Hannah Arendt
Parte II
IMPERIALISMO
Se eu pudesse, anexaria os planetas.
Cecil Rhodes
2.1 - Uma "Raça" de Aristocratas Contra uma "Nação" de Cidadãos
O crescente interesse pelos povos "diferentes", estranhos e até mesmo selvagens caracterizou a França
intelectual do século XVIII. As pinturas chinesas eram admiradas e imitadas nessa época, uma das obras
mais famosas intitulava-se Lettres persanes e as narrativas de viajantes eram a leitura favorita da
sociedade. A honestidade e a simplicidade dos povos selvagens e não-civilizados opunham-se à
sofisticação e frivolidade da cultura. Muito antes que o século XIX, com o aumento das oportunidades de
viajar, trouxesse o mundo não-europeu ao alcance de qualquer cidadão médio, a sociedade francesa do
século XVIII já havia tentado espiritualmente compreender o conteúdo de culturas e países distantes das
fronteiras europeias. Um fervoroso entusiasmo por "novos espécimes da humanidade" (Herder) orgulhava
os heróis da Revolução Francesa que, juntamente com a nação francesa, levaram liberdade aos povos de todas as cores
que viviam sob a bandeira da França. Esse entusiasmo por países estranhos e por estrangeiros
culminou na mensagem da fraternidade, porque se inspirava no desejo de demonstrar, em cada
novo e surpreendente "espécime da humanidade", o velho ditado de La Bruyère: La raison est
de tous les climats.
No entanto, é nesse século criador de nações e é nesse país amante da humanidade que vamos
encontrar o germe daquilo que mais tarde viria a ser o poderio racista destruidor das nações e
aniquilador da humanidade.[7] É notável o fato de que o primeiro autor que preconizou a
coexistência, na França, de diversos povos de diferentes origens fosse, ao mesmo tempo, o
primeiro a desenvolver um modo definido de pensar em termos de classe. O conde de Boulain
villiers, nobre francês que escreveu no começo do século XVIII e cujas obras foram publicadas
após sua morte, interpretava a história da França como a história de duas nações diferentes, das
quais uma, de origem germânica, havia conquistado os habitantes mais antigos, os gauleses,
impondo-lhes suas leis, tomando suas terras e estabelecendo-se como classe governante, a
"nobreza", cujos direitos supremos se baseavam no "direito da conquista" e na "necessidade da
obediência que sempre é devida ao mais forte".[8] Preocupado principalmente em encontrar
argumentos contra o crescente poder político do Tiers État e de seus porta-vozes, que eram o
nouveau corps formado pelas gens de lettres et de lois, Boulainvilliers passou a combater
também a monarquia, porque o rei da França já não queria representar a nobreza como primus
inter pares, e sim a nação como um todo; durante algum tempo, a nova classe em ascensão
chegou a ter nele o seu mais poderoso protetor. A fim de recuperar para a nobreza a primazia
inconteste, Boulainvilliers propôs que seus companheiros de nobreza negassem ter origem
comum com o povo francês, quebrassem a unidade da nação e alegassem uma distinção peculiar
e eterna.[9] Mais ousado que a maioria dos defensores da nobreza depois dele, Boulainvilliers
negava qualquer conexão predestinada entre os homens e o solo. Assim, admitia que os gauleses
estivessem na França havia mais tempo e que os francos eram estranhos e bárbaros. Mas
baseava sua doutrina exclusivamente no eterno direito de conquista e não tinha dificuldade em
afirmar que "a Frísia (...) constituía o verdadeiro berço da nação francesa". Séculos antes do
surgimento do genuíno racismo imperialista e seguindo apenas a lei inerente ao seu conceito,
considerava os habitantes originais da França como nativos no sentido modemo, ou, em seu próprio dizer, "súditos" — não do rei, mas daqueles cujo privilégio era
descenderem dos conquistadores e que, por direito de nascimento, mereciam o nome de
"franceses".
Boulainvilliers foi fortemente influenciado pelas doutrinas do "direito da força" do século XVII
e foi certamente um dos discípulos contemporâneos mais aplicados de Spinoza, cuja Ética ele
traduziu e cujo Tratado teológico-político analisou. Porém, ao aceitar e aplicar as ideias
políticas de Spinoza, transformou a força em conquista, e esta aparecia como qualidade natural,
como privilégio inato dos homens e das nações. Contudo, a teoria de Boulainvilliers ainda se refere a pessoas, e não a raças; baseia o direito do
povo superior num dado histórico, a conquista, e não num fato físico — embora o dado histórico
já resultasse das "qualidades naturais" do povo conquistado. Inventa dois povos diferentes na
França para atacar a ideia nacional, representada pela monarquia absoluta aliada ao Tiers État.
Boulainvilliers é antinacional numa época em que a ideia de nação era tomada por nova e
revolucionária; a Revolução Francesa demonstraria quão intimamente era aparentada a uma
forma democrática de governo. Boulainvilliers preparou seu país para a guerra civil sem saber o
que uma guerra civil significava. Representava muitos daqueles nobres que não se
consideravam partícipes da nação, mas sim de uma casta governante à parte, que se sentia mais
próxima de estrangeiros, desde que da "mesma sociedade e condição", do que de seus
compatriotas. Na verdade, foram essas tendências antinacionais que exerceram significativa influência entre os emigres pós-revolucionários, para serem finalmente absorvidas pelas
doutrinas raciais, expostas com franqueza já no século XIX.
De fato, só quando a Revolução forçou grande parte da nobreza da França a procurar refúgio na
Alemanha e na Inglaterra as idéias de Boulainvilliers demonstraram sua utilidade como arma
política. Até lá, sua influência sobre a aristocracia francesa manteve-se viva, como se pode ver
pela obra de um outro nobre, o conde Dubuat-Nançay,[10] que sublinhava com força ainda maior a
ligação entre a nobreza da França e seus pares nos demais países do continente europeu. Às
vésperas da Revolução, esse porta-voz do feudalismo francês sentiu-se tão inseguro que
preconizava "a criação de uma espécie de Internationale da aristocracia de origem bárbara"[11] e,
como a nobreza alemã era a única da qual se podia esperar uma eventual ajuda, não hesitou em
identificar a origem da nação francesa com a dos alemães. Assim, segundo ele, as classes
inferiores da França, embora já não fossem escravas, não eram livres por nascimento mas por
affranchissement, ou seja, pela graça daqueles que — estes sim — eram livres por nascimento: a
nobreza. Alguns anos mais tarde, os exilados franceses realmente tentaram organizar uma
Internationale de aristocratas para estrangular de antemão a revolta daqueles que desprezavam,
considerando-os um grupo estrangeiro escravizado. E, embora o lado mais prático dessas
tentativas sofresse o espetacular desastre de Valmy,* os emigres não admitiram derrota, como — entre
outros — Charles François Dominique de Villiers, que, por volta de 1800, distinguia entre os
galo-romanos inferiores e os germânicos superiores, ou William Alter, que uma década mais
tarde sonhou com uma federação de todos os povos germânicos,[12] nobres franceses inclusive.
Provavelmente nunca lhes havia ocorrido que eram, na realidade, traidores, tão firmemente
estavam convencidos de que a Revolução Francesa era uma "guerra entre dois povos
estrangeiros", como disse François Guizot mais tarde.
Enquanto Boulainvilliers, com a calma equanimidade de um tempo menos perturbado, baseou
os direitos da nobreza unicamente nos direitos de conquista, sem depreciar diretamente a própria
natureza da outra nação conquistada, o conde de Montlosier, uma das personagens mais dúbias
entre os exilados franceses, expressou francamente o seu desprezo por esse "povo que veio de
escravos (...) [uma mistura] de todas as raças e de todos os tempos".[13] Os tempos obviamente
haviam mudado, e os nobres, que já não pertenciam mais a uma "raça" inconquistável, também
tinham de mudar. Assim, acabaram abandonando a velha ideia, tão cara a Boulainvilliers e até a
Montesquieu, de que somente a conquista, fortune des armes, determinava os destinos dos
homens. A derrota das ideologias da nobreza parecia ter chegado quando o abade Siéyès, em
seu famoso panfleto, conclamou o Tiers Etat a "mandar de volta para as florestas da Francônia
todas essas famílias que conservavam a absurda pretensão de descenderem da raça
conquistadora e de terem herdado os seus direitos".[14]
É um fato bastante curioso que, desde o momento em que os nobres franceses, em sua luta de
classe contra a burguesia, descobriram pertencer a uma outra nação, descender de outra origem
genealógica e estar mais intimamente ligados a uma casta internacional do que ao solo da
França, todas as teorias raciais francesas tenham apoiado o germanismo ou, pelo menos, a
suposta superioridade dos povos nórdicos em relação aos seus próprios compatriotas. Assim, os
homens da Revolução Francesa se identificavam mentalmente com Roma, não porque
combatiam o "germanismo" da nobreza francesa opondo-lhe o "latinismo" do Tiers Etat, mas
porque se sentiam como herdeiros espirituais dos republicanos romanos. Essa pretensão
histórica, em contraste com a identificação tribal da nobreza, pode ter sido uma das causas que
impediram o "latinismo" de surgir como doutrina racial. De qualquer modo, por mais paradoxal que seja, o fato é que foram os franceses a insistirem, antes dos alemães e dos
ingleses, nessa idée fixe de superioridade germânica.[15] Nem o nascimento da consciência racial
alemã após a derrota de 1806, dirigida desde então contra os franceses, alterou o curso das
ideologias racistas na França. Nos anos 40 do século XIX, Augustin Thierry ainda aderia à
identificação de classes e raças, e distinguia a "nobreza germânica" da "burguesia celta",[16] enquanto outro nobre francês, o conde Rémusat, proclamava a origem germânica de toda a
aristocracia europeia. Finalmente, o conde Gobineau transformou em elaborada doutrina
histórica uma opinião, já aceita de modo geral entre a nobreza francesa, dizendo haver
descoberto a lei secreta da queda das civilizações e elevado a história à dignidade de ciência
natural. Com ele, a ideologia racista completou o seu primeiro estágio, iniciando o segundo,
cujas influências seriam sentidas até a década dos anos 20 do século XX.
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Parte II Imperialismo (2.1 - Uma "Raça" de Aristocratas Contra uma "Nação" de Cidadãos)
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[7] François Hotman, francês do século XVI, autor de Franco-Gallia, é às vezes apontado, como o faz Ernest Seillère, op. cit.,
como um precursor das doutrinas raciais do século XVIII. Contra essa concepção errônea, protestou com justiça Théophile Simar:
"Hotman surge não como apologista dos teutões, mas como defensor do povo que foi oprimido pela monarquia" (Etude critique sur
Ia formation de Ia doctrine des race au 18e et son expansion au 19e siècle, Bruxelas, 1922, p. 20).
[8] Histoire de Vancien gouvernement de Ia France, 1727, tomo I, p. 33.
[9] Montesquieu, Esprit des lois, 1748, XXX, capítulo 7, afirma que a visão da história do conde Boulainvilliers era uma arma
política contra o Tiers Etat.
[10] Les Origines de Vancien gouvernement de Ia France, de 1'Allemagne et deVItalie, 1789.
[11] SeiUière, op. cit., p. XXXII.
[*] Na Batalha de Valmy (20 de setembro de 1792), o exército prussiano — enviado à França para pôr um fim na Revolução
e reinstalar o antigo regime — foi fragorosamente derrotado pelo exército revolucionário. (N. E.)
[12] Ver René Maunier, Sociologie coloniale, Paris, 1932, tomo II, p. 115.
[13] Montlosier, mesmo no exílio, mantinha íntimas relações com o chefe da polícia francesa, Fouché, que o ajudou a
melhorar sua triste condição financeira de refugiado. Mais tarde, serviu como agente secreto de Napoleão na alta sociedade
francesa. Ver J. Brugerette, Le Comte de Montlosier, 1931, e Simar, op. cit..
[14] Qu'est-ce-que le Tiers Etat? (1789), publicado pouco antes do início da Revolução. Citado por J. H. Clapham, The Abbé
Siéyès, Londres, 1912, p. 62.
[15] "O arianismo histórico tem sua origem no feudalismo do século XVIII e foi apoiado pelo germanismo do século XIX",
observa Séillière, op. cit., p. II.
[16] Lettres surl 'histoire de France, 1840.
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