Elias Canetti
MALTA E RELIGIÃO
Sobre a Dinâmica da Guerra: O Primeiro Morto — O Triunfo
A dinâmica interna, ou seja, a dinâmica de malta da guerra exibe, em
sua origem, o seguinte aspecto: a partir da malta de lamentação em
torno de um morto, forma-se uma malta de guerra à qual cumpre
vingá-lo. E da malta vitoriosa de guerra forma-se a malta de
multiplicação do triunfo.
É o primeiro morto que contagia a todos com o sentimento da
ameaça. Não há como enfatizar suficientemente o significado desse
primeiro morto na deflagração das guerras. Quando querem
desencadear uma guerra, os detentores do poder sabem muito bem que
precisam arranjar ou inventar um primeiro morto. Não importa tanto o
peso que este tenha no interior de seu grupo. Pode tratar-se de alguém
que não exerça nenhuma influência especial; por vezes, trata-se até
mesmo de um desconhecido. O que importa é sua morte, e nada mais;
tem-se de acreditar que o inimigo é responsável por ela. Todas as razões
que podem ter conduzido a essa morte são ocultadas, à exceção de uma:
ele morreu na condição de membro do grupo ao qual se pertence.
A malta de lamentação que velozmente se origina atua como um
cristal de massa: ela se abre, por assim dizer — todos quantos se sentem
ameaçados por esse mesmo motivo se reúnem. Sua disposição converte
se na de uma malta de guerra.
A guerra, que em sua deflagração serviu-se de um único morto ou de
alguns poucos, conduz a um portentoso número deles. Contrariamente
ao que ocorreu no princípio, a lamentação por estes últimos, se se
conquista a vitória, ostenta um caráter bastante atenuado. A vitória, que
é percebida como uma redução decisiva — quando não aniquilação —
do inimigo, retira da lamentação pelos mortos o seu peso. Foram
enviados qual uma patrulha avançada para a terra dos mortos, e eles
arrastaram consigo um número bem maior de inimigos. Dessa forma,
os mortos livram as pessoas do medo sem o qual não teriam ido à
guerra.
O inimigo foi derrotado; a ameaça que uniu as pessoas desapareceu;
cada um quer agora levar o seu. A malta de guerra está em via de
desagregar-se no saque, tal e qual ocorre com a malta de caça, quando da
partilha. Se a ameaça inicial não foi realmente sentida por todos, então
foi graças unicamente à perspectiva do saque que se logrou compelir os
homens à guerra. Nesse caso, tem-se sempre de deixá-los saquear; um
comandante dos velhos tempos dificilmente ousaria negá-lo a sua gente.
Contudo, o perigo de uma desintegração total da tropa em razão do
saque era tão grande que sempre se buscaram meios de restabelecer a
disposição bélica. E o meio mais bem-sucedido para tanto eram as festas
da vitória.
A confrontação da redução do inimigo com a multiplicação dos
vitoriosos constitui o verdadeiro sentido das festas da vitória. O povo é
reunido: homens, mulheres e crianças. Os vitoriosos aparecem
ostentando as mesmas formações de quando partiram para a batalha.
Exibindo-se ao povo, eles o contagiam com a atmosfera da vitória. Cada
vez mais pessoas acorrem, até que, finalmente, estão presentes todos os
que puderam deixar suas casas.
Os vitoriosos, porém, não exibem tão somente a si próprios. Eles
trouxeram muita coisa consigo, e voltam como multiplicadores. Os
despojos são mostrados ao povo. Tem-se ali uma grande fartura de tudo
quanto se precisa e se aprecia, e cada um receberá uma parte — seja
porque o comandante ou rei vitorioso promoverá uma grande
distribuição entre o povo, seja porque promete uma redução de
impostos ou vantagens outras. Dos despojos fazem parte não apenas
ouro e bens. Prisioneiros são também exibidos, e seu grande número
ilustra a diminuição do inimigo.
Em sociedades que prezam seu grau de civilização, não se vai além
dessa exibição dos inimigos capturados. Outras, porém, que nos
parecem mais bárbaras, exigem mais: reunido, e não mais sentindo a
ameaça imediata, o público quer vivenciar de que forma o inimigo foi
reduzido. Têm-se, assim, as execuções públicas, conforme nos contam
os relatos acerca de festas da vitória entre muitos povos guerreiros.
Proporções verdadeiramente fantásticas assumiram essas execuções na
capital do reino do Daomé. Ali, organizava-se uma festa anual, que se
estendia por vários dias: o rei oferecia a seu povo um espetáculo
sangrento; centenas de prisioneiros eram decapitados aos olhos de
todos.
Sobre uma plataforma, o rei sentava-se em seu trono, em meio a seus
dignitários. Embaixo, comprimia-se densamente o povo reunido. A um
sinal do rei, os carrascos punham-se a trabalhar. As cabeças dos
assassinados eram jogadas sobre um monte; vários desses montes
podiam ser vistos por todos. Procissões cruzavam ruas em cujas laterais
corpos nus de inimigos executados pendiam das forcas. Para não ferir o
pudor das inúmeras mulheres do rei, os corpos apresentavam-se
mutilados: haviam sido castrados. No último dia da festa, a corte
voltava a se reunir sobre uma das plataformas, e havia uma farta
distribuição de presentes ao povo. Conchas, que valiam como dinheiro,
eram arremessadas para o público, que se debatia por elas. Depois,
inimigos atados eram jogados para baixo, e também estes eram
decapitados. O povo disputava os corpos, e conta-se que eles eram
devorados pelas pessoas em delírio. Todos queriam receber o seu
pedaço do inimigo morto, podendo-se falar aqui numa comunhão do
triunfo. Aos homens, seguiam-se animais, mas o decisivo era mesmo o
inimigo.
Existem relatos de europeus que, no século XVIII, testemunharam essa
festa. Eram, àquela época, os representantes das nações brancas que
tinham postos de comércio na costa; o objeto de seu comércio eram os
escravos, e eles iam à capital, Abomé, comprá-los do rei. Este vendia
uma parte de seus prisioneiros aos europeus. Suas expedições bélicas
eram empreendidas com esse propósito, o que, à época, os europeus
toleravam de bom grado. Menos agradável era-lhes presenciar as
terríveis execuções em massa; sua presença, porém, fazia parte do bom
tom da corte. Buscavam persuadir o rei a vender-lhes como escravos as
vítimas destinadas à execução. Com isso, que era bom também para os
negócios, sentiam-se humanos. Mas, para seu espanto, acabavam por
verificar que o rei, a despeito de sua cobiça, não abria mão das vítimas.
Em épocas de escassez de escravos e baixa no comércio, irritavam-se
com sua teimosia. Não compreendiam que o rei pudesse preocupar-se
ainda mais com seu poder do que com suas posses. O povo estava
acostumado à exibição das vítimas. Retirava do espetáculo da
diminuição da massa de seus inimigos, nessa sua forma grosseira e
pública, a certeza de sua própria multiplicação. Diretamente dela,
porém, brotava também o poder do rei. O efeito que o espetáculo
produzia era de uma dupla natureza. Por um lado, era o meio mais
infalível de o rei convencer o povo de sua multiplicação sob seu reinado
e, assim, de mantê-lo no estado de uma massa religiosamente devota.
Por outro, mantinha aceso o terror ante suas ordens. Era ele quem,
pessoalmente, ordenava as execuções.
A maior cerimônia pública dos romanos era o triunfo. Nele, toda a
cidade se reunia. Quando, porém, o império encontrava-se no auge de
seu poder, e já não se tratava mais de conquistar incessantemente, a
própria vitória transformou-se numa instituição, retornando
periodicamente com as datas do calendário. Aos olhos do povo reunido,
lutava-se na arena — uma luta sem consequências políticas, mas não
desprovida de sentido: lutava-se para despertar e manter sempre aceso o
sentimento da vitória. Os romanos, na qualidade de espectadores, não
lutavam eles próprios, mas decidiam em massa quem havia sido o
vencedor, saudando-o como nos velhos tempos. Importante era tão
somente esse sentimento da vitória. As guerras em si, que não pareciam
mais tão necessárias, perdiam significado ao lado desses espetáculos.
Nos povos históricos desse gênero, a guerra torna-se o verdadeiro
instrumento da multiplicação. Seja porque conseguem despojos dos
quais vivem, seja porque conquistam escravos que para eles trabalham,
todas as demais formas, mais pacientes, de multiplicação são repudiadas
e consideradas desprezíveis. Desenvolve-se, então, uma espécie de
religião estatal da guerra, tendo por propósito a multiplicação veloz.
continua página 215...
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Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht
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Leia também:
Massa e Poder - Malta e Religião: O Primeiro Morto — O Triunfo
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994.
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) e O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de Marrakech, Festa sob as bombas e Sobre a morte.
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Título original Masse und Macht
"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."
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