sábado, 30 de agosto de 2025

Émile Zola - Germinal: Primeira Parte - (VI.b) nesse deus repleto e acocorado

Germinal

Émile Zola

Tradução de Francisco Bittencourt

Primeira Parte

VI
 continuando...

      A sala era pequena, de uma nudez clara com suas três mesas e sua dúzia de cadeiras, seu balcão de pinho, do tamanho de um guarda-comida de cozinha. Havia, quando muito, uns dez copos, três garrafas de licor, um garrafão, uma pequena caixa de zinco com torneira de estanho para a cerveja e nada mais, nenhuma imagem, nenhuma prateleira, nenhum jogo. No fogão de ferro fundido, envernizado e brilhante, ardia brandamente uma pazada de hulha. Sobre as lajes, uma camada fina de areia branca absorvi a contínua umidade daquela região encharcada.

— Uma cerveja — pediu Maheu a uma moça gorda e loura, filha de uma vizinha e que às vezes cuidava do estabelecimento. — J. Rasseneur está?

     Abrindo a torneira, ela respondeu que o patrão vinha já Lentamente, de um só trago, o mineiro bebeu metade do copo, para limpar a garganta da poeira que a obstruía. Não ofereceu nada a seu companheiro. Um único freguês, um outro mineiro molhado e lambuzado, estava sentado a uma mesa e bebia sua cerveja em silêncio, com ar de profunda meditação. Um terceiro entrou, foi servido a um gesto que fez, pagou e retirou-se sem dizer palavra.
     Apareceu um homem gordo, de trinta e oito anos, barbeado, de rosto redondo e sorriso bonachão: era Rasseneur, antigo britador que a companhia tinha despedido havia três anos, depois de uma greve. Ótimo operário, falava bem, punha-se à frente de todas as reclamações e acabara sendo chefe dos descontentes. Sua mulher já tinha um pequeno estabelecimento, como muitas mulheres de mineiros; quando foi posto na rua, resolveu ser taberneiro, arranjou dinheiro e estabeleceu-se defronte da Voreux, como numa provocação à companhia. Atualmente sua casa prosperava, tornava-se um ponto de encontro, e ele enriquecia com as cóleras que pouco a pouco insuflara em seus antigos companheiros.

— É o rapaz que eu empreguei esta manhã — explicou Maheu sem mais preâmbulos. — Tens um dos teus dois quartos desocupado e queres dar-lhe crédito por uma semana?

     O rosto largo de Rasseneur ficou subitamente desconfiado. Examinou Etienne com um olhar rápido e respondeu, sem tentar fingir que sentia muito:

— Impossível; meus dois quartos estão ocupados.

     O rapaz esperava por aquela recusa, e no entanto sofreu com ela; espantou-se mesmo com o repentino desgosto que sentia por ter de partir. Mas que importa! Iria embora logo que recebesse os trinta soldos. O mineiro que bebia a uma mesa tinha saído. Outros, um a um, entravam para molhar a garganta e punham-se novamente a caminho com o mesmo passo cansado. Era uma simples lavagem de garganta, sem alegria ou paixão; o mudo saciar de uma necessidade.

— Então, que há de novo? — perguntou num tom misterioso Rasseneur a Maheu, que acabava sua cerveja a pequenos goles.

     Este virou-se e viu que apenas Etienne se encontrava na peça.

— Houve outra briga... por causa do revestimento.

     Contou o caso. O rosto do taberneiro ficou vermelho; uma cão sangüínea, que lhe saía em chamas pela pele e olhos, inchou-o. Por fim, explodiu:

— Agora sim! Se eles baixarem os salários, estão perdidos.

     A presença de Etienne o incomodava, mas assim mesmo continuou, lançando-lhe de vez em quando olhares oblíquos. Falava cheio de reticências, de subentendidos, citava o diretor, o Sr. Hennebeau, sua mulher, seu sobrinho, o pequeno Négrel, sem contudo os nomear, repetindo que isso não podia continuar assim, que mais dia menos dia ia explodir. A miséria era grande demais, citou as fábricas que estavam fechando, os operários despedidos. Havia um mês que dava mais de três quilos de pão por dia. Na véspera, tinham-lhe dito que o Sr. Deneulin, o proprietário de uma mina vizinha, já não sabia como aguentar. Para completar, acabava de receber uma carta de Lille cheia de detalhes inquietadores.

— Sabes de quem? — murmurou ele. — Daquela pessoa que viste aqui uma noite.

     Nisso foi interrompido; entrou sua esposa, uma mulher alta, magra e nervosa, de nariz comprido e pômulos violáceos. Em política era muito mais radical que o marido.

— A carta de Pluchart! — exclamou ela. — Ah, se aquele estivesse no comando, isto endireitava logo.

     Etienne começara a escutar, a compreender, a se apaixonar por essas ideias de miséria e de desforra. Aquele nome atirado por acaso fê-lo estremecer. Disse alto, quase involuntariamente:

— Eu conheço Pluchart. Olharam-no; teve de acrescentar: — Sim, eu sou operador de máquinas, ele foi meu contramestre em Lille. Um homem capaz; conversei muitas vezes com ele.

     Rasseneur examinou-o novamente: houve no seu rosto um movimento rápido, uma mudança súbita. Por fim disse à mulher:

— Maheu trouxe este senhor, trabalha para ele como operador de vagonetes, quer saber se não há um quarto desocupado em cima e se não poderíamos dar-lhe crédito por uma quinzena.

     O negócio foi fechado em quatro palavras. Havia um quarto, o inquilino partira de manhã. E o taberneiro, cada vez mais exaltado, desabafou tudo, repetindo sempre que só pedia o possível aos patrões, sem exigir, como muitos outros, coisas difíceis de obter. Sua mulher dava de ombros; ela queria seus direitos completos.

— Até amanhã — interrompeu Maheu. — Tudo isso não impede que desçamos à mina, e enquanto se descer haverá gente morrendo Olha para ti, forte e saudável desde que saíste de lá, há três anos.
— É verdade, estou muito melhor — declarou Rasseneur com bonomia.

     Etienne foi até a porta para agradecer ao mineiro que partia; este abanou a cabeça sem dizer palavra e o rapaz ficou ali, vendo-o subir com dificuldade o caminho do conjunto habitacional.
     A Sra. Rasseneur, que estava servindo fregueses, pedira-lhe que esperasse um minuto; em seguida o conduziria ao quarto para lavar-se. Devia ficar? Hesitava novamente, dominado por um mal-estar que o fazia sentir falta da liberdade das estradas abertas, da fome ao sol, sofrida com a alegria de ser dono de si. Parecia-lhe que vivera anos ali, desde a sua chegada ao aterro, no meio da borrasca, até as horas passadas debaixo da terra, arrastando-se pelas galerias escuras. Repugnava-lhe ter de começar; era injusto e demasiado duro; seu orgulho de homem revoltava-se à ideia de ter de ser um animal a quem se cega e esmaga.
     Enquanto Etienne se debatia nessa crise, seus olhos, que vagavam pela planície imensa, foram-na captando. Espantou-se; não imaginara assim o horizonte quando o velho Boa-Morte apontara com o dedo, no fundo das trevas. Clara, diante dele, ali estava a Voreux, numa depressão do terreno, com suas construções de madeira e de" tijolo, a triagem alcatroada, a torre do sino de rebate coberta de ardósia, a casa da máquina e a imensa chaminé de um vermelho pálido, tudo amontoado, de aparência lúgubre. Mas em torno das edificações desenrolava-se o pátio — e ele não o imaginara tão grande —, transformado num lago escuro pelas ondas cada vez maiores do estoque de carvão, eriçado de pontões altos que sustentavam os trilhos dos passadiços, atulhado a um canto com a provisão de madeira, semelhante à colheita de uma floresta ceifada. À direita, o aterro obstruía a vista, colossal como uma barricada de gigantes, já coberto de erva na parte mais antiga, consumido na outra por um fogo interior que ardia havia um ano, soltando uma fumaça espessa, deixando na superfície, entre o cinza esbranquiçado dos xistos e dos arenitos, extensos rastilhos de ferrugem cor de sangue. Depois, desenrolava-se o campo, plantações sem fim de trigo e beterraba ainda sem brotar naquela época do ano; pântanos de vegetação agreste entrecortada de alguns salgueiros definhados; prados longínquos separados por filas esguias de álamos. No fim do horizonte, pequenas manchas brancas indicavam as cidades: Marchiennes ao norte, Montsou ao sul e a leste a floresta de Vandame, orlando o espaço com a linha violácea das suas árvores despojadas. E, sob o céu lívido e de nuvens baixas daquele entardecer de inverno, parecia U todo o negrume da Voreux, toda a poeira esvoaçante da hulha que ia abater-se na planície, enodoando as árvores, saibrando as estradas, juncando a terra.
     Etienne olhava, e o que sobretudo o surpreendia era o canal, o Rio Scarpe - canalizado, que não tinha visto de noite. Da Voreux até Marchiennes, esse canal ia reto, uma fita de prata fosca de duas léguas, uma avenida debruada de árvores altas, correndo acima dos terrenos baixos, deslizando para o infinito com a perspectiva de suas ribanceiras verdes, de sua água pálida por onde escorregavam as popas vermelhas das chatas. Perto da mina havia um cais, barcos atracados que os vagonetes, de cima dos pontões, enchiam diretamente. A seguir, o canal fazia uma curva, cortando obliquamente os pântanos. Toda a alma dessa planície rasa parecia estar ali, nessa água geométrica que a cortava como uma estrada, carreando a hulha e o ferro.
     Os olhos de Etienne subiram do canal para o conjunto habitacional dos mineiros, construído no planalto, e de que distinguia somente as telhas vermelhas; depois voltaram à Voreux, pararam na base da ladeira argilosa, em dois enormes montes de tijolos, fabricados e cozidos ali mesmo. Um ramal da estrada de ferro da companhia passava por trás de uma paliçada, em direção à mina. Os últimos mineiros do desaterro deviam estar sendo descidos. Um único vagão, empurrado por homens, gemia nos trilhos. Aquilo já não era mais o ignoto das trevas, os trovões inexplicáveis, o resplendor de astros ignorados. Ao longe, os altos-fornos e as fornalhas de coque tinham empalidecido com a alvorada. O que continuava, sem descanso, era o escapamento da bomba, respirando com o mesmo fôlego grosso e amplo, a respiração de um monstro, cujo bafo cinzento ele via agora, e que nada podia fartar.
     Repentinamente, Etienne se decidiu. Talvez tenha acreditado estar entrevendo lá no alto, na entrada do conjunto habitacional, os olhos claros de Catherine. Antes talvez fosse um vento de revolta que vinha da Voreux, não sabia. Queria voltar a descer na mina para sofrer e combater; pensava com ódio nessas pessoas de quem falava Boa-Morte, nesse deus repleto e acocorado ao qual dez mil famintos davam sua carne sem nunca o terem visto.

continua na página 64...
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Primeira Parte - (VI.b) nesse deus repleto e acocorado
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O pai de Zola tinha 44 anos quando conheceu Émilie-Aurélie Aubert, numa de suas viagens a Paris. Apesar da grande diferença de idade — a moça não chegara aos vinte anos —, acabaram casando — se. O resultado dessa união foi Émile Zola, nascido em 12 de abril de 1840, durante uma estada do casal em Paris. O menino mal conheceu o pai: em 1847, François faleceu. 
As coisas ficaram difíceis. Sozinha e com grandes esforços, a mãe procurou equilibrar o orçamento doméstico e fazer que o filho estudasse. De certa forma, ela teve sucesso: Zola foi aluno do Colégio Notre-Dame e do Colégio de Aix. Quando o rapaz atingiu a maioridade, partiu com Émilie para Paris e, graças a um amigo da família, conseguiu um emprego na Alfândega.
Em dezembro de 1859, concluía sua primeira obra em prosa, Les Grisettes de Provence (As Costureirinhas de Provença). Continuava, porém, desconhecido e insatisfeito. Ele mesmo costumava dizer: "Ser sempre desconhecido é chegar a duvidar de si; nada engrandece os pensamentos de um autor como o sucesso".
Assim, no início de 1866, deixou o emprego para dedicar-se à literatura. 
Abandonou o romantismo de seus anos de adolescência e passou a admirar outros autores: Balzac (1799-1850), Stendhal (1783-1842), Flaubert (1821-1880). Essa guinada para o realismo devia-se principalmente às suas últimas leituras: das teorias evolucionistas de Darwin (1809-1882) até o Tratado da Hereditariedade Natural do Dr. Lucas, passando pela Filosofia da Arte de Taine (1328-1893). No entanto, o que parece tê-lo feito decidir-se pelo realismo foi a Introdução ao Estudo da Medicina Experimental (1865), de Claude Bernard (1813-1878). Essa obra foi importante para o rumo que Zola imprimiria a toda a sua obra: o rigor científico no romance, cujo objetivo, diria ele, é o mesmo das experiências de laboratório, isto é, o conhecimento da realidade. O que Claude Bernard havia feito com o corpo humano Zola faria com as paixões e os meios sociais.
Para fazer Germinal, Zola não se satisfez com a simples busca de documentos. Foi passar alguns meses numa região mineira. Morou em cortiços, bebeu cerveja e genebra nos botequins e desceu ao fundo dos poços para observar de perto o trabalho dos operários. Aos poucos foi se familiarizando com o meio onde viviam aqueles homens. Descobriu quais as principais doenças causadas pela mineração. Sentiu o problema dos baixos salários, os sacrifícios dos mineiros, a gota que cai com uma regularidade incrível sobre seus rostos, a dificuldade de empurrar um vagonete por um corredor estreito, o drama do salto na escuridão que eles têm de dar para poderem sobreviver. Numa passagem admirável, descreve a emoção de uma greve de operários. Mostra seu ódio animal. Um ódio que destrói tudo à sua passagem. Uma violência viva nos corpos que querem libertar-se, mesmo à custa da total destruição. Mostra também o amor feito sobre o carvão, os pequenos dramas das dívidas, as brigas no cortiço, a promiscuidade de pais e filhos em casas muito pequenas. A obra obteve enorme repercussão.
Em 29 de setembro de 1901, em Paris, Émile Zola morre asfixiado pelo gás do aquecedor.

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