sábado, 16 de agosto de 2025

Massa e Poder - Malta e Religião: Sobre a Dinâmica da Guerra: O Primeiro Morto — O Triunfo

Elias Canetti

MALTA E RELIGIÃO

      Sobre a Dinâmica da Guerra: O Primeiro Morto — O Triunfo

      A dinâmica interna, ou seja, a dinâmica de malta da guerra exibe, em sua origem, o seguinte aspecto: a partir da malta de lamentação em torno de um morto, forma-se uma malta de guerra à qual cumpre vingá-lo. E da malta vitoriosa de guerra forma-se a malta de multiplicação do triunfo.
      É o primeiro morto que contagia a todos com o sentimento da ameaça. Não há como enfatizar suficientemente o significado desse primeiro morto na deflagração das guerras. Quando querem desencadear uma guerra, os detentores do poder sabem muito bem que precisam arranjar ou inventar um primeiro morto. Não importa tanto o peso que este tenha no interior de seu grupo. Pode tratar-se de alguém que não exerça nenhuma influência especial; por vezes, trata-se até mesmo de um desconhecido. O que importa é sua morte, e nada mais; tem-se de acreditar que o inimigo é responsável por ela. Todas as razões que podem ter conduzido a essa morte são ocultadas, à exceção de uma: ele morreu na condição de membro do grupo ao qual se pertence.
     A malta de lamentação que velozmente se origina atua como um cristal de massa: ela se abre, por assim dizer — todos quantos se sentem ameaçados por esse mesmo motivo se reúnem. Sua disposição converte se na de uma malta de guerra.
      A guerra, que em sua deflagração serviu-se de um único morto ou de alguns poucos, conduz a um portentoso número deles. Contrariamente ao que ocorreu no princípio, a lamentação por estes últimos, se se conquista a vitória, ostenta um caráter bastante atenuado. A vitória, que é percebida como uma redução decisiva — quando não aniquilação — do inimigo, retira da lamentação pelos mortos o seu peso. Foram enviados qual uma patrulha avançada para a terra dos mortos, e eles arrastaram consigo um número bem maior de inimigos. Dessa forma, os mortos livram as pessoas do medo sem o qual não teriam ido à guerra.
     O inimigo foi derrotado; a ameaça que uniu as pessoas desapareceu; cada um quer agora levar o seu. A malta de guerra está em via de desagregar-se no saque, tal e qual ocorre com a malta de caça, quando da partilha. Se a ameaça inicial não foi realmente sentida por todos, então foi graças unicamente à perspectiva do saque que se logrou compelir os homens à guerra. Nesse caso, tem-se sempre de deixá-los saquear; um comandante dos velhos tempos dificilmente ousaria negá-lo a sua gente. Contudo, o perigo de uma desintegração total da tropa em razão do saque era tão grande que sempre se buscaram meios de restabelecer a disposição bélica. E o meio mais bem-sucedido para tanto eram as festas da vitória.
     A confrontação da redução do inimigo com a multiplicação dos vitoriosos constitui o verdadeiro sentido das festas da vitória. O povo é reunido: homens, mulheres e crianças. Os vitoriosos aparecem ostentando as mesmas formações de quando partiram para a batalha. Exibindo-se ao povo, eles o contagiam com a atmosfera da vitória. Cada vez mais pessoas acorrem, até que, finalmente, estão presentes todos os que puderam deixar suas casas.
     Os vitoriosos, porém, não exibem tão somente a si próprios. Eles trouxeram muita coisa consigo, e voltam como multiplicadores. Os despojos são mostrados ao povo. Tem-se ali uma grande fartura de tudo quanto se precisa e se aprecia, e cada um receberá uma parte — seja porque o comandante ou rei vitorioso promoverá uma grande distribuição entre o povo, seja porque promete uma redução de impostos ou vantagens outras. Dos despojos fazem parte não apenas ouro e bens. Prisioneiros são também exibidos, e seu grande número ilustra a diminuição do inimigo.
     Em sociedades que prezam seu grau de civilização, não se vai além dessa exibição dos inimigos capturados. Outras, porém, que nos parecem mais bárbaras, exigem mais: reunido, e não mais sentindo a ameaça imediata, o público quer vivenciar de que forma o inimigo foi reduzido. Têm-se, assim, as execuções públicas, conforme nos contam os relatos acerca de festas da vitória entre muitos povos guerreiros.
     Proporções verdadeiramente fantásticas assumiram essas execuções na capital do reino do Daomé. Ali, organizava-se uma festa anual, que se estendia por vários dias: o rei oferecia a seu povo um espetáculo sangrento; centenas de prisioneiros eram decapitados aos olhos de todos.
     Sobre uma plataforma, o rei sentava-se em seu trono, em meio a seus dignitários. Embaixo, comprimia-se densamente o povo reunido. A um sinal do rei, os carrascos punham-se a trabalhar. As cabeças dos assassinados eram jogadas sobre um monte; vários desses montes podiam ser vistos por todos. Procissões cruzavam ruas em cujas laterais corpos nus de inimigos executados pendiam das forcas. Para não ferir o pudor das inúmeras mulheres do rei, os corpos apresentavam-se mutilados: haviam sido castrados. No último dia da festa, a corte voltava a se reunir sobre uma das plataformas, e havia uma farta distribuição de presentes ao povo. Conchas, que valiam como dinheiro, eram arremessadas para o público, que se debatia por elas. Depois, inimigos atados eram jogados para baixo, e também estes eram decapitados. O povo disputava os corpos, e conta-se que eles eram devorados pelas pessoas em delírio. Todos queriam receber o seu pedaço do inimigo morto, podendo-se falar aqui numa comunhão do triunfo. Aos homens, seguiam-se animais, mas o decisivo era mesmo o inimigo.
     Existem relatos de europeus que, no século XVIII, testemunharam essa festa. Eram, àquela época, os representantes das nações brancas que tinham postos de comércio na costa; o objeto de seu comércio eram os escravos, e eles iam à capital, Abomé, comprá-los do rei. Este vendia uma parte de seus prisioneiros aos europeus. Suas expedições bélicas eram empreendidas com esse propósito, o que, à época, os europeus toleravam de bom grado. Menos agradável era-lhes presenciar as terríveis execuções em massa; sua presença, porém, fazia parte do bom tom da corte. Buscavam persuadir o rei a vender-lhes como escravos as vítimas destinadas à execução. Com isso, que era bom também para os negócios, sentiam-se humanos. Mas, para seu espanto, acabavam por verificar que o rei, a despeito de sua cobiça, não abria mão das vítimas. Em épocas de escassez de escravos e baixa no comércio, irritavam-se com sua teimosia. Não compreendiam que o rei pudesse preocupar-se ainda mais com seu poder do que com suas posses. O povo estava acostumado à exibição das vítimas. Retirava do espetáculo da diminuição da massa de seus inimigos, nessa sua forma grosseira e pública, a certeza de sua própria multiplicação. Diretamente dela, porém, brotava também o poder do rei. O efeito que o espetáculo produzia era de uma dupla natureza. Por um lado, era o meio mais infalível de o rei convencer o povo de sua multiplicação sob seu reinado e, assim, de mantê-lo no estado de uma massa religiosamente devota. Por outro, mantinha aceso o terror ante suas ordens. Era ele quem, pessoalmente, ordenava as execuções.
     A maior cerimônia pública dos romanos era o triunfo. Nele, toda a cidade se reunia. Quando, porém, o império encontrava-se no auge de seu poder, e já não se tratava mais de conquistar incessantemente, a própria vitória transformou-se numa instituição, retornando periodicamente com as datas do calendário. Aos olhos do povo reunido, lutava-se na arena — uma luta sem consequências políticas, mas não desprovida de sentido: lutava-se para despertar e manter sempre aceso o sentimento da vitória. Os romanos, na qualidade de espectadores, não lutavam eles próprios, mas decidiam em massa quem havia sido o vencedor, saudando-o como nos velhos tempos. Importante era tão somente esse sentimento da vitória. As guerras em si, que não pareciam mais tão necessárias, perdiam significado ao lado desses espetáculos.
      Nos povos históricos desse gênero, a guerra torna-se o verdadeiro instrumento da multiplicação. Seja porque conseguem despojos dos quais vivem, seja porque conquistam escravos que para eles trabalham, todas as demais formas, mais pacientes, de multiplicação são repudiadas e consideradas desprezíveis. Desenvolve-se, então, uma espécie de religião estatal da guerra, tendo por propósito a multiplicação veloz.
      
continua página 215...
____________________

Leia também:

Massa e Poder - Malta e Religião: O Primeiro Morto — O Triunfo
____________________

ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
_______________________

Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

Nenhum comentário:

Postar um comentário