Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
Quarta Parte
10.
continuando...
. A narração do que se seguiu, durante a cerimônia, me foi dada por pessoa que
assistiu a tudo. E creio que contou corretamente.
Estava o casamento marcado
para as oito horas da noite. Mas, às sete, Nastássia Filíppovnajá estava quase
completamente pronta. Uma turba fervilhante começara a ajuntar-se desde as
seis em volta da vila de Liébediev. E outra, ainda maior, diante da casa de Dária
Aleksiéievna. A igreja começara a encher desde as sete horas. Vera Liébedieva e
Kólia achavam-se muito nervosos, por causa de Míchkin, embora estivessem
muito ocupados
preparando a recepção e os refrescos nos apartamentos do príncipe, apesar dos
convidados não serem em grande número. Além das pessoas indispensáveis,
estariam presentes Liébediev, os Ptítsin, Gánia, o doutor com a sua cruz de
Sant’Ana ao pescoço, e Dária Aleksiéievna como convidada também.
Tendo sido
perguntado ao príncipe por que fora o doutor convidado, sendo “homem que mal
conhecia”, respondeu complacentemente:
- Em consideração ao seu busto
condecorado; como se trata de pessoa muito respeitada, convém ao estilo da
coisa! - e riu.
Keller e Burdóvskii, em trajes de gala, de luvas, pareciam estar
corretos; apenas Keller tendo perturbado outra vez o príncipe e seus partidários,
pela insistência que não era lá muito distinta, agora, de brigar, lançando olhares
assaz hostis, da janela e da porta, à onda de curiosos que cercava a casa. Por fim,
às sete e meia, o príncipe saiu para a igreja, de carro.
Queremos observar que
ele, particularmente, não quis omitir nenhuma das cerimônias usuais, tudo
devendo ser feito, abertamente. publicamente e na “devida ordem”. Tendo feito,
como foi possível, a sua passagem por entre a multidão, na igreja, escoltado por
Keller, que ainda dardejava olhares ameaçadores para a direita e para a
esquerda, e seguido de um contínuo fogo de sussurros e exclamações, o príncipe
desapareceu temporariamente atrás do altar-mor da igreja, enquanto Keller saiu
para ir buscar a noiva na casa de Dária Aleksiéievna, lá encontrando uma
multidão duas ou às vezes maior e mais estouvada e crepitante do que a que
rodeava a casa do príncipe.
Ao subir a escada ouviu exclamações que
ultrapassavam sua capacidade de paciência e já se ia voltar para dirigir uma
arenga apropriada à ralé e à gentalha quando foi impedido disso, ainda a tempo,
por Burdóvskii e Dária Aleksiéievna. Contendo-o, obrigaram-no a entrar. Keller
era todo irritação e pressa.
Nastássia Filíppovna levantou-se, olhou-se ainda ao
espelho, observando-se com um sorriso contrafeito, conforme depois Keller
contou, “tão pálida como a morte”, inclinou-se com toda a devoção para o ícone
e se dirigiu para os degraus.
Um zumbido de vozes, quase clamor, saudou a sua aparição. No primeiro
instante é verdade que houve sons de risos e aplausos, talvez mesmo assobios;
mas, dentro de um momento, começaram a ser ouvidas coisas assim:
- Que
beleza! - exclamavam de dentro da multidão.
- Não é a primeira e nem será a
última!
- Vai cobrir tudo com a cauda do vestido nupcial!
- Uma beleza destas não se acha tão depressa! - gritaram os que estavam
mais perto.
- Hurra!
- Que princesa! Por uma princesa assim, vendo a alma! - gritou um serventuário
que avaliou:
- “Uma noite pelo preço de uma vida!”
Nastássia Filíppovna evidentemente estava tão branca como um lenço, quando
apareceu com os seus grandes olhos postos sobre a multidão. Olhos que pareciam
carvões acesos. Toda a turba, agora, era a seu favor, pois a indignação se tinha
transformado em gritos de entusiasmo. E a porta da carruagem já estava aberta,
e Keller já oferecia o braço à noiva, quando ela, de súbito, deu um grito e
enveredou por entre a multidão. Todos, acompanhando- a com os olhares,
ficaram petrificados de pavor. A multidão abriu-se para lhe dar passagem. E
nisto, a cinco ou seis passos do último degrau, apareceu Rogójin. Nastássia
Filíppovna lhe descobrira os olhos no meio da multidão. Arremessou-se na
direção dele, como uma criatura que enlouqueceu; agarrou- se a ele, com as
duas mãos, gritando:
- Salve-me. Leve-me daqui. Para onde quiser, já!
Tomando-a nos braços,
Rogójin a carregou para a sua carruagem. Em um relance puxou uma nota de
cem rublos, entregando-a ao cocheiro. - Para a estação da estrada de ferro. Se
pegarmos ainda o trem, mais outra nota igual!
Disse e pulou para dentro da carruagem onde já estava Nastássia Filíppovna; e
bateu a porta. O cocheiro não hesitou um momento. Fustigou os cavalos. Keller
deu explicações, depois que tinha sido pegado de surpresa! “Um minuto só, mais,
e eu voltaria a mim e não os teria deixado fugir”, explicou, ao descrever a
aventura. Burdóvskíi pensou em tomar uma outra carruagem que se encontrava
ali perto, ao lado, e correr em perseguição de Rogójin, mas refletiu, quando já
estava para sair, considerando que “de qualquer forma era demasiado tarde e
ninguém a iria trazer à força”.
- E o príncipe não haveria de querer isso, não!
decidiu Burdóvskii, tremendamente agitado.
O carro, ao galope dos animais, chegou à estação, ainda a tempo. Rogójin e
Nastássia Filíppovna saltaram a correr. E quando Rogójin já estava a subir para o
trem, fez parar uma meninota que se achava com um manto preto, ainda
decente, embora usado, e com um lenço de seda na cabeça.
- Quer cinqüenta rublos por isso? - perguntou, instantaneamente,
estendendo o dinheiro para a rapariga que ficou espantada, sem saber se
segurava ou não o dinheiro. E logo Rogójin lhe arrebatou manto e lenço que
jogou aos ombros e à cabeça de Nastássia Filíppovna. Sua toilette fora do comum
despertaria atenção durante a viagem. E foi só depois, quando os viu desaparecer
no vagão, que a rapariguinha compreendeu qual a serventia do seu manto velho e
do lenço barato.
A notícia do que acabara de acontecer chegou à igreja com uma rapidez
assombrosa. Quando Keller entrou como um raio, muitas pessoas se
precipitaram para ele a fazer-lhe perguntas. Ninguém saiu da igreja que
burburinhava de falatórios, risadas e movimentos de cabeças. O que todo o
mundo queria era ver como o noivo receberia a notícia. Ele recebeu a
comunicação com aparente calma: apenas ficou pálido e teve certa dificuldade
em dizer:
- Eu tinha qualquer receio, mas nunca pensei que isto viesse a acontecer. -e acrescentou depois de breve pausa - Contudo, está na ordem natural das coisas,
principalmente tendo em vista o estado dela.
Até Keller falou depois sobre tal
observação do príncipe como sendo de “uma filosofia incomparável”.
Aparentemente calmo e resignado, o príncipe deixou a igreja: pelo menos assim
muita gente teve a impressão e comentou depois, tinha o ar de querer
veementemente ir embora para casa e ficar sozinho, nem isso lhe tendo sido de
todo permitido, pois vários convidados o acompanharam até aos seus aposentos:
Ptítsin, Gavríl Ardalíónovitch e o médico que, como os outros, não pensou em tão
cedo ir embora. Era mais do que natural que a casa em pouco estivesse
literalmente rodeada de gente desocupada. Lá da varanda, Míchkin ouvia
Liébediev e Keller, furiosos, afastando pessoas desconhecidas que só por estarem
regularmente vestidas se julgavam no direito de ir entrando. A algumas delas que
se adiantaram se dirigiu o príncipe, perguntando do que se tratava, polidamente
afastando Keller e Liébediev.
Depois se encaminhou para um cavalheiro
corpulento, de cabeça grisalha, parado diante dos degraus, àfrente de um dos tais
grupos, e cortesmente o convidou a honrá-lo com a sua entrada. Um tanto
desconcertado, o homem entrou, seguido logo depois de um segundo e um
terceiro. Até que do grupo entraram bem uns oito, que conseguiram isso de
maneira desenvolta. Depois do que, não houve mais quem se arriscasse a se
ajuntar àqueles, pondo-se até alguns, cá de fora, a censurar os outros que, no
entanto, lá dentro
se assentavam, desmanchando-se em conversa e aceitando o chá que lhes era
oferecido.
Tendo isso, da parte do príncipe, sido feito com modéstia e
espontaneidade, a surpresa dos recém-chegados se foi transformando em grata
expectativa. Ficaram, naturalmente, tentando reanimar a conversa e encaminhá-la para o tema que jazia culminante em seus espíritos. Arriscaram umas
perguntas indiscretas, também tendo sido proferidas certas observações. O
príncipe respondeu a tudo com tanta simplicidade e candura e, ainda por cima,
com tamanha dignidade e confiança na bem educada intenção dos convidados
que a atmosfera de curiosidade se extinguiu por si mesma.
Pouco a pouco a
conversa enveredou para outras coisas, aliás sérias. Um cavalheiro, por exemplo,
pegando no ar qualquer palavra, jurou, repentinamente, com intensa indignação,
que não venderia a sua propriedade, acontecesse o que acontecesse, mas que,
muito pelo contrário, iria contemporizando, e que “possuir imóveis era melhor do
que dinheiro”.
- Este é que é o meu sistema econômico, meu caro senhor, e não há mal nenhum
em comunicar este meu ponto de vista. - dirigia-se ao príncipe que
calorosamente levou em apreço aquelas palavras, até que Liébediev lhe disse ao
ouvido, disfarçando, que aquele indivíduo não tinha lar, nem casas nem
propriedade de espécie alguma.
Quase uma hora se passou nisto e o chá acabou,
ficando então as visitas sem jeito de permanecer mais tempo. O doutor e o
cavalheiro dos cabelos grisalhos despediram-se efusivamente de Míchkin, pondo
se também os demais em debandada, despedindo-se com ruidosa cordialidade,
expressando a opinião de que não era preciso ninguém se afligir, que tudo
acabaria da melhor forma, e assim por diante. Antes tinha havido tentativas de
pedir champanha, acabando, porém, as pessoas mais velhas por frear a
rapaziada.
Depois que todos se foram embora, Keller se inclinou para Liébediev e lhe fez
ver que “você e eu devíamos ter feito uma barreira, ter brigado, mesmo que nos
desgraçássemos e fôssemos arrastados até a polícia! Mas ele fez uma porção de
novos amigos. E que amigos! Conheço-os a todos”.
Liébediev que estava um
pouco “alto” grasnou, por entre gesticulações:
- “Aos sábios e aos prudentes
escondeste estas coisas mas as revelaste às criancinhas!” Já antes disse eu isto,
referindo-me a ele. mas agora acrescentarei que Deus salvou a própria criança
do báratro sem fundo. Ele e os seus santos!
Enfim, lá para as dez e meia, o
príncipe conseguiu ficar sozinho, Doía-lhe a cabeça. Kólia ajudou-o a mudar a
roupa de casamento pelo terno diário e foi a última pessoa a deixá-lo, tendo-se
despedido com muita efusão, sem falar no
que havia acontecido, e prometendo vir bem cedo no dia seguinte.
Depois, no
inquérito, testemunhou que o príncipe não deixara escapar nenhuma insinuação
ou pressentimento fosse sobre o que fosse, na hora de se despedirem, tendo pois
escondido até dele suas intenções. E em breve não ficou mais ninguém na casa,
tendo Burdóvskii ido ver Ippolít, e Keller com Líébediev saído decerto para beber.
Apenas permaneceu, por algum tempo ainda, no apartamento do príncipe, Vera
Liébedieva. E isto mesmo para apressadamente repor as coisas em seus
costumeiros lugares, olhando, de relance, ao sair, para Míchkin que estava
sentado, com os cotovelos fincados sobre a mesa e com a cabeça escondida
entre as mãos. O príncipe voltou-se para ela, com surpresa, e por um minuto
ficou como que a se querer recordar. Mas, recordando e reconhecendo as coisas,
uma a uma, pouco a pouco foi começando a ficar agitado. O mais que fez,
porém, foi pedir-lhe muito sério, que lhe batesse na porta, no dia seguinte, às sete
horas, com tempo de ainda pegar o primeiro trem, tendo Vera dito que sim. Ao
que o príncipe lhe rogou que não dissesse isso a ninguém. Ela tornou a prometer.
E. quando já estava abrindo a porta para sair, o príncipe a chamou, uma terceira
vez, tomoulhe as mãos, beijou-as, depois lhe beijou a testa e, de maneira um
tanto esquisita, lhe disse:
- Até amanhã.
Assim, pelo menos, o descreveu Vera, depois. Saiu, muito aflita, por causa dele.
E, em verdade, só teve ânimo e sossego de manhã quando, às sete horas, lhe
bateu à porta, conforme a combinação, informando-o que o trem para
Petersburgo partiria dentro de um quarto de hora. E, pelo tom, lhe pareceu que
ele respondera de forma natural e até mesmo afável. Disse, lá de dentro, que
nem se despira, mas que tinha dormido um pouco. Que pensava voltar ainda
hoje. Parecia, por conseguinte, que ele julgara melhor e mais conveniente não
dizer senão a ela, nesse momento, que ia à cidade.
continua página 539...
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Segunda Parte
Terceira Parte
O Idiota: Quarta Parte (10c) - A narração do que se seguiu
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