sábado, 2 de agosto de 2025

Marcel Proust - O Caminho de Guermantes (2a.Parte - Podia até mesmo esperar ouvir)

em busca do tempo perdido

volume III
O Caminho de Guermantes

Segunda Parte

Capítulo Segundo

     Podia até mesmo esperar ouvir, com a jovem senhora, algum ruído de vagas, pois, à véspera do jantar, desencadeou-se uma tempestade. Eu começava a fazer a barba para ir à ilha e garantir o reservado (embora àquela época do ano a ilha estivesse vazia e o restaurante deserto), além de encomendar o cardápio para o jantar do dia seguinte, quando Françoise me anunciou Albertine. Fi-la entrar logo, indiferente a que ela me visse enfeado por um queixo preto, a mesma mulher para que, em Balbec, nunca me achava bastante bonito e que outrora me custara tanta agitação e sofrimento quanto agora a Sra. de Stermaria. Fazia questão que esta tivesse a melhor impressão possível da noite seguinte. Assim, pedi a Albertine que me acompanhasse imediatamente à ilha para ajudar-me a programar o cardápio. Aquela a quem se dá tudo é tão rapidamente substituída por uma outra que se fica espantado de dar o que se tem de novo, a cada hora, sem esperança de futuro. À minha proposta, o rosto sorridente e rosado de Albertine, sob um gorro liso que descia até muito baixo, até os olhos, pareceu hesitar. Ela devia ter outros projetos; em todo caso, sacrificou-os a mim facilmente, para minha grande satisfação, pois eu dava muito mais importância a ter comigo uma jovem que sabia cuidar da casa e poderia muito melhor do que eu encomendar o jantar.
     É certo que ela representara algo bem diverso para mim em Balbec. Mas nossa intimidade, mesmo quando não a julguemos então muito estreita, com uma mulher por quem somos apaixonados, cria entre ela e nós, apesar das carências que nos fazem sofrer, elos sociais que sobrevivem ao nosso amor e até a recordação desse amor. Então, naquela que já não é para nós mais que um meio e um caminho para outras, ficamos tão surpresos e divertidos ao compreender, por nossa memória, o quanto o seu nome significou de original para o outro ser que fomos outrora, como se, depois de ter indicado a um cocheiro um endereço, bulevar dos Capucines ou uma rua pensando somente na pessoa que vamos encontrar ali, percebêssemos que esses nomes foram antigamente o das monjas capuchinhas cujo convento ali se encontrava e o da barca que atravessava o Sena.
     Certamente os meus desejos de Balbec haviam tão bem amadurecido o corpo de Albertine, acumulando nele sabores tão vivos e doces que, durante a nossa caminhada até o Bois, enquanto o vento como um jardineiro zeloso sacudia as árvores, fazia cair os frutos e varria as folhas secas, dizia eu comigo que, se houvesse algum risco de que Saint-Loup estivesse enganado, ou que eu tivesse compreendido mal a sua carta e que meu jantar com a Sra. de Stermaria não levasse a nada, teria marcado encontro com Albertine naquela mesma noite, bem mais tarde, a fim de, durante uma hora puramente voluptuosa, tendo em meus braços o corpo de que a minha curiosidade havia outrora calculado e sopesado todos os encantos, encantos que agora superabundavam, esquecer as emoções e as tristezas desse começo de amor pela Sra. de Stermaria. E decerto, se pudesse supor que esta não me concederia nenhum favor nessa primeira noite, acharia muito decepcionante o tempo que passaria com ela. Sabia muito bem, por experiência própria, como os dois estágios, que se sucedem em nós nesses começos de amor por uma mulher que desejamos sem conhecê-la, amando nela, antes que a ela própria, quase desconhecida ainda, a vida particular em que se banha, como esses dois estágios estranhamente se refletem no domínio dos fatos; ou seja, não mais em nós mesmos, mas em nossos encontros com ela. Hesitamos, sem jamais ter falado com ela, tentados que estávamos pela poesia que representa para nós. Será ela ou uma outra? E eis que os sonhos se fixam a seu redor, não fazendo senão um todo com ela. O primeiro encontro, que em breve ocorrerá, deveria refletir esse amor nascente. De jeito nenhum. Como se fosse necessário que a vida material também tivesse o seu primeiro estágio, amando-a já, nós lhe falamos do jeito mais insignificante:

"Pedi-lhe que viesse jantar nesta ilha porque pensei que o cenário lhe agradaria. Aliás, não tenho nada de especial para lhe dizer. Mas receio que esteja muito úmido aqui e que sinta muito frio."

- "Não, não."
- "Está dizendo isso por amabilidade. Concedo que lute por mais um quarto de hora contra o frio, para não atormentá-la, mas, dentro de quinze minutos; levá-la-ei daqui à força: não quero que apanhe um resfriado." E, sem lhe ter dito coisa alguma, levamo-la de volta, sem lembrar nada dela; quando muito, uma certa maneira de olhar, mas só pensando em tornar a vê-la. Ora, dá segunda vez, sem nem mesmo encontrar mais o olhar, lembrança única, mas apesar disso só pensando em revê-la, o primeiro estágio já está ultrapassado. Nada ocorreu no intervalo. Entretanto, em vez de falar do conforto do restaurante, dizemos, sem que isso surpreenda a pessoa nova, que achamos feia, mas a quem desejaríamos que falasse de nós em todos os momentos de sua vida:

"Temos muito que fazer para vencer todos os obstáculos acumulados entre nossos corações. Julga que conseguiremos? Acredita que possamos ter razão contra os nossos inimigos e esperar um futuro feliz?" 

     Mas essas conversas opostas, a princípio insignificantes e depois fazendo alusão ao amor, entre nós não ocorreriam, eu podia crer na carta de Saint-Loup. A Sra. de Stermaria se entregaria desde a primeira noite, e eu não teria portanto necessidade de convocar Albertine, como último caso, para o fim da noite. Era inútil, Robert nunca exagerava, e sua carta era bem clara! 
     Albertine falava pouco, pois sentia que eu estava preocupado. Demos alguns passos, sob a grota esverdeada, quase submarina, de uma espessa mata, sobre cuja cúpula ouvíamos zunir o vento e salpicar a chuva. 
     Eu esmagava contra a terra as folhas secas que afundavam no solo como conchas e empurrava com a bengala castanhas picantes como ouriços. Nos galhos, as últimas folhas convulsas só seguiam o vento no comprimento de seu pedúnculo; porém, às vezes, rompendo-se este, elas caíam por terra e alcançavam o vento correndo. Eu pensava, com alegria, o quanto, se esse tempo continuasse, estaria a ilha mais distante ainda e, de qualquer modo, inteiramente deserta. Subimos de novo para o carro e, como a borrasca se acalmara, Albertine me pediu que seguíssemos até Saint-Cloud. Assim como as folhas secas embaixo, no alto as nuvens seguiam o vento; crepúsculos migratórios, cuja superposição rósea, azul e verde era vista através de uma espécie de seção cônica praticada no céu, já estavam preparados com destino a climas mais amenos. 
     Para ver de mais perto uma deusa de mármore que se erguia em seu pedestal e, sozinha num grande bosque que lhe parecia ser dedicado, enchia-o do terror mitológico, meio animal, meio sagrado, de seus impulsos furiosos, Albertine subiu num montículo, enquanto eu a esperava no caminho. Ela mesma, vista assim de baixo, não mais gorda e roliça como no outro dia na minha cama, onde os sulcos do seu pescoço surgiam à lupa dos meus olhos mais próximos, mas cinzelada e fina, parecia uma pequena estátua sobre a qual os minutos felizes de Balbec tinham passado a sua pátina. Quando voltei a estar sozinho em casa, lembrando-me que fizera uma excursão à tardinha com Albertine, que jantaria dois dias depois em casa da Sra. de Guermantes e que precisava responder a uma carta de Gilberte, três mulheres que eu havia amado, disse comigo mesmo que a nossa vida social é, como um ateliê de artista, repleta de esboços abandonados onde, por um momento, julgáramos poder fixar nossa carência de um grande amor, mas não imaginava que algumas vezes, se o esboço não é muito antigo, pode acontecer que o retomemos e fazemos dele uma obra completamente diversa, e talvez até mais importando que aquela que a princípio havíamos projetado. 
     No dia seguinte fez um tempo bom, mas frio: sentia-se o inverno (e, de fato, a estação se antecipara tanto que seria um milagre se encontrássemos no Bois, já devastado, algumas cúpulas de ouro verde). Ao despertar, vi, como da janela da caserna de Doncieres, a bruma fosca, densa e branca, que pendia alegremente ao sol, consistente e doce como açúcar em fio. Depois o sol se escondeu e a bruma se tornou ainda mais espessa a tarde. E logo escureceu e fui fazer a minha toalete, pois ainda era muito cedo para sair; decidi mandar um carro à Sra. de Stermaria. Não tive coragem de ir nele, para não forçá-la a fazer o trajeto comigo, mas pelo cocheiro mandei-lhe um bilhete no qual perguntava se permitia que eu fosse busca-Ia. Enquanto esperava, estendi-me na cama, fechei os olhos por um momento e depois voltei a abri-los. Acima das cortinas só havia uma delgada faixa de luz que ia escurecendo. Reconhecia essa hora inútil, profundo vestíbulo do prazer, e cujo vazio sombrio e delicioso já aprendera a conhecer em Balbec; quando estava sozinho no quarto como agora, e todos os demais jantavam, eu via sem tristeza o dia morrer acima das cortinas, sabendo que em breve, após uma noite tão curta como as do pólo, ele haveria de ressuscitar mais brilhante na fulguração de Rivebelle. Saltei da cama abaixo, passei a gravata preta, dei uma escovadela nos cabelos, últimos gestos de um aprontamento tardio, executados em Balbec, pensando não em mim mas nas mulheres que veria em Rivebelle, enquanto lhes sorria de antemão no espelho oblíquo do quarto, e que, por causa disso, ficaram sendo os signos precursores de um divertimento mesclado de luzes e música. Como os mágicos, eles evocavam, mais ainda, realizavam-no já graças a isso eu possuía de sua verdade uma noção tão segura, uma fruição tão completa de seu encanto frívolo e embriagador, quanto as que tivera em Combray no mês de julho, quando ouvia as marteladas do encaixotador e, no frescor do meu quarto escuro, gozava do calor e do sol.
     Portanto, já não era bem a Sra. de Stermaria que eu teria desejado ver. Forçado agora a passar a noite com ela, preferiria, como esta era minha última noite antes do regresso de meus pais, ficar livre e cuidar de ver de novo mulheres de Rivebelle. Tornei a lavar as mãos, pela última vez e no passeio que o prazer me fazia dar por todo o apartamento, enxuguei-as na sala de jantar às escuras. Ela me pareceu aberta para a antecâmara terminada, mas o que eu havia tomado pela fresta iluminada da porta, que contrário estava fechada, era apenas o reflexo branco da minha toalha num espelho colocado ao longo da parede, esperando que o pusessem no lugar quando da volta de mamãe. Pensei em todas as miragens que assim descobrira em nosso apartamento e que não eram apenas óticas, pois nos primeiros dias julgara que a vizinha possuía um cachorro, por causa de um uivo prolongado, quase humano, que emitia um certo cano de cozinha de cada vez que abriam a torneira. E a porta que abria para o patamar só se fechava muito lentamente, com as correntes de ar da escada, executando os cortes de frases voluptuosas e gemedoras que se superpõem ao Coro dos Peregrinos, perto do final da abertura de Tannhauser.
     Aliás, como acabasse de recolocar a toalha no seu lugar, tive ocasião de ouvir uma nova audição desse fascinante trecho sinfônico, pois, tendo soado um toque de campainha, corri para abrir a porta da antecâmara ao cocheiro que me trazia a resposta. Pensei que seria:

"Essa dama está lá embaixo", ou "Essa dama está esperando". Mas ele tinha uma carta na mão. Vacilei um instante em tomar conhecimento do que a Sra. de Stermaria havia escrito, o que, enquanto tomava da pena, poderia ser outra, mas que agora era, destacado dela, um destino que sozinho prosseguia em sua rota e ao qual ela já não podia mudar. Pedi ao cocheiro que voltasse a descer e esperasse um momento, embora ele resmungasse contra a névoa. Quando ele saiu, abri o envelope. No cartão:
"Viscondessa Alix de Stermaria". 

     Minha convidada escrevera:

"Estou desolada, um contratempo me impede de jantar esta noite com o senhor na ilha do Bois. Esperava esse encontro como a uma festa. Escreverei mais demoradamente de Stermaria. Peço desculpas. Saudações."

     Fiquei imóvel, aturdido pelo choque. A meus pés jaziam o cartão e o envelope, como a bucha de uma arma de fogo depois de disparado o tiro. Amassei-os. Analisei aquela frase. "Ela me diz que não pode jantar comigo na ilha do Bois. Poderia concluir-se que ela jantaria comigo em outro local. Não serei indiscreto a ponto de ir buscá-la, mas enfim isto se poderia entender deste modo." E essa ilha do Bois, como há quatro dias o meu pensamento ali se achava previamente instalado na companhia da Sra. de Stermaria, era difícil fazê-lo voltar de lá. Involuntariamente, o meu desejo retomava a direção que vinha seguindo há tantas horas e, apesar daquele recado, por demais recente para prevalecer contra ele, instintivamente eu ainda me preparava para sair, como um aluno, reprovado num exame, gostaria de responder a uma questão a mais. Acabei decidindo ir dizer a Françoise que descesse para pagar o cocheiro. Atravessei o corredor, não a encontrei, passei pela sala de jantar; de repente, meus passos deixaram de ressoar no assoalho como tinham feito até então e emudeceram num silêncio que mesmo antes que eu reconhecesse sua causa, deu-me uma sensação de sufocamento e de clausura. Eram os tapetes que, para a volta de meus pais tinham começado a pregar, tapetes que são tão belos nas manhãs felizes, quando, em meio à sua desordem, o sol nos espera como um meigo que tenha chegado para nos levar a almoçar no campo, e pousa sobre o olhar da floresta, mas que agora, ao contrário, eram o primeiro arranjo da prisão invernal, de onde, obrigado como estaria a viver e a fazer as minhas refeições em família, não poderia mais sair livremente.

- O senhor precisa tomar cuidado para não cair, eles ainda não estão pregados gritou Françoise. 
- Eu devia ter acendido a luz. Já estamos no fim de setembro, os dias bonitos estão acabados. 

     Em breve, o inverno; no canto da janela, como sobre um vidro de Gallé, um filão de neve endurecida; e, mesmo nos Champs-Élysées, em vez das jovens que a gente espera, apenas os pardais sozinhos. O que aumentava o meu desespero de não ver a Sra. de Stermaria era que sua resposta me fazia supor que, ao passo que eu, hora após hora, desde domingo, não vivia senão para aquele jantar, ela com certeza não pensara nele uma vez sequer. Mais tarde, soube de um absurdo casamento por amor que ela consumara com um rapaz a quem já devia estar se encontrando naquele momento e que, sem dúvida, a fizera esquecer o meu convite. Pois, se disso se tivesse lembrado, é claro que não teria esperado o carro, que aliás, conforme a combinação, não devia lhe mandar, para avisar-me que não estava livre. Meus sonhos sobre uma jovem virgem feudal numa ilha brumosa tinham aberto o caminho a um amor ainda inexistente. Agora, a minha decepção, minha cólera, meu desejo desesperado de recuperar aquela que acabava de se recusar podiam, pondo de lado a minha sensibilidade, fixar o amor possível que até então minha fantasia apenas pudera oferecer-me, porém de maneira mais frouxa. 
     Quantos em nossas recordações, quantos mais em nosso esquecimento, não existem esses rostos de moças e mulheres, todos diferentes; aos quais só acrescentamos um encanto e um desejo ardente de revê-las porque, no momento supremo, se haviam furtado! No caso da Sra. de Stermaria, era bem mais e me bastava agora, para amá-la, voltar a vê-la para que fossem renovadas essas impressões tão vivas, porém muito curtas que a memória, sem isso, não teria forças para sustentar na ausência. As circunstâncias decidiram de outra maneira: não mais voltei a vê-la. Não foi ela a quem amei, mas poderia ter sido. E uma das coisas que me tonaram extremamente cruel o amor que eu ia ter em breve foi, ao lembrar dessa noite, dizer a mim mesmo que, se circunstâncias muito simples houvessem modificado, esse amor poderia dirigir-se a outra pessoa, à de Stermaria; aplicado àquela que o inspirou muito pouco depois, não por conseguinte como eu teria tanta vontade, tanta necessidade de absolutamente necessário e predestinado.
     Françoise me deixara sozinho na sala de jantar, dizendo-me que estava errado em ficar ali antes que ela tivesse acendido o fogo para o jantar, pois antes mesmo da chegada de meus pais e desde a noite, começava a minha reclusão. Avistei um enorme rolo de tapetes, que haviam posto num canto do bufê, e, ocultando ali a minha cabeça, engolindo a poeira deles e as minhas lágrimas, semelhante aos judeus que cobriam a cabeça de cinzas durante o luto, comecei a soluçar. Tremia, não só porque a peça estava fria, mas porque uma extraordinária queda de temperatura (contra cujo perigo e, diga-se a verdade, contra o seu leve deleite não se procura reagir) é provocada por certas lágrimas que nossos olhos choram, gota a gota, como uma chuva fina, penetrante, glacial, e que parecem nunca mais terminar. De súbito, ouvi uma voz:

- Pode-se entrar? Françoise me disse que devias estar na sala de jantar. Vim ver se não queres ir jantar comigo em algum lugar, se isto não te faz mal, pois há um nevoeiro que se pode cortar com a faca.

     Era Robert de Saint-Loup, que eu julgava estar ainda no Marrocos ou em pleno mar, e que havia chegado pela manhã.
     Já disse (e precisamente fora, em Balbec, Robert de Saint-Loup quem me ajudara, a seu pesar, a tomar consciência disso) o que penso da amizade, a saber: que vale tão pouco, que me custa compreender que homens de certo talento, como Nietzsche, por exemplo, tenham tido a ingenuidade de lhe atribuir um certo valor intelectual e, em consequência, recusar-se às amizades a que não estivesse ligada a estima intelectual. Sim, espantou-me sempre ver que um homem que levava a sinceridade consigo mesmo a ponto de se afastar, por escrúpulo de consciência, da música de Wagner, imaginasse que a verdade pode cumprir-se nesse modo de expressão, confuso e inadequado por natureza, que são em geral as ações e, em particular, as amizades, e que possa haver um sentido qualquer no fato de alguém deixar o trabalho para ir visitar um amigo e juntos chorarem ao saber da falsa notícia do incêndio do Louvre. Em Balbec, eu chegara a considerar o prazer de jogar com as moças menos funesto à vida espiritual, à qual pelo menos ele permanece alheio, do que a amizade, cujo esforço inteiro consiste em nos fazer sacrificar a única parte real e incomunicável de nós próprios (a não ser por meio da arte) a um eu superficial que não encontra, como o outro, alegria em si mesmo e sim o enternecimento confuso de se sentir sustentado por estacas externas, hospitalizado numa individualidade estranha, onde, feliz com a proteção que lhe é dada, faz reluzir seu bem estar aprobativo e se maravilha com qualidades a que chamaria defeitos e buscaria corrigir em si mesmo. Além do mais, os difamadores da amizade podem, sem ilusões e não sem remorsos, ser os melhores amigos do mundo, da mesma forma que um artista que traz dentro de si uma obra-prima e que sente que seu dever seria o de viver para trabalhar, apesar disso, para parecer ou arriscar-se a ser egoísta, dá sua vida por uma causa inútil, e a concede com bravura tanto maior quanto mais desinteressadas fossem as razões pelas quais preferiria não concedê-la. Mas, seja qual for minha opinião acerca da amizade, até para só falar do prazer que ela me proporcionava, de qualidade tão medíocre que me parecia algo intermediário em sentir o cansaço e o tédio, não há beberagem tão funesta que não possa, em determinados momentos, tornar-se preciosa e reconfortante, dando-nos a excitação necessária, o calor que não conseguíamos encontrar em nós mesmos.
     Decerto, eu estava longe de querer pedir a Saint-Loup, como desejava uma hora antes, que me levasse para rever as mulheres de Rivebelle; o rastro que deixara em mim o desacerto com a Sra. de Stermaria não queria ser apagado tão depressa, mas, no instante em que não mais sentia no coração nenhum motivo de felicidade, Saint-Loup, ao entrar, representou como que a chegada da bondade, da alegria, da vida, que estavam fora de mim sem dúvida, mas se me ofertavam e só pediam para ser minhas. O próprio Saint-Loup não compreendeu meu grito de gratidão e minhas lágrimas de enternecimento. Por outro lado, o que existe de mais paradoxalmente afetuoso que um desses amigos diplomata, explorador, aviador, ou militar como era Saint-Loup, e que, partindo no dia seguinte para o campo, e dali para Deus sabe onde, parece que criam para si mesmos, na reunião noturna que nos dedicam, uma impressão de que nos espantamos que possuíssem, de tão rara e breve que é, ser-lhes tão doce, e, visto que tanto lhes agrada, de não vê-los prolongá-la ainda mais ou renová-la mais seguidamente? Uma refeição conosco, coisa tão natural, dá a esses viajantes o mesmo prazer estranho e delicioso que os nossos bulevares a um asiático.
     Partimos juntos para jantar e, descendo a escada, lembrei-me de Doncieres, onde todas as noites eu ia encontrar Robert no restaurante, e das saletas de jantar esquecidas. Recordei-me de uma na qual jamais voltara a pensar e que não era no hotel em que Saint-Loup jantava, mas em outro, bem mais modesto, intermediário entre hospedaria e pensão familiar, e onde a gente era servido pela dona do estabelecimento e uma das criadas. A neve me fizera parar ali. Além disso, Robert naquela noite não deveria jantar no hotel, e eu não quisera ir mais longe. Levaram-me os pratos para cima, a uma saleta toda revestida de madeira. A lâmpada se apagou durante o jantar, e a criada me acendeu duas velas. Eu, fingindo que não via muito bem ao estender-lhe meu prato, enquanto ela servia batatas, agarrei-lhe o antebraço como para guiá-la. Vendo que não o retirava, acariciei-o e depois, sem dizer uma só palavra, puxei-a toda para mim, soprei a vela e disse-lhe que me bolinas se quisesse algum dinheiro. Nos dias seguintes, o prazer físico me parece exigir, para ser desfrutado, não somente aquela criada, mas a sala de jantar de madeira, tão isolada. Entretanto, foi para aquela em que jantavam Robert e seus amigos que voltei todas as noites, por hábito, por amizade, até minha partida de Doncieres. E, todavia, mesmo nesse hotel em que ele se hospedava com os amigos, eu já não pensava há muito tempo. Não aproveitamos quase nada da nossa vida, deixamos inacabadas nos crepúsculos de verão ou nas noites prematuras de inverno as horas em que no entanto nos havia parecido estar encerrado um pouco de prazer ou de paz.
     Mas essas horas não estão absolutamente perdidas. Quando, por sua vez, soam novos momentos de prazer, que transcorreriam do mesmo modo, tão frágeis e lineares, tais horas vêm lhes trazer o embasamento, a consistência de uma orquestração opulenta. Assim, estendem-se até uma dessas felicidades típicas, que só encontramos de vez em quando, mas que continuam a existir; no presente exemplo, era o abandono de tudo o mais para ir jantar num ambiente confortável que, graças às lembranças, encerra num cenário natural promessas de viagem, com um amigo que vai agitar nossa vida dormente com toda a sua energia, toda a sua afeição, comunica-nos um prazer emocionado, bem diverso daquele que poderíamos dever ao nosso próprio esforço ou a distrações mundanas; vamos ser apenas dele, fazer-lhe juras de amizade que, nascidas nos limites dessa hora, ficando nelas encerradas, talvez não sejam cumpridas no dia seguinte, mas que eu podia fazer sem escrúpulo a Saint-Loup, visto que, com uma coragem em que havia muito de sabedoria e o pressentimento de que a amizade não pode aprofundar-se, no dia seguinte teria partido novamente.
     Se, ao descer as escadas, revivia as noites de Doncieres, bruscamente, quando chegamos à rua, a noite quase completa, onde o nevoeiro parecia ter apagado os lampiões que, muito débeis, só se distinguiam de muito perto, me reconduziu a não sei que chegada, à noite, a Combray, quando a cidade só se mostrava iluminada de longe em longe, e em que a gente tateava numa escuridão úmida, morna e sagrada de presépio, mal estrelada aqui e ali por uma luzinha que não brilhava mais que um círio. Entre aquele ano de Combray, aliás incerto, e as noites de Rivebelle revisitadas há pouco por sobre as cortinas, quantas diferenças! Ao percebê-las, eu experimentava um entusiasmo que poderia ter sido fecundo se estivesse sozinho e teria evitado, desse modo, o rodeio de tantos anos inúteis pelos quais ainda haveria de passar antes que se declarasse a vocação invisível de que esta obra é a história. Se tal ocorresse naquela noite, esse carro teria tido o mérito de se tornar mais memorável para mim que o do doutor Percepied, em cujo assento eu compusera aquela pequena descrição encontrada exatamente há pouco tempo, modificada e inutilmente enviada para o Fígaro dos campanários de Martinville.

continua na página 177...
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