quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Thomas Mann - A Montanha Mágica: Assalto rechaçado (b)

Thomas Mann

A Montanha Mágica
 
Capítulo VI

Assalto rechaçado
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continuando...

     James Tienappel, que Hans Castorp chamava “tio James” ou simplesmente “James”, era um homem de pernas longas, à beira dos quarenta, que trajava ternos de tecidos ingleses e roupa de baixo de nívea alvura; tinha cabelos de um amarelo canário, olhos azuis, pouco distantes entre si, um bigodinho de palha, semi-aparado, e mãos cuidadosamente tratadas. Esposo e pai havia alguns anos, nem por isso se vira forçado a abandonar a espaçosa vivenda do velho cônsul, à Avenida de Harvestehude; desposara uma moça da sua classe social, que era tão civilizada e distinta quanto ele e falava da mesma maneira suave, acelerada, correta e polida. Lá embaixo, era considerado um homem de negócios muito enérgico, circunspecto e – apesar de toda a sua elegância – friamente realista. Mas, num ambiente onde reinavam costumes diferentes, por ocasião de viagens, pelo sul da Alemanha, por exemplo, assumia certa atitude de adaptação precipitada, uma pressurosa e cortês tendência para renegar a si mesmo, que absolutamente não revelava uma falta de fé na própria cultura, senão, ao contrário, a consciência da limitação que a fazia forte, bem como o desejo de corrigir o seu particularismo aristocrático e de não deixar perceber a menor surpresa diante de formas de existência que lhe pareciam incríveis. “Claro, perfeitamente, compreendo”, apressava-se a dizer, para que ninguém pensasse que ele, embora distinto, era um espírito estreito. Chegara a Davos com uma missão precisa e concreta, com o encargo e na intenção de intervir com firmeza na situação do parente pachorrento, de “arrancá-lo”, segundo ele mesmo dizia, e de devolvê-lo ao lar. E, todavia, não deixara de perceber que estava operando em terreno estranho. Desde o primeiro momento sentira-se acolhido por um mundo singular, um ambiente moral cuja segurança de si próprio não era menos forte do que a sua, e até a ultrapassava. Aconteceu assim que a sua energia de homem de negócios entrou imediatamente num conflito com a sua boa educação, e mesmo num conflito dos mais graves, uma vez que a confiança altiva desse ambiente novo se manifestava deveras esmagadora.
    Era precisamente isso o que previra Hans Castorp, quando, no seu íntimo, respondera ao cônsul com um sereno “Como quiser”. Mas não há motivo para acreditar que o sobrinho conscientemente tirasse partido, contra o seu tio, da força de caráter do mundo ambiente. Hans Castorp já estava por demais identificado com esse meio para que pudesse proceder assim. Não era ele quem se valia dessa força; pelo contrário, tudo ocorria com a simplicidade mais natural, a partir do momento em que o primeiro pressentimento da inutilidade da sua empresa vagamente roçou o espírito do cônsul, até o clímax e o desfecho, que Hans Castorp, apesar de tudo, não pôde deixar de acompanhar com um sorriso melancólico.
     Na primeira manhã, depois do café, durante o qual o veterano apresentou o visitante à roda dos comensais, Tienappel travou conhecimento com o Dr. Behrens, que, comprido e corado, remando com as mãos, atravessava a sala em companhia do assistente pálido, vestido de preto, e passava de mesa em. mesa com o seu retórico “Dormiu bem?” de todos os dias. E o cônsul ficou sabendo, da parte do conselheiro, que não somente era uma excelente idéia fazer companhia ao neveu solitário, mas que isso parecia recomendável também no seu próprio interesse, porque, evidentemente, estava muito anêmico. Anêmico, ele, Tienappel? – E bastante! – retrucou Behrens, enquanto, com o indicador, abaixava uma das pálpebras inferiores do cônsul. – No mais alto grau – acrescentou. – O senhor faria muito bem se durante algumas semanas se instalasse comodamente na sacada, estendendo-se na espreguiçadeira e imitando em todos os pontos o exemplo de seu sobrinho. No seu estado, o procedimento mais inteligente é portar-se como se estivesse atacado de uma leve tuberculosis pulmonum, que, aliás, existe latente em todas as pessoas. 

– Perfeitamente, compreendo – apressou-se o cônsul a responder. Com os olhos acompanhando por um instante a figura do médico, com a nuca saliente, que remava ao se afastar, deixou-se ficar com a boca semiaberta, numa atitude polida e pressurosa, ao passo que Hans Castorp, a seu lado, se mantinha perfeitamente calmo e impassível. Depois começaram o passeio em direção ao banco junto do curso de água, que era o que o momento exigia. A seguir, James Tienappel fez a sua primeira hora de repouso, instruído por Hans Castorp, que, além do plaid que o tio trouxera consigo, lhe emprestou ainda um dos seus cobertores de lã de camelo – por causa do bom tempo outonal bastava-lhe sobejamente um só cobertor – e lhe ensinou com todo o cuidado, manobra por manobra, a arte tradicional de se enrolar. Mesmo depois de o cônsul já se achar agasalhado e convertido numa múmia lisa e cilíndrica, o sobrinho desmanchou tudo e mandou o tio repetir o processo inteiro, corrigindo-o apenas em caso de necessidade. Mostrou-lhe ainda como o guarda-sol era fixado na cadeira e orientado em relação ao sol.

     O cônsul pôs-se a gracejar. O espírito da planície era ainda forte nele e fê-lo zombar daquilo que aprendia, assim como já zombara da extensão preestabelecida do passeio que haviam dado depois do café. Mas, ao ver o sorriso plácido e incompreensivo com que o sobrinho acolhia as suas ironias, e no qual se espelhava toda a confiança serena que inspirava a tradição local, assustou-se, temeu pela sua energia de negociante e resolveu solicitar a entrevista decisiva com o conselheiro, sem demora, o mais rápido possível, nessa mesma tarde, quando ainda pudesse conduzi-la com as forças e idéias lá de baixo. Pois sentia que estas iam diminuindo, e que o espírito do lugar, aliado à sua boa educação, constituía adversário perigoso.
     Notou além disso que o médico lhe dera um conselho totalmente supérfluo, ao sugerir lhe que, em virtude da sua anemia, se submetesse ao regime dos enfermos; evidenciou-se que isso vinha por si mesmo, que, aparentemente, não se podia imaginar nenhuma outra alternativa, e de antemão era impossível para um homem bem-educado como ele discernir até que ponto a tranquilidade e a imperturbável segurança de Hans Castorp criavam essa aparência, e até onde essa impossibilidade existia real e irrestritamente. O fato de o segundo café da manhã sumamente abundante seguir-se ao primeiro repouso pareceu-lhe apenas natural, e dessa refeição resultou, de um modo convincente, o passeio até Davos-Platz, depois do qual Hans Castorp tornou a embrulhar o tio. Embrulhou-o – essa é a palavra adequada. E ao sol de outono, numa cadeira cujo conforto era indiscutível e mesmo digno dos mais altos elogios, deixou-o estendido, assim como ele próprio ficava, até que o ribombante gongo os convidou a tomar, em companhia dos demais pensionistas, o almoço, que estava excelente, saborosíssimo, e era de tal maneira farto, que o subsequente repouso geral se afigurava, não como um mero hábito exterior, senão como uma necessidade interior, à qual todos se submetiam por convicção pessoal. Isso continuou até o estupendo jantar e a reunião noturna no salão, em torno dos instrumentos ópticos. Nada havia que objetar contra uma ordem do dia que se impunha com tão branda naturalidade; ela não teria oferecido nenhuma oportunidade para objeções, mesmo que as capacidades críticas do cônsul não se encontrassem minguadas em virtude do seu estado, que ele não queria qualificar precisamente de mal-estar, mas que representava uma combinação desagradável de fadiga e excitação, acrescida de calor e de frio.
     A fim de marcar uma hora para a ansiosamente almejada entrevista com o conselheiro Behrens, James Tienappel seguira a via hierárquica. Hans Castorp dirigira o requerimento ao massagista, que o encaminhara à Superiora, cuja pessoa singular o Cônsul Tienappel chegou a conhecer nessa ocasião. Surgiu ela na sua sacada, onde o achou deitado, e suas maneiras estranhas sujeitaram a dura prova a boa educação do cônsul, estendido sem defesa no invólucro cilíndrico dos cobertores. Que o prezado rapaz – assim se expressou a enfermeira-chefe – tivesse paciência durante alguns dias, pois o conselheiro andava atarefado com intervenções cirúrgicas e exames gerais. A humanidade sofredora tinha preferência, em conformidade com a ética cristã, e como o cônsul alegasse estar bem de saúde, devia acostumar-se ao fato de não ser ali em cima o número 1 e de ter de esperar na fila até chegar a sua vez. Seria diferente se porventura quisesse pedir um exame médico, o que a ela, Adriática, não causaria espécie. Bastava olhar-lhe os olhos, assim de perto, para ver que estavam turvos e irrequietos. A julgar pelo seu aspecto, absolutamente não dava a impressão de estar com o organismo em perfeita ordem; que a compreendesse bem: não lhe parecia lá muito limpo... Tratava-se de saber – terminou a Superiora – se o cônsul desejava uma consulta ou uma entrevista de caráter particular. 

– Uma entrevista particular, naturalmente – assegurou o cônsul, do seu leito.

     Nesse caso devia esperar até que fosse chamado. O conselheiro não dispunha de muito tempo para entrevistas particulares.
     Numa palavra, tudo se passou de modo bem diverso daquele que James imaginara. A conversa com a Superiora abalara-lhe consideravelmente o equilíbrio. Por demais civilizado para dirigir-se com desabrida franqueza ao sobrinho cuja calma impassível demonstrava o pleno acordo em que Hans Castorp se achava com os fenômenos ali de cima, e para dizer-lhe quão horrorosa lhe parecia aquela megera, limitou-se a sondar cautelosamente o terreno. Fez notar que a Superiora era, sem dúvida, uma senhora muito original, o que o sobrinho admitiu em parte, após ter lançado ao ar um olhar vagamente interrogador. Perguntou por sua vez ao tio se a Mylendonk lhe vendera um termômetro. – Não! A mim? Ela costuma fazer isso? – tornou o tio... Mas a fisionomia do sobrinho demonstrava claramente – e isso era o pior – que ele não se teria admirado nem um pouquinho se o contrário tivesse acontecido. “Nós não sentimos o frio”, podia-se ler no rosto de Hans Castorp. O cônsul, porém, ressentia-se do frio, ressentia-se dele sem cessar, apesar de a cabeça lhe arder. Se a Superiora realmente lhe houvesse oferecido um termômetro – disse ele de si para si –, decerto o teria rejeitado; mas talvez tivesse feito mal, porquanto não convinha a um homem civilizado usar o termômetro de outra pessoa, como, por exemplo, o do sobrinho.
     Assim decorreram alguns dias, uns quatro ou cinco. A vida do emissário avançava sobre trilhos – sobre os trilhos que se achavam preparados para ela, e dos quais parecia inimaginável apartar-se. O cônsul fez experiências, recebeu impressões – não nos queremos dar o trabalho de observa-lo nessa empresa. Um belo dia, no quarto de Hans Castorp, apanhou uma chapinha de vidro preto que, recostada num minúsculo cavalete lavrado, se achava na cômoda, junto com outros objetos pessoais com que o morador do asseado aposento comprazia-se em adorná-lo. Mantendo-a contra a luz, verificou tratar-se de um negativo fotográfico. – Que é isso? – perguntou o tio, enquanto o olhava... Havia motivo para perguntar assim. O retrato não tinha cabeça; era o esqueleto de um torso humano, envolto numa névoa de carne um torso feminino, segundo se podia reconhecer. – Isso? É uma lembrança – disse Hans Castorp. Ao que o tio replicou: – Perdão! – Repôs o retrato no cavalete e afastou-se depressa. Isto é apenas um exemplo das experiências e das impressões por que James Tienappel passou nesses quatro ou cinco dias. Participou também de uma conferência do Dr. Krokowski, uma vez que era impossível não fazê-lo. E quanto à ambicionada entrevista particular com o Dr. Behrens, teve a satisfação de obtê-la no sexto dia. Marcaram-lhe uma hora, e depois do café da manhã desceu ao subsolo, decidido a dizer algumas palavras enérgicas a respeito de seu sobrinho e do tempo que este desperdiçava ali.
     Quando voltou, perguntou numa voz suavizada:

– Onde já se viu isso? 

     No entanto, era evidente que Hans Castorp já ouvira coisa semelhante e que essa impressão tampouco o faria sentir frio. Assim o tio cortou a conversa, e às perguntas pouco curiosas do sobrinho limitou-se a responder: – Ah, nada! – A partir daquele momento, porém, manifestou um novo hábito: o de olhar obliquamente para cima, com o cenho franzido e os lábios em bico, para, logo depois, virar a cabeça num movimento brusco e fixar em direção oposta o olhar que acabamos de descrever... Seguira também a entrevista com Behrens um curso diferente daquele que o cônsul previra? Falara-se, no curso dela, não somente de Hans Castorp, mas também do próprio James Tienappel, a tal ponto que a conversa perdera o caráter de uma entrevista particular? A conduta do cônsul indicava isso. Mostrava-se ele altamente animado, tagarelando muito, rindo-se sem motivo, acotovelando o flanco do sobrinho e exclamando: – Que tal, meu velho? – De vez em quando reaparecia aquele olhar primeiro numa e depois noutra direção. Mas seus olhos seguiam também rumos mais precisos, tanto à mesa como durante os passeios regulamentares e as reuniões noturnas.
     A princípio, o cônsul não prestara maior atenção a uma certa Srª. Redisch, esposa de um industrial polonês, que tinha o seu lugar à mesa da Srª. Salomon, de momento ausente, e do colegial voraz, com os óculos redondos. E de fato não passava ela de uma das numerosas damas que povoavam os alpendres de repouso; era uma baixinha morena, cheia de corpo, já não muito jovem, ligeiramente grisalha, com uma pequena papada engraçadinha e olhos castanhos bastante vivos. Sob o ponto de vista da sua cultura, absolutamente não poderia comparar-se com a esposa do Cônsul Tienappel, lá embaixo, na planície. Mas, na noite de domingo, depois do jantar, o cônsul fizera, no vestíbulo, uma descoberta, graças a um vestido preto, muito decotado e enfeitado de lantejoulas, que a Srª. Redisch trajava: tinha ela seios, seios de mulher, muito comprimidos e de uma alvura mate, seios cuja linha de separação era visível até muito embaixo. Essa descoberta abalara o homem maduro e refinado até o fundo da sua alma, entusiasmando-o como se fosse coisa inédita, insuspeitada e nunca vista. Procurou travar conhecimento com a Srª. Redisch e conseguiu-o. Conversou demoradamente com ela, primeiro de pé e depois sentado. Cantarolava quando ia recolher-se. No dia seguinte, a Srª. Redisch já não envergava o vestido preto com as lantejoulas, mas apareceu toda encoberta. O cônsul, porém, sabia o que sabia e permanecia fiel às suas impressões. Empenhava-se em encontrar-se com a senhora durante os passeios regulamentares, a fim de caminhar a seu lado, palestrando com ela de forma particularmente galante e insistente. À mesa bebia à sua saúde, o que ela retribuía com um sorriso que fazia brilhar as cápsulas de ouro que revestiam alguns dos seus dentes. Numa conversa com o sobrinho, o cônsul chegou a declarar que a Srª. Redisch era realmente uma “mulher divina”, depois do que tornou a cantarolar. Hans Castorp suportava tudo isso com serena indulgência, e sua fisionomia expressava que essas coisas lhe pareciam naturais. Mesmo assim não contribuíam para consolidar a autoridade do parente mais velho e condiziam mal com a missão do cônsul. A refeição durante a qual ele saudou a Srª. Redisch com o copo erguido – e isso por duas vezes, ao chegar o prato de peixe, e mais tarde, quando serviam o sorvete – era a mesma que o Conselheiro Behrens tomou à mesa de Hans Castorp e do visitante, uma vez que era seu costume comer sucessivamente em cada uma das sete mesas, onde lhe ficava reservado um talher numa das pontas. Com as enormes manzorras juntas diante do prato, e com o bigodinho retorcido, o médico deixava-se ficar entre o Sr. Wehsal e o corcunda mexicano, com o qual conversava em espanhol – sabia todas as línguas, inclusive o húngaro e o turco. Com os olhos azuis, saltados e estriados de sangue, observou como o Cônsul Tienappel saudava a Srª. Redisch com a taça de bordeaux. Mais tarde, no decorrer da refeição, o conselheiro fez uma pequena preleção, animado por James, que, através de toda a extensão da mesa, lhe perguntou à queima-roupa o que se passava com o homem quando apodrecia. Pediu ao conselheiro, que estudara todas as coisas fisiológicas, cuja especialidade era o corpo, e que se podia intitular uma espécie de príncipe do corpo, que lhes informasse do que ocorria quando a carne se decompunha. 

– Antes de tudo lhe estoura a barriga – explicou o conselheiro, fincando os cotovelos na mesa e inclinando-se para as mãos postas. – O senhor acha-se estendido sobre o seu leito de serragem e de estilhas, e os gases – não sabe? – começam a inchar-lhe o cadáver, a intumescê-lo poderosamente, assim como meninos malvados fazem com as rãs que enchem de ar. Aos poucos, o senhor se transforma num verdadeiro balão. Finalmente, a pele do seu ventre não suporta mais a tensão e rebenta. Pum! Com isso, o senhor sente grande alívio. Faz como Judas Iscariotes quando caiu do galho: todas as suas entranhas se derramam. Bem, e depois disso o senhor volta, em certo sentido, a ser apresentável. Se lhe concedessem uma licença poderia visitar a sua família sem causar o menor escândalo. É o que se chama deixar de feder. Quando a gente sai então ao ar livre, torna-se de novo um tipo decente, como aqueles cidadãos de Palermo que estão pendurados nos subterrâneos do convento dos capuchinhos, fora da Porta Nuova. Pendem ali sequinhos e elegantes e gozam de estima geral. O que importa é somente deixar de feder. 
– Compreendo – disse o cônsul. – Muito obrigado. E no dia seguinte, pela manhã, tinha desaparecido.
 
     Fora-se, partira com o primeiro trenzinho para a planície. Claro que deixara tudo em ordem. Quem poderia pensar o contrário? Liquidara a conta, pagara o preço de um exame médico, e clandestinamente, sem nada dizer ao sobrinho, aprontara as duas maletas. Provavelmente o fizera à noite ou de madrugada. Quando Hans Castorp, na hora do café da manhã, entrou no quarto do tio, encontrou-o desocupado.
     Com as mãos nos quadris, exclamou: – Ora essa! – Foi nesse instante que a sua fisionomia esboçou um sorriso melancólico. – Ah, sim! – disse, sacudindo a cabeça. Alguém acabava de fugir, precipitadamente, numa pressa silenciosa, como se precisasse aproveitar a resolução de um dado momento e tudo se tratasse de não perder a oportunidade. Atirara as suas coisas na maleta e sumira, sozinho, não acompanhado, sem ter cumprido a sua honrosa missão, dando-se por muitíssimo feliz por ter escapado são e salvo, esse homem de valor, o trânsfuga que desertava para a bandeira da planície, o tio James! Pois então, boa viagem!
     Hans Castorp não deixou ninguém perceber que nada soubera da iminência da partida do parente visitante. Especialmente escondeu a sua surpresa ao porteiro coxo, que acompanhara o tio até a estação. Recebeu do lago de Constança um cartão-postal que o informava de que James, chamado por telegrama, se vira obrigado a regressar à planície por causa de negócios. Não quisera incomodar o sobrinho... Uma mentira formal! “Desejo que sua estadia continue agradável.” Era ironia? Nesse caso seria bastante forçada, julgou Hans Castorp, pois o tio decerto não pensara em gracejos e zombarias quando se lançara ao trem. Pelo contrário, verificara, pálido de terror, numa visão íntima, que, se agora voltasse à planície, depois de ter passado oito dias ali em cima, continuaria ainda durante um tempo considerável a achar redondamente errada, contrária à natureza e inconveniente, a vida de uma pessoa que, após o café da manhã, ao invés de sair para o passeio regulamentar e a seguir estender-se ao ar livre, embrulhada em cobertores segundo o ritual, se encaminhasse ao escritório. E essa percepção assustadora fora o motivo imediato da sua fuga.
     Terminou assim a tentativa da planície de se reapossar do fugitivo Hans Castorp. O jovem não se iludiu quanto à importância decisiva que o malogro completo, por ele previsto, tinha no que se referia às suas relações para com a gente lá de baixo. Significava isso, da parte da planície, a renúncia definitiva, que ela aceitava dando de ombros, e para ele, a liberdade completa, em face da qual o seu coração aos poucos deixava de estremecer.

continua pág 287...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Assalto rechaçado (b)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

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