segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Mário, Livro Primeiro - Paris estudado na sua mais tênue parcela / V - As suas fronteiras

Victor Hugo - Os Miseráveis

Terceira Parte - Mário

Livro Primeiro — Paris estudado na sua mais tênue parcela

V - As suas fronteiras
     
     O gaiato gosta da cidade, mas não desgosta da solidão, porque há nele o seu quê de filósofo. Urbis amator, como Fusco; ruris amator, como Flacco.
      Empregar o tempo em vaguear meditando é, sem dúvida, um bom emprego para o pensador, especialmente para essa espécie de campo algum tanto espúrio e bastante feio, mas singular e composto de duas naturezas, que se estende em roda de algumas grandes cidades, especialmente de Paris. Observar os arrabaldes é observar um anfíbio.
     Findam as árvores e principiam os telhados, acaba a erva e começa a calçada, terminam os regos e principiam as lojas, desaparecem as rodeiras e principiam as paixões, extingue-se o murmúrio divino e ergue-se o rumor humano; é extraordinário o interesse que disto resulta.
     É daí que provém os passeios, aparentemente sem fim, dos homens meditabundos por esses lugares pouco aprazíveis e denominados para sempre, por quem passa, com o epíteto de tristes.
     Quem estas linhas escreve passeou muitas vezes pelos arrabaldes de Paris; e é isso para ele uma fonte de profundas recordações.
     A erva rasa, os caminhos pedregosos, o barro, os marnes, as ásperas monotonias dos baldios, as plantações serôdias avistadas de repente num ou noutro ponto, a mistura do selvático e do burguês, os vastos recantos desertos onde se estabelecem estrondosamente as escolas dos tambores da guarnição, balbuciando uma batalha, aquelas tebaidas de dia, e pontos para emboscadas de noite, o moinho desconjuntado girando com o vento, as rodas de extração das pedreiras, as tascas juntas dos cemitérios, o encanto misterioso dos grandes e sombrios muros, cortando em ângulos retos imensos terrenos devolutos, inundados de sol e povoados de borboletas, tudo o atraía.
      Quase ninguém neste mundo conhece os sítios singulares, da Glacière e da Cune e, o hediondo muro de Grenelle, crivado de balas, o Mont-Parnasse, a Fosse-aux-Loups, os Aubiers na ribanceira do Mame, Mont-Souris, a Tombe Issoire e a Pierre-Plate de Châtillon, onde há uma velha pedreira explorada, que só serve para fazer nascer cogumelos, e que é fechada à flor da terra por um alçapão de madeira já podre. A campina de Roma é uma ideia, o termo de Paris é outra; não ver no horizonte que se nos oferece, senão campos, casas e árvores, é ficar à super cie; todos os aspectos das coisas são pensamentos de Deus. O lugar em que uma planície se liga com uma cidade é sempre impregnado de não sei que penetrante melancolia. Ouvem-se ali ao mesmo tempo as vozes da natureza e as da humanidade. É ali que as originalidades locais se patenteiam.
     Quem quer que tenha divagado, como nós, nas solidões contíguas aos nossos arrabaldes, que poderiam chamar-se limbos de Paris, viu infalivelmente, num ou noutro ponto, no sítio mais abandonado, no momento mais inesperado, por trás de magra sebe, ou do ângulo de lúgubre muro, crianças agrupadas tumultuosamente, fé das, enlameadas, cobertas de terra, vestidas de andrajos, e como eriçadas, jogando a chopo, coroadas de flores. São tudo rapazinhos pobres fugidos às famílias.
     O boulevard exterior é o seu meio respirável; os arredores de Paris pertencem-lhes; fazem deles uma eterna escola de gazeta, cantando ingenuamente o seu repertório de cantigas nojentas. Estão ali, ou antes, existem ali, longe de todas as vistas, à suave luz de Maio ou de Junho, ajoelhados em volta dum buraco feito na terra, jogando, disputando por causa de um soldo, irresponsáveis, livres, felizes; e apenas vos avistam, lembram-se de que têm uma indústria, com que ganham a vida e oferecem-vos para comprardes, uma meia velha de lã cheia de besouros, ou um ramo de lilases. Estes encontros de estranhas crianças, são uma das graças encantadoras e ao mesmo tempo pungentes dos arredores de Paris.
     Algumas vezes, naqueles montões de rapazes veem-se rapariguinhas; serão suas irmãs? Quase mulheres, magras, febris, crestadas pelo sol, com os rostos sardentos, com espigas de centeio e papoilas nos cabelos, alegres, descalças e ariscas. Veem-se algumas entre o trigo comendo cerejas, e à tarde ouvem-se-lhes os risos. Estes grupos ardentemente iluminados pelo Sol do meio-dia, ou entrevistos no crepúsculo, ocupam por muito tempo o pensador; estas visões invadem-lhe a meditação.
     Paris, centro — os arredores, circunferências; eis para tais crianças a terra inteira. Jamais passam além. Podem tão pouco sair da atmosfera parisiense como os peixes podem sair da água. Para elas, além de duas léguas das barreiras, não existe mais nada; Ivry, Gen lly, Arcueil, Belleville, Aubervilliers, Ménilmontant, Choisy-le-Roi, Billancourt, Meudon, Issy, Vanvre, Sèvres, Puteaux, Neilly, Gennevilliers, Colombes, Romainville, Chatou, Asnieres, Bougival, Nanterre, Bnghien, Noisy-le-Sec, Nogent, Gournay, Drancy e Gonesse, é tudo quanto compõe o Universo.

continua na página 440...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Mário, Livro Primeiro - V - As suas fronteiras
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

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