terça-feira, 19 de agosto de 2025

Émile Zola - Germinal: Primeira Parte - (V.a) sem olhar o relógio

Germinal

Émile Zola

Tradução de Francisco Bittencourt

Primeira Parte

V
 

      Maheu, sem olhar o relógio guardado na jaqueta, parou e disse:

— Quase uma hora... Zacharie, acabou com isso?

     O rapaz começara havia pouco tempo a colocar escoras. Durante o trabalho ele se deitara de costas, o olhar perdido, pensando nas partidas de críquete que jogara na véspera. Voltando ao mundo, respondeu:

— Sim, por hoje chega, amanhã veremos. E retornou a seu lugar no veio.

     Agora era a vez de Levaque e Chaval largarem as picaretas. Houve um descanso. Todos secavam o rosto nos braços nus, enquanto observavam a rocha do teto cuja parte de xisto estava toda fendida. O único motivo de conversa era o trabalho.

— Mais uma vez vim parar em terras que se esfarelam — murmurou Chaval. — Eles deviam ter levado isso em conta durante as negociações... 
— Quem? Esses trapaceiros? — grunhiu Levaque. — O que eles querem é enterrar-nos aqui dentro.

     Zacharie começou a rir; pouco se importava com o trabalho e o resto, mas gostava de ouvir falar mal da companhia. Com seu jeito calmo, Maheu explicou que o terreno mudava de natureza a cada vinte metros. Era preciso ser justo, ninguém podia prever. Como os outros dois continuassem a invectivar os chefes, ele ficou inquieto, começou a olhar para os lados.

— Psiu! Chega! 
— Tens razão — disse Levaque, que também baixou a voz. — É perigoso.

     A obsessão dos espiões não os deixava, mesmo naquela profundidade, como se a hulha dos acionistas, ainda no veio, tivesse ouvidos.

— Isso não impede — proclamou Chaval bem alto, em tom desafiador —, se o porco do Dansaert me falar novamente no tom com que falou no outro dia, que eu lhe pregue com um tijolo na pança. Não sou eu quem o proíbe de gastar dinheiro com louras de pele delicada.

     Desta vez Zacharie riu às gargalhadas. Os amores do capataz com a mulher de Pierron eram o maior motivo de brincadeiras na mina. A própria Catherine, apoiada na pá, lá embaixo, dobrava-se de rir, e, numa frase, pôs Etienne a par do caso, enquanto Maheu resolveu zangar-se, presa de um medo que não conseguia esconder mais.

— Como é, não vais calar-te? Fala quando estiveres sozinho, se queres que te aconteça uma desgraça.

     Ele falava ainda quando se ouviu um ruído de passos na galeria de cima. Quase no mesmo momento, o engenheiro da mina, o pequeno Négrel, como os operários o chamavam entre si, apareceu no alto do veio, acompanhado de Dansaert, o capataz.

— Eu não disse? — murmurou Maheu. — Eles sempre brotam da terra, de repente.

     Paul Négrel, sobrinho do Sr. Hennebeau, era um rapaz de vinte e seis anos, magro e bonito, cabelos crespos e bigode escuro. O nariz pontudo, o olhar vivo lhe davam um ar de pessoa curiosa mas amável, de uma inteligência cética, que se transformava em brusco autoritarismo nas suas relações com os operários. Andava vestido e sujo de carvão como eles, e, para que o respeitassem, desafiava os perigos passando pelos lugares mais difíceis; era sempre o primeiro nos desabamentos e nas explosões de grisu.

— É aqui, Dansaert? — perguntou.

     O capataz, um belga de cara grande e nariz grosseiro e sensual, respondeu com delicadeza exagerada:

— Sim, Sr. Négrel... Este é o homem que foi contratado de manhã.

     Tinham escorregado até o meio do leito do veio e mandaram subir Etienne. O engenheiro levantou a lâmpada e observou-o sem o interrogar. 

— Está bem — disse afinal. — Não gosto muito de que se agarrem desconhecidos nas estradas; que isso não se repita.

     E sem escutar as explicações que lhe davam sobre as necessidades do trabalho e do desejo de substituir as mulheres por rapazes no carreto, começou a estudar o teto, e os britadores tiveram de voltar às suas picaretas.
     De repente exclamou:

— Será possível, Maheu, que você não se importa com nada? Vão ficar todos enterrados aqui, seus idiotas! 
— Não, está firme — respondeu tranquilamente o operário. 
— Firme?! A rocha já está cedendo e vocês colocam as vigas com distâncias de mais de dois metros, e de má vontade! Quer saber de uma coisa? Vocês são todos iguais, preferem deixar-se esmagar a largar o veio, quando necessário, para fazer o revestimento. Vamos! Quero que me escorem isto imediatamente; e com vigas duplas, ouviram?

     Diante da pachorra dos mineiros, que discutiam, dizendo que ninguém era melhor juiz da sua segurança do que eles, o engenheiro encolerizou-se: 

— Como é? Vamos de uma vez! Quando estiverem com a cabeça esmagada, quem é que vai sofrer as consequências? Vocês? Claro que não! É a companhia; ela terá de pagar as suas pensões ou das suas mulheres. Já sabemos muito bem como são: para terem no fim do dia dois vagonetes a mais na conta, são capazes de largar a pele.

      Maheu, apesar da cólera que pouco a pouco se apossava dele, conseguiu falar com calma: 

— Se nos pagassem melhor poderíamos pensar nessas coisas. O engenheiro deu de ombros sem responder. Tendo acabado de descer até o fundo, falou lá de baixo: 
— Têm uma hora para fazer esse trabalho. E estão avisados de que a empreitada vai ser multada em três francos.

     Os britadores receberam essas palavras com um surdo murmúrio de descontentamento. Só a força da hierarquia, essa hierarquia militar que do trabalhador menor ao capataz da mina, curvava a todos, uns por baixo dos outros, retinha-os. Contudo, Chaval e Levaque tiveram um gesto de fúria, enquanto Maheu os continha com o olhar e Zacharie encolhia zombeteiramente os ombros. Mas era talvez Etienne o mais irritado; desde que se encontrava no fundo daquele inferno, uma revolta lenta o agitava. Olhou para Catherine, que continuava curvada, resignada. Então era possível que uma pessoa se matasse num trabalho de escravo, no fundo dessas trevas horrendas, e nem sequer conseguisse ganhar os parcos tostões para o pão de cada dia?
     Négrel deu alguns passos, sempre acompanhado de Dansaert, que se contentara em aprovar tudo o que ele dissera com um movimento contínuo de cabeça. Ouviu-se outra vez a voz do engenheiro; tinham parado para examinar o revestimento da galeria, da qual os britadores eram responsáveis pela conservação numa extensão de dez metros, a partir do veio. 

— Quando eu lhe digo que eles não ligam para nada estou mentindo? — berrava o engenheiro. — E você, meu Deus! Não viu isto? 
— Sim, claro que vi... — balbuciava o capataz. — Estou cansado de adverti-los.

     Négrel chamou aos brados: 

— Maheu, Maheu!

     Todos desceram; ele continuou: 

— Veja isto. Está firme? Diga-me! Isso nunca foi trabalho decente. Este encaixe não segura mais os caibros porque foi colocado de qualquer jeito, e assim por diante. Agora compreendo as enormes somas que gastamos em consertos... Desde que isto aguente enquanto vocês são os responsáveis o resto não tem importância, não é assim? E que tudo quebre depois, a companhia está aí mesmo, ela que mantenha um exército de operários para consertar... Veja aquilo ali, é uma vergonha.

     Chaval quis falar, mas ele não deixou. 

— Não fale nada, já sei o que vai dizer: que lhe paguem melhor, não é? Pois previno-os de que vão forçar a direção a fazer uma coisa! Sim, pagaremos o revestimento à parte e reduziremos proporcionalmente o preço do vagonete. Já veremos o que ganharão com isso. Agora quero esse revestimento feito todo de novo e imediatamente. Amanhã volto aqui.

     E partiu, deixando atrás de si o impacto causado por sua ameaça.
     Dansaert, tão humilde diante do outro, ficou para trás por alguns segundos para dizer brutalmente aos operários: 

— Essa vocês me pagam... Não vai ser somente de três francos a multa que vou aplicar. Tomem cuidado comigo!

     Depois de ele partir foi a vez de Maheu estourar. 

— Com todos os diabos! O que não é justo não é justo. Gosto de fazer tudo com calma porque é a única maneira com que a gente se pode entender, mas é de ficar furioso. Vocês ouviram? Vão pagar menos por carro e o revestimento à parte! Isso não passa de uma desculpa para nos pagarem menos... Raios os partam.

     Procurava alguém para descarregar a fúria: encontrou Catherine e Etienne sem fazerem nada. 

— Vocês querem passar-me a madeira, ou será que isso não lhes interessa? Não me custa nada dar uns bons pontapés nos dois.

     Etienne foi buscar madeira, sem guardar rancor por causa da grosseria do outro; estava tão furioso contra os chefes, que achava que os mineiros eram até muito delicados.
      Levaque e Chaval desabafaram com palavrões. Todos, até Zacharie, emadeiravam furiosamente. Durante quase meia hora só se ouviu o estalar das madeiras sob os golpes dos martelos. Não falavam mais, resfolegavam, exasperavam-se contra a rocha, que, se pudessem, desalojariam e jogariam para o lado com um movimento de ombros. 

— Chega! — disse enfim Maheu, cheio de raiva e cansaço. — Uma e meia... Ah, que belo dia! Não chegaremos a cinquenta soldos. Vou embora, estou farto!

     Ainda havia meia hora de trabalho, mas ele se vestiu e os outros fizeram o mesmo. Só de olhar para o veio perdiam a cabeça. Como a operadora de vagonetes continuasse a trabalhar, eles a chamaram, irritados com tanto zelo: o carvão que fosse sozinho, se pudesse. E os seis, ferramentas debaixo dos braços, voltaram ao poço pelo caminho da manhã.
     Na fenda, Catherine e Etienne ficaram para trás, enquanto os britadores escorregaram até embaixo. Os dois haviam encontrado Lydie, que parara no meio de uma via para deixá-los passar, e que lhes contou que a filha do Mouque deixara o trabalho havia bem uma hora com o nariz sangrando e fora molhar o rosto ninguém sabia onde.
     Quando a deixaram, a meninazinha começou a empurrar novamente o carro, prostrada, cheia de lama, retesando seus braços e pernas de inseto, igual a uma formiga preta em luta com um fardo demasiadamente pesado.
     Os dois desceram de costas, encolhendo os ombros com receio de esfolar a testa; deslizavam tão rapidamente ao longo da rocha polida por todos os recantos da mina que tinham, de vez em quando, de agarrar-se às madeiras — para que suas nádegas não pegassem fogo, diziam eles gracejando.

continua na página 50...
____________________

Primeira Parte - (V.a) sem olhar o relógio
____________________

O pai de Zola tinha 44 anos quando conheceu Émilie-Aurélie Aubert, numa de suas viagens a Paris. Apesar da grande diferença de idade — a moça não chegara aos vinte anos —, acabaram casando — se. O resultado dessa união foi Émile Zola, nascido em 12 de abril de 1840, durante uma estada do casal em Paris. O menino mal conheceu o pai: em 1847, François faleceu. 
As coisas ficaram difíceis. Sozinha e com grandes esforços, a mãe procurou equilibrar o orçamento doméstico e fazer que o filho estudasse. De certa forma, ela teve sucesso: Zola foi aluno do Colégio Notre-Dame e do Colégio de Aix. Quando o rapaz atingiu a maioridade, partiu com Émilie para Paris e, graças a um amigo da família, conseguiu um emprego na Alfândega.
Em dezembro de 1859, concluía sua primeira obra em prosa, Les Grisettes de Provence (As Costureirinhas de Provença). Continuava, porém, desconhecido e insatisfeito. Ele mesmo costumava dizer: "Ser sempre desconhecido é chegar a duvidar de si; nada engrandece os pensamentos de um autor como o sucesso".
Assim, no início de 1866, deixou o emprego para dedicar-se à literatura. 
Abandonou o romantismo de seus anos de adolescência e passou a admirar outros autores: Balzac (1799-1850), Stendhal (1783-1842), Flaubert (1821-1880). Essa guinada para o realismo devia-se principalmente às suas últimas leituras: das teorias evolucionistas de Darwin (1809-1882) até o Tratado da Hereditariedade Natural do Dr. Lucas, passando pela Filosofia da Arte de Taine (1328-1893). No entanto, o que parece tê-lo feito decidir-se pelo realismo foi a Introdução ao Estudo da Medicina Experimental (1865), de Claude Bernard (1813-1878). Essa obra foi importante para o rumo que Zola imprimiria a toda a sua obra: o rigor científico no romance, cujo objetivo, diria ele, é o mesmo das experiências de laboratório, isto é, o conhecimento da realidade. O que Claude Bernard havia feito com o corpo humano Zola faria com as paixões e os meios sociais.
Para fazer Germinal, Zola não se satisfez com a simples busca de documentos. Foi passar alguns meses numa região mineira. Morou em cortiços, bebeu cerveja e genebra nos botequins e desceu ao fundo dos poços para observar de perto o trabalho dos operários. Aos poucos foi se familiarizando com o meio onde viviam aqueles homens. Descobriu quais as principais doenças causadas pela mineração. Sentiu o problema dos baixos salários, os sacrifícios dos mineiros, a gota que cai com uma regularidade incrível sobre seus rostos, a dificuldade de empurrar um vagonete por um corredor estreito, o drama do salto na escuridão que eles têm de dar para poderem sobreviver. Numa passagem admirável, descreve a emoção de uma greve de operários. Mostra seu ódio animal. Um ódio que destrói tudo à sua passagem. Uma violência viva nos corpos que querem libertar-se, mesmo à custa da total destruição. Mostra também o amor feito sobre o carvão, os pequenos dramas das dívidas, as brigas no cortiço, a promiscuidade de pais e filhos em casas muito pequenas. A obra obteve enorme repercussão.
Em 29 de setembro de 1901, em Paris, Émile Zola morre asfixiado pelo gás do aquecedor.

Nenhum comentário:

Postar um comentário