Elias Canetti
MALTA E RELIGIÃO
As Danças da Chuva dos Índios Pueblos
São de multiplicação as danças que devem trazer a chuva. Elas a
arrancam do solo, por assim dizer, pisoteando-o. O bater dos pés é
como o cair das gotas. Se a chuva começa a cair durante a
representação, os pueblos seguem dançando nela. A dança que
representa a chuva transforma-se, afinal, nela própria. Um grupo de
talvez
quarenta
pessoas movimentando-se ritmicamente metamorfoseia-se em chuva.
A chuva é o mais importante símbolo de massa dos índios pueblos.
Ela sempre foi importante, inclusive para seus antepassados, que
possivelmente viviam em alguma outra parte. Contudo, desde que
passaram a habitar as áridas mesetas, aumentou tanto a sua importância
que a chuva determinou inteiramente a natureza de sua crença. O
milho, do qual vivem, e a chuva, sem a qual o milho não cresce,
compõem o cerne de todas as suas cerimônias. Os muitos expedientes
mágicos de que se servem os pueblos para produzir a chuva são
condensados e intensificados nessas suas danças da chuva.
Há que se enfatizar que tais danças nada têm de selvagem, mas
relacionam-se com a natureza da própria chuva. Na qualidade de
nuvem, forma sob a qual ela se aproxima, a chuva constitui uma
unidade. A nuvem encontra-se no alto e distante, ela é macia e branca e,
ao aproximar-se, desperta ternura nos homens. Contudo, tão logo se
descarrega, a nuvem desintegra-se. A chuva chega aos homens e ao solo
que a absorve em gotas individuais e isoladas. A dança que,
metamorfoseando-se nela, tem por função atraí-la representa também,
mais do que a sua formação, a fuga e a desagregação de uma massa. Os
dançarinos anseiam pela nuvem, mas esta não deve permanecer
condensada no céu, e sim derramar-se. A nuvem é uma massa amistosa,
e, em que medida o é, depreende-se pelo fato de ela ser equiparada aos
antepassados. Os mortos retornam sob a forma de nuvens de chuva, e
trazem a bênção. Se, numa tarde de verão, nuvens de chuva aparecem
no céu, diz-se às crianças: “Vejam! Os avós de vocês vêm vindo”. E
quem o diz não se refere aos mortos de sua própria família, mas aos
antepassados de um modo geral.
Já os sacerdotes, em seu isolamento ritual, permanecem sentados e
imóveis por oito dias e, absortos em si mesmos diante de seus altares,
invocam a chuva:
De onde quer que tenhais vossa morada permanente,
Desde lá vos poreis a caminho,
Para encher das águas cheias de vida
Vossas nuvenzinhas compelidas pelo vento,
Vossas delgadas tiras de nuvens.
Mandareis para nós, para que conosco permaneça,
Vossa linda chuva, que acaricia a terra
Aqui em Itiwana,
Morada de nossos pais,
De nossas mães
E daqueles que viveram antes de nós.
Com vossa imensidão de água,
Vireis todos juntos.
O que se deseja é uma imensidão de água, mas essa imensidão, reunida em nuvens, desfaz-se em gotas. A tônica das danças da chuva recai sobre a desagregação. O que se deseja é uma massa branda ; não se trata de um animal perigoso que se tenha de abater, ou de um inimigo odioso a ser combatido. Essa massa é equiparada àquela dos antepassados, que, para os pueblos, são pacíficos e benevolentes.
A bênção que as gotas trazem para o solo conduz, então, a uma outra massa, da qual vivem: o milho. Como em toda colheita, o milho é reunido em montes. Tem-se aí precisamente o processo inverso: as nuvens de chuva desagregam-se em gotas; o monte colhido, por sua vez, reúne todas as espigas, cada grão de milho, por assim dizer.
Graças a esse alimento, os homens fazem-se fortes e as mulheres,
férteis. A palavra crianças figura constantemente nas preces. O sacerdote
fala dos vivos da tribo como se falasse de crianças, mas fala também de
todos os meninos e meninas, de todos aqueles “que têm ainda a vida
pela frente”. Estes constituem aquilo a que chamaríamos o futuro da
tribo. Para usar uma imagem mais precisa, o sacerdote os vê como
todos aqueles que têm ainda a vida pela frente.
As massas fundamentais na vida dos pueblos são, portanto, a dos
antepassados e das crianças, a da chuva e a do milho — ou, se se deseja
colocá-las em algo como uma sequência causal, a dos antepassados, da
chuva, do milho e das crianças.
Dos quatro tipos de malta existentes, as de caça e de guerra quase
inexistem entre os pueblos. Há ainda resquícios de caça aos coelhos,
assim como há também uma sociedade de guerreiros, mas sua função é
tão somente a de uma polícia — e, para a existência entre eles de uma
polícia, no nosso sentido da palavra, são poucos os motivos. Entre os
pueblos, a malta de lamentação foi restringida de maneira espantosa.
Dá-se às mortes a menor importância possível, e, na condição de
indivíduos, procura-se esquecer os mortos com a máxima rapidez.
Quatro dias após a morte, o sacerdote supremo exorta os enlutados a
não pensarem mais no morto: “Ele já está morto há quatro anos!”. A
morte é deslocada para o passado, atenuando assim a dor. Os pueblos
nada têm a dizer sobre as maltas de lamentação: eles isolam a dor.
Resta-lhes, pois, como forma ativa e bastante desenvolvida de malta, a
malta de multiplicação. Toda a ênfase da vida comunitária é transferida
para ela. Poder-se-ia dizer que os pueblos vivem unicamente para essa
multiplicação, e ela é empregada exclusivamente no sentido positivo. A
cabeça de Jano que conhecemos de tantos outros povos — por um lado,
a multiplicação da própria gente; por outro, a diminuição dos inimigos
— é-lhes desconhecida. Assim, não se interessam por guerras. A chuva e
o milho os abrandaram, e sua vida vincula-se inteiramente à de seus
próprios antepassados e de suas crianças.
continua página 210...
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht
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Leia também:
Massa e Poder - Malta e Religião: As Danças da Chuva dos Índios Pueblos
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994.
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) e O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de Marrakech, Festa sob as bombas e Sobre a morte.
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Título original Masse und Macht
"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."
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