terça-feira, 5 de agosto de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Quarta Parte (10c) - A narração do que se seguiu

O Idiota

Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Quarta Parte

10.

continuando...

.     A narração do que se seguiu, durante a cerimônia, me foi dada por pessoa que assistiu a tudo. E creio que contou corretamente. 
     Estava o casamento marcado para as oito horas da noite. Mas, às sete, Nastássia Filíppovnajá estava quase completamente pronta. Uma turba fervilhante começara a ajuntar-se desde as seis em volta da vila de Liébediev. E outra, ainda maior, diante da casa de Dária Aleksiéievna. A igreja começara a encher desde as sete horas. Vera Liébedieva e Kólia achavam-se muito nervosos, por causa de Míchkin, embora estivessem muito ocupados preparando a recepção e os refrescos nos apartamentos do príncipe, apesar dos convidados não serem em grande número. Além das pessoas indispensáveis, estariam presentes Liébediev, os Ptítsin, Gánia, o doutor com a sua cruz de Sant’Ana ao pescoço, e Dária Aleksiéievna como convidada também.
     Tendo sido perguntado ao príncipe por que fora o doutor convidado, sendo “homem que mal conhecia”, respondeu complacentemente:

- Em consideração ao seu busto condecorado; como se trata de pessoa muito respeitada, convém ao estilo da coisa! - e riu.
   
     Keller e Burdóvskii, em trajes de gala, de luvas, pareciam estar corretos; apenas Keller tendo perturbado outra vez o príncipe e seus partidários, pela insistência que não era lá muito distinta, agora, de brigar, lançando olhares assaz hostis, da janela e da porta, à onda de curiosos que cercava a casa. Por fim, às sete e meia, o príncipe saiu para a igreja, de carro.
     Queremos observar que ele, particularmente, não quis omitir nenhuma das cerimônias usuais, tudo devendo ser feito, abertamente. publicamente e na “devida ordem”. Tendo feito, como foi possível, a sua passagem por entre a multidão, na igreja, escoltado por Keller, que ainda dardejava olhares ameaçadores para a direita e para a esquerda, e seguido de um contínuo fogo de sussurros e exclamações, o príncipe desapareceu temporariamente atrás do altar-mor da igreja, enquanto Keller saiu para ir buscar a noiva na casa de Dária Aleksiéievna, lá encontrando uma multidão duas ou às vezes maior e mais estouvada e crepitante do que a que rodeava a casa do príncipe.
     Ao subir a escada ouviu exclamações que ultrapassavam sua capacidade de paciência e já se ia voltar para dirigir uma arenga apropriada à ralé e à gentalha quando foi impedido disso, ainda a tempo, por Burdóvskii e Dária Aleksiéievna. Contendo-o, obrigaram-no a entrar. Keller era todo irritação e pressa.
     Nastássia Filíppovna levantou-se, olhou-se ainda ao espelho, observando-se com um sorriso contrafeito, conforme depois Keller contou, “tão pálida como a morte”, inclinou-se com toda a devoção para o ícone e se dirigiu para os degraus. Um zumbido de vozes, quase clamor, saudou a sua aparição. No primeiro instante é verdade que houve sons de risos e aplausos, talvez mesmo assobios; mas, dentro de um momento, começaram a ser ouvidas coisas assim:

- Que beleza! - exclamavam de dentro da multidão.
- Não é a primeira e nem será a última!
- Vai cobrir tudo com a cauda do vestido nupcial!
- Uma beleza destas não se acha tão depressa! - gritaram os que estavam mais perto. 
- Hurra! 
- Que princesa! Por uma princesa assim, vendo a alma! - gritou um serventuário que avaliou: 
- “Uma noite pelo preço de uma vida!” 

     Nastássia Filíppovna evidentemente estava tão branca como um lenço, quando apareceu com os seus grandes olhos postos sobre a multidão. Olhos que pareciam carvões acesos. Toda a turba, agora, era a seu favor, pois a indignação se tinha transformado em gritos de entusiasmo. E a porta da carruagem já estava aberta, e Keller já oferecia o braço à noiva, quando ela, de súbito, deu um grito e enveredou por entre a multidão. Todos, acompanhando- a com os olhares, ficaram petrificados de pavor. A multidão abriu-se para lhe dar passagem. E nisto, a cinco ou seis passos do último degrau, apareceu Rogójin. Nastássia Filíppovna lhe descobrira os olhos no meio da multidão. Arremessou-se na direção dele, como uma criatura que enlouqueceu; agarrou- se a ele, com as duas mãos, gritando:

- Salve-me. Leve-me daqui. Para onde quiser, já!

     Tomando-a nos braços, Rogójin a carregou para a sua carruagem. Em um relance puxou uma nota de cem rublos, entregando-a ao cocheiro. - Para a estação da estrada de ferro. Se pegarmos ainda o trem, mais outra nota igual! 
     Disse e pulou para dentro da carruagem onde já estava Nastássia Filíppovna; e bateu a porta. O cocheiro não hesitou um momento. Fustigou os cavalos. Keller deu explicações, depois que tinha sido pegado de surpresa! “Um minuto só, mais, e eu voltaria a mim e não os teria deixado fugir”, explicou, ao descrever a aventura. Burdóvskíi pensou em tomar uma outra carruagem que se encontrava ali perto, ao lado, e correr em perseguição de Rogójin, mas refletiu, quando já estava para sair, considerando que “de qualquer forma era demasiado tarde e ninguém a iria trazer à força”.

- E o príncipe não haveria de querer isso, não! decidiu Burdóvskii, tremendamente agitado.

     O carro, ao galope dos animais, chegou à estação, ainda a tempo. Rogójin e Nastássia Filíppovna saltaram a correr. E quando Rogójin já estava a subir para o trem, fez parar uma meninota que se achava com um manto preto, ainda decente, embora usado, e com um lenço de seda na cabeça.

- Quer cinqüenta rublos por isso? - perguntou, instantaneamente, estendendo o dinheiro para a rapariga que ficou espantada, sem saber se segurava ou não o dinheiro. E logo Rogójin lhe arrebatou manto e lenço que jogou aos ombros e à cabeça de Nastássia Filíppovna. Sua toilette fora do comum despertaria atenção durante a viagem. E foi só depois, quando os viu desaparecer no vagão, que a rapariguinha compreendeu qual a serventia do seu manto velho e do lenço barato.

     A notícia do que acabara de acontecer chegou à igreja com uma rapidez assombrosa. Quando Keller entrou como um raio, muitas pessoas se precipitaram para ele a fazer-lhe perguntas. Ninguém saiu da igreja que burburinhava de falatórios, risadas e movimentos de cabeças. O que todo o mundo queria era ver como o noivo receberia a notícia. Ele recebeu a comunicação com aparente calma: apenas ficou pálido e teve certa dificuldade em dizer: 

- Eu tinha qualquer receio, mas nunca pensei que isto viesse a acontecer. -e acrescentou depois de breve pausa - Contudo, está na ordem natural das coisas, principalmente tendo em vista o estado dela. 

     Até Keller falou depois sobre tal observação do príncipe como sendo de “uma filosofia incomparável”.
     Aparentemente calmo e resignado, o príncipe deixou a igreja: pelo menos assim muita gente teve a impressão e comentou depois, tinha o ar de querer veementemente ir embora para casa e ficar sozinho, nem isso lhe tendo sido de todo permitido, pois vários convidados o acompanharam até aos seus aposentos: Ptítsin, Gavríl Ardalíónovitch e o médico que, como os outros, não pensou em tão cedo ir embora. Era mais do que natural que a casa em pouco estivesse literalmente rodeada de gente desocupada. Lá da varanda, Míchkin ouvia Liébediev e Keller, furiosos, afastando pessoas desconhecidas que só por estarem regularmente vestidas se julgavam no direito de ir entrando. A algumas delas que se adiantaram se dirigiu o príncipe, perguntando do que se tratava, polidamente afastando Keller e Liébediev.
     Depois se encaminhou para um cavalheiro corpulento, de cabeça grisalha, parado diante dos degraus, àfrente de um dos tais grupos, e cortesmente o convidou a honrá-lo com a sua entrada. Um tanto desconcertado, o homem entrou, seguido logo depois de um segundo e um terceiro. Até que do grupo entraram bem uns oito, que conseguiram isso de maneira desenvolta. Depois do que, não houve mais quem se arriscasse a se ajuntar àqueles, pondo-se até alguns, cá de fora, a censurar os outros que, no entanto, lá dentro se assentavam, desmanchando-se em conversa e aceitando o chá que lhes era oferecido.
     Tendo isso, da parte do príncipe, sido feito com modéstia e espontaneidade, a surpresa dos recém-chegados se foi transformando em grata expectativa. Ficaram, naturalmente, tentando reanimar a conversa e encaminhá-la para o tema que jazia culminante em seus espíritos. Arriscaram umas perguntas indiscretas, também tendo sido proferidas certas observações. O príncipe respondeu a tudo com tanta simplicidade e candura e, ainda por cima, com tamanha dignidade e confiança na bem educada intenção dos convidados que a atmosfera de curiosidade se extinguiu por si mesma.
     Pouco a pouco a conversa enveredou para outras coisas, aliás sérias. Um cavalheiro, por exemplo, pegando no ar qualquer palavra, jurou, repentinamente, com intensa indignação, que não venderia a sua propriedade, acontecesse o que acontecesse, mas que, muito pelo contrário, iria contemporizando, e que “possuir imóveis era melhor do que dinheiro”.

- Este é que é o meu sistema econômico, meu caro senhor, e não há mal nenhum em comunicar este meu ponto de vista. - dirigia-se ao príncipe que calorosamente levou em apreço aquelas palavras, até que Liébediev lhe disse ao ouvido, disfarçando, que aquele indivíduo não tinha lar, nem casas nem propriedade de espécie alguma.

     Quase uma hora se passou nisto e o chá acabou, ficando então as visitas sem jeito de permanecer mais tempo. O doutor e o cavalheiro dos cabelos grisalhos despediram-se efusivamente de Míchkin, pondo se também os demais em debandada, despedindo-se com ruidosa cordialidade, expressando a opinião de que não era preciso ninguém se afligir, que tudo acabaria da melhor forma, e assim por diante. Antes tinha havido tentativas de pedir champanha, acabando, porém, as pessoas mais velhas por frear a rapaziada.
     Depois que todos se foram embora, Keller se inclinou para Liébediev e lhe fez ver que “você e eu devíamos ter feito uma barreira, ter brigado, mesmo que nos desgraçássemos e fôssemos arrastados até a polícia! Mas ele fez uma porção de novos amigos. E que amigos! Conheço-os a todos”.
     Liébediev que estava um pouco “alto” grasnou, por entre gesticulações:

- “Aos sábios e aos prudentes escondeste estas coisas mas as revelaste às criancinhas!” Já antes disse eu isto, referindo-me a ele. mas agora acrescentarei que Deus salvou a própria criança do báratro sem fundo. Ele e os seus santos!

     Enfim, lá para as dez e meia, o príncipe conseguiu ficar sozinho, Doía-lhe a cabeça. Kólia ajudou-o a mudar a roupa de casamento pelo terno diário e foi a última pessoa a deixá-lo, tendo-se despedido com muita efusão, sem falar no que havia acontecido, e prometendo vir bem cedo no dia seguinte.
     Depois, no inquérito, testemunhou que o príncipe não deixara escapar nenhuma insinuação ou pressentimento fosse sobre o que fosse, na hora de se despedirem, tendo pois escondido até dele suas intenções. E em breve não ficou mais ninguém na casa, tendo Burdóvskii ido ver Ippolít, e Keller com Líébediev saído decerto para beber. Apenas permaneceu, por algum tempo ainda, no apartamento do príncipe, Vera Liébedieva. E isto mesmo para apressadamente repor as coisas em seus costumeiros lugares, olhando, de relance, ao sair, para Míchkin que estava sentado, com os cotovelos fincados sobre a mesa e com a cabeça escondida entre as mãos. O príncipe voltou-se para ela, com surpresa, e por um minuto ficou como que a se querer recordar. Mas, recordando e reconhecendo as coisas, uma a uma, pouco a pouco foi começando a ficar agitado. O mais que fez, porém, foi pedir-lhe muito sério, que lhe batesse na porta, no dia seguinte, às sete horas, com tempo de ainda pegar o primeiro trem, tendo Vera dito que sim. Ao que o príncipe lhe rogou que não dissesse isso a ninguém. Ela tornou a prometer. E. quando já estava abrindo a porta para sair, o príncipe a chamou, uma terceira vez, tomoulhe as mãos, beijou-as, depois lhe beijou a testa e, de maneira um tanto esquisita, lhe disse:

- Até amanhã.

     Assim, pelo menos, o descreveu Vera, depois. Saiu, muito aflita, por causa dele. E, em verdade, só teve ânimo e sossego de manhã quando, às sete horas, lhe bateu à porta, conforme a combinação, informando-o que o trem para Petersburgo partiria dentro de um quarto de hora. E, pelo tom, lhe pareceu que ele respondera de forma natural e até mesmo afável. Disse, lá de dentro, que nem se despira, mas que tinha dormido um pouco. Que pensava voltar ainda hoje. Parecia, por conseguinte, que ele julgara melhor e mais conveniente não dizer senão a ela, nesse momento, que ia à cidade.
 
Terceira Parte
O Idiota: Quarta Parte (10c) - A narração do que se seguiu
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