perseguido e infeliz feito a família por cujo direito luta e sofre. Considera-se quase o ofício da família do profeta sofrer opressão e perseguição.”
     Desde aquele dia fatídico em Kerbela, a história dessa estirpe compõe-se de uma sequência ininterrupta de sofrimentos e opressões. O seu relato em poesia e em prosa é cultivado em uma rica literatura de martirológios. Tais sofrimentos e opressões compõem o objeto das reuniões dos xiitas no primeiro terço do mês de muharram, cujo décimo dia — ashura — é tido como aquele no qual ocorreu a tragédia de Kerbela. “Nossos dias comemorativos são nossas assembleias fúnebres”, assim conclui um príncipe de orientação xiita um poema no qual homenageia as muitas provações por que passou a família do profeta. O que verdadeiramente importa aos fiéis genuínos é chorar, lamentar e enlutar-se pelos infortúnios e perseguições sofridos pela família de Ali e por seu martírio. “Mais comovente do que lágrimas xiitas”, diz um provérbio árabe. “Chorar por Hussain”, afirma um indiano moderno que professa essa fé, “é o preço de nossa vida e de nossa alma; do contrário, seríamos as mais ingratas das criaturas. Até no paraíso choraremos por Hussain [...] O luto por ele é a marca distintiva do islamismo. Para um xiita, é impossível não chorar. Seu coração é uma tumba viva, a verdadeira tumba para a cabeça do mártir decapitado.”
     Emocionalmente, a contemplação da pessoa e do destino de Hussain encontra-se no centro dessa fé. São a principal fonte da qual brota a experiência religiosa. Sua morte foi interpretada como um auto sacrifício voluntário; graças a seu sofrimento, os santos alcançaram o paraíso. A ideia de um intermediário é originalmente estranha ao islamismo. No xiismo, desde a morte de Hussain, ela se tornou predominante.
     O túmulo de Hussain, na planície de Kerbela, rapidamente tornou-se o mais importante local de peregrinação dos xiitas. Quatro mil anjos, chorando dia e noite por ele, circundam-lhe a tumba. Eles vão até a fronteira, ao encontro de cada peregrino, venha este de onde vier. Quem visita esse santuário obtém, em razão desse seu ato, as seguintes vantagens: o teto de sua casa jamais desabará sobre ele; ele jamais morrerá afogado ou queimado; animais selvagens jamais o atacarão. Aquele, porém, que ali ora com genuína fé é premiado ainda com anos adicionais de vida. Seu mérito corresponde ao de mil peregrinações a Meca, mil martírios, mil dias de jejum e mil libertações de escravos. No ano seguinte ao dessa sua visita, diabos e espíritos malignos nada poderão fazer contra ele. Caso morra, será enterrado por anjos e, no dia da ressurreição, levantar-se-á da tumba juntamente com os seguidores do imã Hussain, a quem reconhecerá pela bandeira que este carrega na mão. Em triunfo, o imã conduzirá seus peregrinos diretamente ao paraíso.
     Uma outra tradição afirma que, por mais que tenham pecado, todos os que foram sepultados no santuário de um imã não serão julgados no dia da ressurreição, mas lançados como que por um lençol diretamente no paraíso, onde os anjos, felicitando-os, apertar-lhes-ão a mão.
     Assim, antigos xiitas deitavam-se em Kerbela para morrer. Outros, que haviam sempre morado a uma grande distância da cidade sagrada, deixavam a determinação para que fossem enterrados ali. Há séculos, intermináveis caravanas de mortos vêm da Pérsia e da Índia para Kerbela; a cidade transformou-se num único e gigantesco cemitério.
      A grande festa dos xiitas, onde quer que vivam, acontece nos dias do mês de muharram nos quais Hussain sofreu sua paixão. Durante esses dez dias, toda a nação persa põe-se de luto. O rei, os ministros, os funcionários vestem-se de preto ou cinza. Arrieiros e soldados caminham com a camisa solta e aberta no peito, um grande sinal de pesar. No primeiro dia de muharram, que marca também o início do ano novo, a festa tem início. Do alto de púlpitos de madeira, a paixão de Hussain é narrada. Descrevem-se todos os seus detalhes; nenhum episódio é esquecido. Os ouvintes ficam profundamente comovidos. Seus gritos — “Ó Hussain! Ó Hussain” — fazem-se acompanhar de gemidos e lágrimas. Esse tipo de recitação prolonga-se por todo o dia; os pregadores revezam-se em diversos púlpitos. Durante os primeiros nove dias de muharram, grupos de homens atravessam as ruas com o peito nu e pintado de vermelho ou preto. Arrancam-se os cabelos, infligem-se ferimentos de espada, arrastam pesadas correntes consigo ou apresentam danças selvagens. Lutas sangrentas chegam a ocorrer com pessoas de outras crenças.
     A comemoração atinge o seu ápice no dia 10 de muharram, quando se realiza uma grande procissão, que, originalmente, representava o cortejo fúnebre de Hussain. Em seu centro encontra-se o esquife de Hussain, carregado por oito homens. Cerca de sessenta outros homens, lambuzados de sangue, marcham atrás do esquife, cantando uma canção marcial. Um cavalo os segue — o corcel de guerra de Hussain. Ao final, encontra-se geralmente mais um grupo de uns cinquenta homens, talvez, os quais batem ritmicamente um contra o outro dois bastões de madeira. — O delírio que, nessas festas, se apossa da massa lamentosa é quase inimaginável. Mais adiante, uma descrição oriunda de Teerã dá-lo-á a conhecer.
     As verdadeiras representações da paixão de Hussain, nas quais seus sofrimentos são apresentados em forma dramática, somente se transformaram numa instituição permanente por volta do início do século XIX. Gobineau — que esteve na Pérsia na década de 50 e, posteriormente, ali viveu por um longo período de tempo — deu-nos uma cativante descrição delas.
     Os teatros foram doados por pessoas ricas; os gastos com eles eram considerados obra meritória, mediante a qual o doador “construía para si um palácio no paraíso”. Os maiores abrigavam de 2 mil a 3 mil pessoas. Em Isfahan, encenavam-se espetáculos para mais de 20 mil espectadores. O ingresso era gratuito; todos podiam entrar, desde o mendigo em farrapos até o mais rico senhor. As apresentações tinham início às cinco horas da manhã. Antes da paixão, procissões, danças, sermões e canções ocupavam várias horas. Distribuíam-se refrescos, e os senhores abastados e respeitados consideravam uma questão de honra servir pessoalmente até mesmo os espectadores mais esfarrapados.
     Gobineau descreve duas espécies de irmandades que colaboram nesses eventos.

     Homens e crianças, carregando tochas e precedidos por uma enorme bandeira preta, adentram o teatro em procissão e o contornam cantando. À noite, podem-se ver esses grupos caminhando apressadamente pelas ruas, indo de um teatro para outro. Algumas crianças vêm na frente, gritando com voz estridente: “Ai, Hussain! Ai, Akbar!”. Os irmãos postam-se diante dos púlpitos dos pregadores, cantando e acompanhando seu canto de uma maneira selvagem e bizarra. Com a mão direita, formam uma espécie de concha, golpeando-se violenta e ritmicamente sob o ombro esquerdo. O resultado é um som abafado que, produzido simultaneamente por muitas mãos, faz-se audível a grande distância e é bastante impressionante. Os golpes são ora pesados e lentos, produzindo um ritmo arrastado, ora ligeiros e velozes, causando agitação nos presentes. Uma vez tendo a irmandade dado início a suas atividades, raramente ocorre de o auditório todo não imitá-las. A um sinal de seu chefe, os irmãos todos começam a cantar; golpeiam a si próprios, saltam sem sair do lugar e repetem, com uma voz breve e entrecortada: “Hassan! Hussain!”.
     Uma irmandade de natureza diversa é a dos flagelantes. Estes trazem sua música consigo sob a forma de pandeiros de tamanhos variados. O peito e os pés, eles os mantêm nus, assim como nada usam na cabeça. Compõem-se de homens, às vezes de velhos e às vezes de jovens de doze a dezesseis anos. Nas mãos, carregam correntes de ferro e agulhas pontudas. Alguns têm discos de madeira. Adentram o teatro em procissão e entoam uma litania — de início, muito lentamente — composta de apenas duas palavras: “Hassan! Hussain!”. Acompanham-nos os pandeiros, com batidas cada vez mais velozes. Os que possuem discos de madeira põem-se a batê-los ritmicamente um contra o outro, e todos começam a dançar. Os ouvintes os acompanham com golpes no próprio peito. Passado algum tempo, começam a flagelar-se com suas correntes: de início, devagar e com evidente cuidado; depois, animam-se, e passam a golpear-se com maior força. Todos quantos possuem agulhas espetam-nas nos braços e nas faces; o sangue escorre, a multidão se exalta e põe-se a soluçar, e a excitação aumenta. O chefe do grupo corre para um lado e para outro por entre as leiras de poltronas, encorajando os fracos e segurando os braços dos mais frenéticos. Quando a excitação faz-se demasiada, ele interrompe a música e suspende tudo. É difícil não se sentir afetado por uma tal cena: sente-se simpatia, compaixão e pavor ao mesmo tempo. No momento em que cessa a dança, por vezes veem-se flagelantes erguer os braços para o céu com suas correntes e, com uma voz tão profunda e um olhar tão forte e pio exclamar “Ya, Alá! Ó Deus!”, que se é tomado de admiração pelo modo como todo o seu ser se transfigura.

     Poder-se-ia designá-los uma orquestra do pesar; sua atuação é a de um cristal de massa. A dor que se infligem é a dor de Hussain. Na medida em que a representam, ela se torna a dor de toda a comunidade. Em consequência das batidas no peito, o que todos se põem a fazer, nasce aí uma massa rítmica. Sustenta-a o afeto da lamentação. Hussain foi-lhes arrebatado: pertence agora a todos juntos.
     Mas não são apenas os cristais das irmandades que de agram entre os presentes uma massa de lamentação. Também os pregadores e outros, apresentando-se isoladamente, produzem o mesmo efeito. A m de verificá-lo, ouça-se o que Gobineau vivenciou, na qualidade de testemunha ocular de um tal evento.

     O teatro está superlotado. Estamos no final de junho e sufocamos sob a imensa tenda. A multidão serve-se de refrescos. Um dervixe sobe ao palco e canta um hino. As pessoas acompanham-no com golpes no peito. Sua voz não é propriamente arrebatadora; o homem parece cansado. Não causa impressão alguma, e a cantoria esmorece. O homem parece senti-lo; ele para, desce do palco e desaparece. A calma volta a reinar. Então, um soldado alto e pesado, um turco com uma voz tonitruante, toma repentinamente da palavra e põe-se a bater no próprio peito com ressonantes golpes, cada vez mais violentos. Um outro soldado, turco também, pertencente a outro regimento, mas tão esfarrapado quanto o primeiro, encarrega-se da resposta. Com precisão, reiniciam-se os golpes no peito. Durante 25 minutos, a massa ofegante é arrebatada por esses dois homens e golpeia-se terrivelmente. O canto monótono e de ritmo forte os extasia. Golpeiam-se tanto quanto podem; ressoa um barulho abafado, profundo, regular e incessante, mas nem todos se contentam com ele. Um jovem negro, com um aspecto de carregador, levanta-se em meio à multidão sentada. Joga seu boné no chão e põe-se a cantar com toda a sua voz, enquanto, com os dois punhos, esmurra a própria cabeça raspada. Ele estava a uns dez passos de mim, de modo que pude acompanhar-lhe os movimentos todos. Seus lábios foram perdendo a cor; quanto mais ele perdia a cor, mais se animava; gritava e batia feito numa bigorna. Continuou fazendo aquilo por mais uns dez minutos. Os dois soldados, porém, já não aguentavam mais; estavam molhados de suor. Tão logo suas vozes precisas e poderosas deixaram de conduzi-lo e arrebatá-lo, o coro começou a hesitar e perder-se. Uma parte das vozes se calou, e o negro, qual lhe faltasse agora todo apoio material, fechou os olhos e desabou sobre seu vizinho. Todos pareciam sentir muita compaixão e respeito por ele. Puseram-lhe gelo na cabeça e levaram lhe água aos lábios. Mas ele desmaiara, e um certo tempo foi necessário para fazê-lo voltar a si. Já refeito, agradeceu suave e polidamente a todos os que o haviam ajudado.
     Tão logo alguma paz foi restabelecida, um homem num traje verde subiu ao palco. Não havia absolutamente nada de inusitado em sua pessoa; parecia um vendedor de especiarias vindo de algum bazar. Fez, então, um sermão sobre o paraíso, cuja grandeza descrevia com veemente eloquência. Para adentrá-lo, não bastava ler o Corão do profeta. “Não basta fazer tudo o que esse livro sagrado recomenda; não basta vir ao teatro para chorar, como vocês fazem diariamente. Suas boas ações, vocês têm de praticá-las em nome de Hussain e por amor a ele. Hussain é que é o portão do paraíso; é Hussain quem sustenta o mundo; é Hussain quem traz a salvação. Gritem: Hassan, Hussain!”
     A multidão toda gritou: “Ó Hassan, ó Hussain!”.
     “Muito bem. Agora, mais uma vez!” 
     “Ó Hassan, ó Hussain!” 
     “Roguem a Deus para que ele sempre conserve vocês no amor a Hussain. Vamos, roguem a Deus!” 
     Toda a massa ergue os braços para o alto a um só movimento e grita, com uma voz abafada e firme: “Ya, Alá! ó Deus!”.

     A paixão propriamente dita, que se segue a esse longo e agitado introito, compõe-se de uma série livre de quarenta a cinquenta cenas. Todos os acontecimentos são narrados aos profetas pelo anjo Gabriel, ou antevistos em sonhos, antes de serem representados no palco. O que quer que aconteça é algo já sabido dos espectadores; o que importa não é a tensão dramática, conforme nós a entendemos, mas a total participação. Todos os sofrimentos de Hussain — os tormentos da sede, uma vez que lhe cortaram o acesso à água, e os episódios durante a batalha, até sua morte — são descritos de maneira fortemente realista. Somente os imãs, os santos, os profetas e os anjos cantam. Figuras detestadas como o califa Yazid, que ordenou a morte de Hussain, e o assassino Shamir, que lhe desferiu o golpe fatal, não podem cantar: estes apenas declamam. Pode ocorrer de a monstruosidade de seus atos os subjugar. Nesse caso, irrompem em lágrimas enquanto pronunciam suas palavras malignas. Não há aplauso; as pessoas choram, gemem ou golpeiam a própria cabeça. A excitação dos espectadores atinge tamanha intensidade que não raro tentam linchar as personagens vis, os assassinos de Hussain. Perto do final, é mostrado de que forma a cabeça cortada do mártir é trazida até a corte do califa. No meio do caminho, os milagres sucedem-se. Um leão curva-se profundamente ante a cabeça de Hussain. O cortejo detém-se junto a um mosteiro cristão: ao divisar a cabeça do mártir, o abade abjura sua fé e converte-se ao islamismo.
     A morte de Hussain não foi em vão. Quando da ressurreição, a chave do paraíso ser-lhe-á confiada. O próprio Deus determina: “O direito da intercessão é exclusivamente dele. Hussain, por minha graça especial, é para todos o mediador”. O profeta Maomé entrega a Hussain a chave do paraíso e diz: “Vai, tu, e salva das chamas todo aquele que, em vida, derramou ao menos uma lágrima por ti; todo aquele que, de algum modo, te ajudou; todo aquele que empreendeu uma peregrinação até teu santuário ou lamentou por ti; e todo aquele que por ti escreveu versos trágicos. Leva cada um deles contigo ao paraíso”.
      Nenhuma fé jamais conferiu maior ênfase à lamentação. Ela constitui o mais elevado mérito religioso, superior em muito a qualquer outra boa ação. Justifica-se, decerto, falar-se aqui em uma religião de lamentação.
     Seu paroxismo, porém, esse tipo de massa não o atinge nos teatros, durante a encenação da paixão. Envolvendo meio milhão de pessoas, o “dia do sangue”, nas ruas de Teerã, foi descrito por uma testemunha da forma como se segue. Dificilmente poder-se-á encontrar relato mais sinistro e contundente.

     Tomadas pelo delírio, 500 mil pessoas cobrem a cabeça de cinzas e batem com a testa no chão. Desejam submeter-se ao martírio voluntário, querem matar-se em grupos e mutilar-se refinadamente. As procissões das corporações sucedem-se, uma atrás da outra. Como se compõem de pessoas que conservaram ainda um vestígio de razão — isto é, o instinto da autopreservação humana —, seus participantes apresentam-se vestidos normalmente.
     Faz-se um grande silêncio; às centenas, surgem homens trajando camisas brancas, o rosto em êxtase voltado para o céu.
     Destes homens, vários estarão mortos, muitos mutilados e desfigurados ao anoitecer, e suas camisas brancas, tingidas de vermelho, transformar-se-ão em mortalhas. Tais seres já não pertencem mais à terra. Suas camisas grosseiramente talhadas deixam à vista apenas o pescoço e as mãos — rostos de mártires, mãos de assassinos.
     Sob gritos de encorajamento e contagiados por seu delírio, outros lhes entregam sabres. Sua excitação torna-se, então, assassina; eles giram em círculos sobre si mesmos e brandem sobre a cabeça as armas que lhes foram dadas. Seus gritos encobrem os da massa. Para suportar a dor, têm de mergulhar num estado de catalepsia. Com passos de autômatos, caminham para a frente, para trás, para os lados, sem nenhuma ordem aparente. A cada passo, golpeiam compassadamente a própria cabeça com os sabres serrilhados. O sangue escorre. As camisas tingem-se de um vermelho-escarlate. A visão do sangue intensifica ao máximo a confusão em suas mentes. Alguns desses mártires voluntários desabam, brandindo seu sabre para todos os lados. De suas bocas seladas o sangue começa a escorrer. Em seu frenesi, acabaram por cortar veias e artérias, morrendo ali mesmo, antes que a polícia tenha tempo de transportá-los para um pronto-socorro, instalado atrás das portas fechadas de uma loja.
      Insensível aos golpes dos policiais, a massa fecha-se sobre tais homens, acolhendo-os e arrastando-os para uma outra parte da cidade, onde o banho de sangue prossegue. Nem uma única pessoa preserva sua clareza mental. Os que não têm eles próprios coragem para derramar seu sangue oferecem coca aos outros, para fortalecê-los, incitando-os por meio desse expediente e de imprecações.
     Mártires despem suas camisas, consideradas abençoadas, dando-as àqueles que levam consigo. Outros, que de início não se incluem entre as vítimas voluntárias, descobrem subitamente sua sede de sangue. Exigem armas, arrancam suas roupas e infligem-se ferimentos pelo corpo.
     Por vezes, abre-se uma lacuna na procissão: um dos participantes cai no chão, exausto. A lacuna é prontamente preenchida; a massa fecha-se sobre o desafortunado, chuta-o com os pés e o pisoteia.
     Não há destino mais belo do que morrer em plena ashura; os portais dos oito paraísos encontram-se escancarados para os santos, e todos buscam entrar.
     Os soldados em serviço, aos quais cabe cuidar dos feridos e manter a ordem, são tomados pela excitação da massa. Livram-se de seu uniforme e mergulham eles próprios no banho de sangue.
     O delírio toma conta das crianças também, até mesmo das bem pequenas: ao lado de uma fonte, uma mãe, inebriada de orgulho, aperta contra o peito o filho que acabou de mutilar-se; um outro chega correndo e gritando: arrancou fora um olho e, passados uns poucos instantes, arranca também o outro; os pais o contemplam enlevados.

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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

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