Émile Zola
Tradução de Francisco Bittencourt
Tradução de Francisco Bittencourt
Primeira Parte
V
Maheu, sem olhar o relógio guardado na jaqueta, parou e disse:
— Quase uma hora... Zacharie, acabou com isso?
O rapaz começara havia pouco tempo a colocar escoras. Durante o
trabalho ele se deitara de costas, o olhar perdido, pensando nas partidas de
críquete que jogara na véspera. Voltando ao mundo, respondeu:
— Sim, por hoje chega, amanhã veremos. E retornou a seu lugar no
veio.
Agora era a vez de Levaque e Chaval largarem as picaretas. Houve
um descanso. Todos secavam o rosto nos braços nus, enquanto observavam
a rocha do teto cuja parte de xisto estava toda fendida. O único motivo de
conversa era o trabalho.
— Mais uma vez vim parar em terras que se esfarelam —
murmurou Chaval. — Eles deviam ter levado isso em conta durante as
negociações...
— Quem? Esses trapaceiros? — grunhiu Levaque. — O que eles
querem é enterrar-nos aqui dentro.
Zacharie começou a rir; pouco se importava com o trabalho e o
resto, mas gostava de ouvir falar mal da companhia. Com seu jeito calmo,
Maheu explicou que o terreno mudava de natureza a cada vinte metros. Era
preciso ser justo, ninguém podia prever. Como os outros dois continuassem
a invectivar os chefes, ele ficou inquieto, começou a olhar para os lados.
— Psiu! Chega!
— Tens razão — disse Levaque, que também baixou a voz. — É
perigoso.
A obsessão dos espiões não os deixava, mesmo naquela
profundidade, como se a hulha dos acionistas, ainda no veio, tivesse
ouvidos.
— Isso não impede — proclamou Chaval bem alto, em tom
desafiador —, se o porco do Dansaert me falar novamente no tom com que
falou no outro dia, que eu lhe pregue com um tijolo na pança. Não sou eu
quem o proíbe de gastar dinheiro com louras de pele delicada.
Desta vez Zacharie riu às gargalhadas. Os amores do capataz com a
mulher de Pierron eram o maior motivo de brincadeiras na mina. A própria
Catherine, apoiada na pá, lá embaixo, dobrava-se de rir, e, numa frase, pôs
Etienne a par do caso, enquanto Maheu resolveu zangar-se, presa de um
medo que não conseguia esconder mais.
— Como é, não vais calar-te? Fala quando estiveres sozinho, se
queres que te aconteça uma desgraça.
Ele falava ainda quando se ouviu um ruído de passos na galeria de
cima. Quase no mesmo momento, o engenheiro da mina, o pequeno Négrel,
como os operários o chamavam entre si, apareceu no alto do veio,
acompanhado de Dansaert, o capataz.
— Eu não disse? — murmurou Maheu. — Eles sempre brotam da
terra, de repente.
Paul Négrel, sobrinho do Sr. Hennebeau, era um rapaz de vinte e
seis anos, magro e bonito, cabelos crespos e bigode escuro. O nariz
pontudo, o olhar vivo lhe davam um ar de pessoa curiosa mas amável, de
uma inteligência cética, que se transformava em brusco autoritarismo nas
suas relações com os operários. Andava vestido e sujo de carvão como eles,
e, para que o respeitassem, desafiava os perigos passando pelos lugares
mais difíceis; era sempre o primeiro nos desabamentos e nas explosões de
grisu.
— É aqui, Dansaert? — perguntou.
O capataz, um belga de cara grande e nariz grosseiro e sensual,
respondeu com delicadeza exagerada:
— Sim, Sr. Négrel... Este é o homem que foi contratado de manhã.
Tinham escorregado até o meio do leito do veio e mandaram subir
Etienne. O engenheiro levantou a lâmpada e observou-o sem o
interrogar.
— Está bem — disse afinal. — Não gosto muito de que se agarrem
desconhecidos nas estradas; que isso não se repita.
E sem escutar as explicações que lhe davam sobre as necessidades
do trabalho e do desejo de substituir as mulheres por rapazes no carreto,
começou a estudar o teto, e os britadores tiveram de voltar às suas picaretas.
De repente exclamou:
— Será possível, Maheu, que você não se importa com nada? Vão
ficar todos enterrados aqui, seus idiotas!
— Não, está firme — respondeu tranquilamente o operário.
— Firme?! A rocha já está cedendo e vocês colocam as vigas com
distâncias de mais de dois metros, e de má vontade! Quer saber de uma
coisa? Vocês são todos iguais, preferem deixar-se esmagar a largar o veio,
quando necessário, para fazer o revestimento. Vamos! Quero que me
escorem isto imediatamente; e com vigas duplas, ouviram?
Diante da pachorra dos mineiros, que discutiam, dizendo que
ninguém era melhor juiz da sua segurança do que eles, o engenheiro
encolerizou-se:
— Como é? Vamos de uma vez! Quando estiverem com a cabeça
esmagada, quem é que vai sofrer as consequências? Vocês? Claro que não!
É a companhia; ela terá de pagar as suas pensões ou das suas mulheres. Já
sabemos muito bem como são: para terem no fim do dia dois vagonetes a
mais na conta, são capazes de largar a pele.
Maheu, apesar da cólera que pouco a pouco se apossava dele,
conseguiu falar com calma:
— Se nos pagassem melhor poderíamos pensar nessas coisas. O
engenheiro deu de ombros sem responder. Tendo acabado de descer até o
fundo, falou lá de baixo:
— Têm uma hora para fazer esse trabalho. E estão avisados de que
a empreitada vai ser multada em três francos.
Os britadores receberam essas palavras com um surdo murmúrio de
descontentamento. Só a força da hierarquia, essa hierarquia militar que do
trabalhador menor ao capataz da mina, curvava a todos, uns por baixo dos
outros, retinha-os. Contudo, Chaval e Levaque tiveram um gesto de fúria,
enquanto Maheu os continha com o olhar e Zacharie encolhia
zombeteiramente os ombros. Mas era talvez Etienne o mais irritado; desde
que se encontrava no fundo daquele inferno, uma revolta lenta o agitava.
Olhou para Catherine, que continuava curvada, resignada. Então era
possível que uma pessoa se matasse num trabalho de escravo, no fundo
dessas trevas horrendas, e nem sequer conseguisse ganhar os parcos tostões
para o pão de cada dia?
Négrel deu alguns passos, sempre acompanhado de Dansaert, que
se contentara em aprovar tudo o que ele dissera com um movimento
contínuo de cabeça. Ouviu-se outra vez a voz do engenheiro; tinham parado
para examinar o revestimento da galeria, da qual os britadores eram
responsáveis pela conservação numa extensão de dez metros, a partir do
veio.
— Quando eu lhe digo que eles não ligam para nada estou
mentindo? — berrava o engenheiro. — E você, meu Deus! Não viu isto?
— Sim, claro que vi... — balbuciava o capataz. — Estou cansado
de adverti-los.
Négrel chamou aos brados:
— Maheu, Maheu!
Todos desceram; ele continuou:
— Veja isto. Está firme? Diga-me! Isso nunca foi trabalho decente.
Este encaixe não segura mais os caibros porque foi colocado de qualquer
jeito, e assim por diante. Agora compreendo as enormes somas que
gastamos em consertos... Desde que isto aguente enquanto vocês são os
responsáveis o resto não tem importância, não é assim? E que tudo quebre
depois, a companhia está aí mesmo, ela que mantenha um exército de
operários para consertar... Veja aquilo ali, é uma vergonha.
Chaval quis falar, mas ele não deixou.
— Não fale nada, já sei o que vai dizer: que lhe paguem melhor,
não é? Pois previno-os de que vão forçar a direção a fazer uma coisa! Sim,
pagaremos o revestimento à parte e reduziremos proporcionalmente o preço
do vagonete. Já veremos o que ganharão com isso. Agora quero esse
revestimento feito todo de novo e imediatamente. Amanhã volto aqui.
E partiu, deixando atrás de si o impacto causado por sua ameaça.
Dansaert, tão humilde diante do outro, ficou para trás por alguns
segundos para dizer brutalmente aos operários:
— Essa vocês me pagam... Não vai ser somente de três francos a
multa que vou aplicar. Tomem cuidado comigo!
Depois de ele partir foi a vez de Maheu estourar.
— Com todos os diabos! O que não é justo não é justo. Gosto de
fazer tudo com calma porque é a única maneira com que a gente se pode
entender, mas é de ficar furioso. Vocês ouviram? Vão pagar menos por
carro e o revestimento à parte! Isso não passa de uma desculpa para nos
pagarem menos... Raios os partam.
Procurava alguém para descarregar a fúria: encontrou Catherine e
Etienne sem fazerem nada.
— Vocês querem passar-me a madeira, ou será que isso não lhes
interessa? Não me custa nada dar uns bons pontapés nos dois.
Etienne foi buscar madeira, sem guardar rancor por causa da
grosseria do outro; estava tão furioso contra os chefes, que achava que os
mineiros eram até muito delicados.
Levaque e Chaval desabafaram com palavrões. Todos, até Zacharie,
emadeiravam furiosamente. Durante quase meia hora só se ouviu o estalar
das madeiras sob os golpes dos martelos. Não falavam mais, resfolegavam,
exasperavam-se contra a rocha, que, se pudessem, desalojariam e jogariam
para o lado com um movimento de ombros.
— Chega! — disse enfim Maheu, cheio de raiva e cansaço. — Uma
e meia... Ah, que belo dia! Não chegaremos a cinquenta soldos. Vou
embora, estou farto!
Ainda havia meia hora de trabalho, mas ele se vestiu e os outros
fizeram o mesmo. Só de olhar para o veio perdiam a cabeça. Como a
operadora de vagonetes continuasse a trabalhar, eles a chamaram, irritados
com tanto zelo: o carvão que fosse sozinho, se pudesse. E os seis,
ferramentas debaixo dos braços, voltaram ao poço pelo caminho da manhã.
Na fenda, Catherine e Etienne ficaram para trás, enquanto os
britadores escorregaram até embaixo. Os dois haviam encontrado Lydie,
que parara no meio de uma via para deixá-los passar, e que lhes contou que
a filha do Mouque deixara o trabalho havia bem uma hora com o nariz
sangrando e fora molhar o rosto ninguém sabia onde.
Quando a deixaram, a meninazinha começou a empurrar novamente
o carro, prostrada, cheia de lama, retesando seus braços e pernas de inseto,
igual a uma formiga preta em luta com um fardo demasiadamente pesado.
Os dois desceram de costas, encolhendo os ombros com receio de
esfolar a testa; deslizavam tão rapidamente ao longo da rocha polida por
todos os recantos da mina que tinham, de vez em quando, de agarrar-se às
madeiras — para que suas nádegas não pegassem fogo, diziam eles
gracejando.
continua na página 50...
____________________
Primeira Parte - (V.a) sem olhar o relógio
____________________
O pai de Zola tinha 44 anos quando conheceu Émilie-Aurélie Aubert, numa de suas viagens a Paris. Apesar da grande diferença de idade — a moça não chegara aos vinte anos —, acabaram casando — se. O resultado dessa união foi Émile Zola, nascido em 12 de abril de 1840, durante uma estada do casal em Paris. O menino mal conheceu o pai: em 1847, François faleceu.
As coisas ficaram difíceis. Sozinha e com grandes esforços, a mãe procurou equilibrar o orçamento doméstico e fazer que o filho estudasse. De certa forma, ela teve sucesso: Zola foi aluno do Colégio Notre-Dame e do Colégio de Aix. Quando o rapaz atingiu a maioridade, partiu com Émilie para Paris e, graças a um amigo da família, conseguiu um emprego na Alfândega.
Em dezembro de 1859, concluía sua primeira obra em prosa, Les Grisettes de Provence (As Costureirinhas de Provença). Continuava, porém, desconhecido e insatisfeito. Ele mesmo costumava dizer: "Ser sempre desconhecido é chegar a duvidar de si; nada engrandece os pensamentos de um autor como o sucesso".
Assim, no início de 1866, deixou o emprego para dedicar-se à literatura.
Abandonou o romantismo de seus anos de adolescência e passou a admirar outros autores: Balzac (1799-1850), Stendhal (1783-1842), Flaubert (1821-1880). Essa guinada para o realismo devia-se principalmente às suas últimas leituras: das teorias evolucionistas de Darwin (1809-1882) até o Tratado da Hereditariedade Natural do Dr. Lucas, passando pela Filosofia da Arte de Taine (1328-1893). No entanto, o que parece tê-lo feito decidir-se pelo realismo foi a Introdução ao Estudo da Medicina Experimental (1865), de Claude Bernard (1813-1878). Essa obra foi importante para o rumo que Zola imprimiria a toda a sua obra: o rigor científico no romance, cujo objetivo, diria ele, é o mesmo das experiências de laboratório, isto é, o conhecimento da realidade. O que Claude Bernard havia feito com o corpo humano Zola faria com as paixões e os meios sociais.
Para fazer Germinal, Zola não se satisfez com a simples busca de documentos. Foi passar alguns meses numa região mineira. Morou em cortiços, bebeu cerveja e genebra nos botequins e desceu ao fundo dos poços para observar de perto o trabalho dos operários. Aos poucos foi se familiarizando com o meio onde viviam aqueles homens. Descobriu quais as principais doenças causadas pela mineração. Sentiu o problema dos baixos salários, os sacrifícios dos mineiros, a gota que cai com uma regularidade incrível sobre seus rostos, a dificuldade de empurrar um vagonete por um corredor estreito, o drama do salto na escuridão que eles têm de dar para poderem sobreviver. Numa passagem admirável, descreve a emoção de uma greve de operários. Mostra seu ódio animal. Um ódio que destrói tudo à sua passagem. Uma violência viva nos corpos que querem libertar-se, mesmo à custa da total destruição. Mostra também o amor feito sobre o carvão, os pequenos dramas das dívidas, as brigas no cortiço, a promiscuidade de pais e filhos em casas muito pequenas. A obra obteve enorme repercussão.
Em 29 de setembro de 1901, em Paris, Émile Zola morre asfixiado pelo gás do aquecedor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário