sábado, 2 de agosto de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Oitavo - Os cemitérios aceitam o que lhes dão / VIII - Interrogatório bem sucedido

Victor Hugo - Os Miseráveis


Segunda Parte - Cosette

Livro Oitavo — Os cemitérios aceitam o que lhes dão

VIII - Interrogatório bem sucedido
     
      Uma hora depois, no meio da escuridão da noite, apresentaram-se à porta da casa do número 62 da rua do Petit-Picpus dois homens e uma criança.
     Eram Fauchelevent, Jean Valjean e Cosette.
     Os dois velhos tinham ido buscar Cosette a casa da vendedeira de fruta, à rua do Caminho Verde, onde Fauchelevent a levara na véspera. Cosette passara aquelas vinte e quatro horas sem perceber coisa alguma e a tremer em silêncio. Sentia tanto medo, que nem tinha chorado, nem comido, nem dormido. A digna fruteira fizera-lhe mil perguntas, sem que pudesse obter mais do que um olhar triste, e sempre o mesmo.
     Cosette não dissera absolutamente nada de quanto vira e ouvira havia dois dias.
     Adivinhara que estavam atravessando uma crise; sentia profundamente que era preciso «ter juízo». Quem há que não haja experimentado o soberano poder das três palavras: Não digas nada!, pronunciadas em certo tom, ao ouvido de uma criança assustada? O medo é mudo. E depois, ninguém guarda um segredo como uma criança.
      Só ao cabo daquelas lúgubres vinte e quatro horas, quando tornara a ver Jean Valjean, soltara um tal grito, no qual, qualquer pessoa que o tivesse ouvido, adivinharia a saída de um abismo.
     Diante de Fauchelevent que era do convento e conhecia a senha que ali dava entrada, todas as portas se abriram.
      E assim se resolveu o duplo e terrível problema: sair e entrar.
     O porteiro, que tinha as suas instruções, abriu a portinha particular que comunicava o pátio com o jardim e que há vinte anos se via ainda da rua, no muro do fundo em frente do portão principal. O porteiro fê-los entrar todos por aquela porta e dali encaminharam-se para o locutório interior reservado, onde Fauchelevent recebera as ordens da prioresa.
     A prioresa esperava-os com o seu rosário nas mãos.
     Junto dela e de pé, estava uma madre vocal. Uma discreta vela alumiava, ou antes, podia dizer-se, fingia alumiar o locutório.
     A prioresa mirou de alto a baixo Jean Valjean. Não há para ver bem como uns olhos baixos. Depois perguntou-lhe:

 — Você é o irmão do senhor Fauvent? 
— Sim, reverenda madre — respondeu Fauchelevent. 
— Como se chama?

     Fauchelevent respondeu:

— Ultime Fauchelevent.

     Tivera, com efeito, um irmão que já não existia, chamado Ultime.

— De que terra é? 
— De Picquigny que fica ao pé de Amiens — respondeu Fauchelevent. 
— Que idade tem? 
— Cinquenta.
— Que profissão exerce? 
— É jardineiro 
— É bom cristão? 
— Toda a nossa família o é — respondeu Fauchelevent. 
— Essa pequena é sua? 
— É, reverenda madre — respondeu Fauchelevent. 
— É pai dela? 
— Avô — respondeu Fauchelevent.

      A madre vocal, no fim, disse para a prioresa a meia-voz:

— O homem responde bem.

      Jean Valjean não tinha pronunciado uma palavra.
      A prioresa olhou com atenção para Cosette e disse a meia-voz para a madre vocal:

— A pequena é que há de vir a ser feia.

     As duas madres conversaram durante alguns minutos em voz baixa no recanto do locutório, e em seguida a prioresa voltou-se e disse:

— Senhor Fauvent, trate de arranjar outra joelheira com guizo. Agora são precisas duas.

     Ao outro dia, efetivamente ouviam-se dois guizos no jardim, e as religiosas não podiam ter-se que não erguessem uma ponta do véu. Por entre as árvores viam-se no fim da cerca dois homens a par, cavando com pás: Fauvent e outro. Sucesso enorme!
    Chegaram a quebrar o silêncio para dizerem umas às outras: «É um ajudante do jardineiro».
    As madres vocais acrescentavam: «É um irmão do senhor Fauvent».
    Efetivamente, Jean Valjean estava legalmente instalado; trazia a joelheira de couro e o guizo; tinha tomado posse. O seu nome era Ultime Fauchelevent.
    A causa mais forte que preponderara no ânimo da prioresa para a admissão de Cosette fora a observação que a respeito dela fizera: a pequena há de vir a ser feia. Pronunciado este prognóstico, a prioresa tomou imediatamente amizade a Cosette, dando-lhe lugar no recolhimento como educanda de caridade.
    Isto é tudo extremamente lógico.
    Debalde no convento é proibido o uso do espelho, porque as mulheres têm uma consciência para a fisionomia; ora as donzelas que sabem que são bonitas dificilmente se deixam fazer religiosas, e por isso sendo a vocação voluntária na razão inversa da beleza, espera-se mais das feias do que das formosas, e daí a inclinação das feias pelas menos belas.
    Esta aventura engrandeceu o bondoso Fauchelevent, que teve um tríplice sucesso: com Jean Valjean a quem salvou e deu guarida; com o coveiro Gribier, que dizia a sós consigo: «Aquele homem foi causa de eu não pagar a multa»; e com o convento, que, ficando, graças a ele, de posse do corpo da madre Crucificação, iludiu a César e satisfez a Deus. Ficou um caixão com cadáver no Petit-Picpus e foi um caixão sem cadáver para o cemitério de Vaugirard; a ordem pública de certo foi profundamente perturbada com isso, mas não deu por tal coisa. Quanto ao convento, foi grande o reconhecimento de que se sentiu dominado para com Fauchelevent. Fauchelevent tornou-se o melhor dos servidores e o mais precioso dos jardineiros Na visita imediata do arcebispo, a prioresa contou o caso a sua grandeza, parte confessando-se, parte também gabando-se, e na saída do convento o arcebispo repetiu-o em voz baixa, aplaudindo-o, ao senhor de Latil, confessor do príncipe que depois foi arcebispo de Reims e cardeal. Correu tanto a admiração por Fauchelevent, que chegou até Roma.
     Temos à vista uma carta de Leão XII, então Papa reinante, dirigida a um seu parente, chefe da nunciatura em Paris, e como ele chamado Della Genga, na qual se leem as seguintes linhas:

Dizem-me que há aí, num convento dessa cidade, um excelente jardineiro chamado Fauvent, que parece ser um santo homem.

     Nem o mais leve murmúrio, porém, de todo este triunfo chegou até à barraca de Fauchelevent. O pobre velho continuou a fazer enxertos, a sachar e a tratar dos meloais sem ter conhecimento da sua virtude nem da sua santidade Teve tanta notícia da sua glória como qualquer boi de Durham ou de Surrey, de que a Illustrater London News publica o retrato com esta inscrição:

 Boi premiado na exposição dos animais cornígeros.

continua na página 427...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Oitavo - VIII - Interrogatório bem sucedido
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 
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[1] Hospital de doidos.

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