sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Marcel Proust - O Caminho de Guermantes (2a.Parte - anulação da amabilidade)

em busca do tempo perdido

volume III
O Caminho de Guermantes

Segunda Parte

Capítulo Segundo

     Essa mesma anulação da amabilidade pela retomada das distâncias (que, de origem, era Courvoisier e destinada a mostrar que antecipações feitas no primeiro movimento não passavam de um disfarce instantâneo) se manifestava de modo bem claro, tanto nas Courvoisier como nas Guermantes, nas cartas que delas se recebiam, ao menos durante os primeiros tempos de sua convivência. O "corpo" da carta por conter frases que não se escreveriam, parece, senão a um amigo, mas é em vão que pensaríeis poder gabar-vos de ser o amigo da dama, pois carta começava por: "Senhor" e terminava por: "Creia, Senhor, nos meus melhores sentimentos." E logo, entre esse frio começo e o fim glacial que mudava o sentido de tudo o mais, poderiam suceder-se (se se tratasse de uma carta em resposta a uma outra vossa de condolências) as mais importantes pinturas do desgosto que a Guermantes tivera ao perder a irmã, da intimidade que existira entre elas, das belezas da região onde ela passava as férias, dos consolos que encontrava no encanto dos netinhos, mas tudo isso não passava de uma carta como as que se encontram nas coleções; cujo caráter íntimo, no entanto, não implicava maior intimidade entre você e a missivista do que se se tratasse de Plínio o Jovem ou da Sra. de Guermantes.
     É verdade que certas Guermantes vos escreviam, das primeiras vezes, "meu caro amigo", "meu amigo": não eram sempre as mais simples dentre elas, mas antes aquelas que, vivendo apenas no meio de reis e, por outro lado, sendo "levianas", tinham a certeza de que, no seu orgulho, que provinha delas causava prazer e, em sua corrupção, possuíam o há de não regatear nenhuma das satisfações que pudessem oferecer. Aliás como bastava que tivessem uma trisavó comum nos tempos de Luís XIII que um jovem Guermantes dissesse, falando da marquesa de Guermantes da “tia Adam", tão numerosos eram os Guermantes que, mesmo para os simples rituais, o do cumprimento de apresentação, por exemplo, era muitas variantes. Cada subgrupo um tanto refinado possuía a sua, que transmitida de pais a filhos como uma receita de vulnerário ou uma forma própria de preparar doces. Era assim que se via o punho da mão de Saint-Loup se destacar, como que a contragosto, no momento em que ouvi vosso nome, sem participação do olhar, sem acréscimo da saudação. O desgraçado plebeu que por um motivo especial o que de resto bem raramente era apresentado a alguém do subgrupo Saint-Loup, abaixava a cabeça diante daquele mínimo tão brusco de saudação, que voluntariamente revestia as aparências da inconsciência, para saber o que o Guermantes poderia ter contra ele. E ficava bastante espantado aos que esta ou aquele julgava oportuno escrever muito especialmente ao apresentador, para lhe dizer o quanto lhe agradara a pessoa apresentada e ele ou ela esperava voltar a vê-lo. Tão particularizados como os gestos mecânicos de Saint-Loup eram os saltos de dança complicados e rápidos (julgados ridículos pelo Sr. de Charlus) do marquês de Fierbois e os passos graves e medidos do príncipe de Guermantes. Mas é impossível descrever aqui a riqueza dessa coreografia dos Guermantes por causa da extensão mesma do corpo de baile.
     Para voltar à antipatia que animava os Courvoisiers contra a duquesa de Guermantes, poderiam os primeiros ter tido o consolo de lastimá-la quando solteira, pois então possuía pouco dinheiro. Infelizmente, uma espécie de emanação fuliginosa e sui generis ocultava, furtava aos olhos todo o tempo, a riqueza dos Courvoisiers que, por maior que fosse, permanecia obscura. Uma Courvoisier extremamente rica em vão desposava um grande partido; ocorria sempre que o jovem casal não possuía domicílio próprio em Paris, onde "parava" em casa dos sogros, e no resto do ano vivia na província em meio a uma sociedade sem mistura, mas também sem brilho. Enquanto Saint-Loup, que só possuía dívidas, deslumbrava Doncieres com suas parelhas de cavalos, um Courvoisier muito rico nunca ali tomava senão o trem. Inversamente, e aliás muitos anos antes, a Srta. de Guermantes (Oriane), que não possuía grande coisa, fazia mais falar de suas toaletes do que todas as Courvoisiers juntas das suas. Até mesmo o escândalo de suas frases era uma espécie de propaganda do seu modo de se vestir e de se pentear. Ela ousara dizer ao grão-duque da Rússia:

- Vejamos, Monsenhor, parece que deseja mandar assassinar Tolstoi? - num jantar ao qual não tinham convidado os Courvoisiers, aliás pouco informados sobre Tolstoi. E não o eram muito mais acerca dos autores gregos, a julgar pela duquesa de Gallardon, sogra da princesa de Gallardon (então ainda solteira), que, não tendo sido honrada uma só vez, nos últimos cinco anos, por uma visita de Oriane, respondera a alguém que lhe havia perguntado pelos motivos de sua ausência: 
- Parece que ela recita Aristóteles (ela queria dizer Aristófanes) na sociedade. Não tolero isto em minha casa! 

     Pode-se imaginar o quanto aquela "tirada" da Srta. de Guermantes sobre Tolstoi, se indignava os Courvoisiers, deixava maravilhados os Guermantes, e, desse modo, todos os que lhes estavam ligados, não só perto como de longe. A condessa viúva de Argencourt, nascida Seineport, que recebia um pouco a todo o mundo porque era uma literata, embora seu filho fosse um tremendo esnobe, contava a frase diante dos letrados dizendo: 

- Oriane de Guermantes, que é fina como o coral, maliciosa como o macaco, dotada para tudo, que faz aquarelas dignas de um grande pintor e versos como os fazem muito poucos poetas e, bem sabem, como família é o que existe de mais elevado; sua avó era Srta. de Montpensier, e ela é a décima oitava Oriane de Guermantes sem uma aliança desigual, o sangue mais puro e mais antigo da França. -

     Assim, os falsos honrados de letras, os semi-intelectuais que a Sra. de Argencourt recebia, imaginavam de Oriane de Guermantes, que jamais teriam oportunidade de conhecer pessoalmente, como algo de mais maravilhoso e mais extraordinário que a princesa Badrulbudur, não só sentiam-se prontos para morrer por ela ao saber que uma pessoa tão nobre glorificava Tolstoi acima de tudo, mas sentiam também que no seu espírito recobrava novas forças o seu próprio amor por Tolstoi e seu desejo de resistência ao czarismo. Essas ideias liberais podia ter se debilitado neles, poderiam eles ter duvidado de seu prestígio, no ousando mais confessá-las, quando subitamente da própria Srta. de Guermantes, ou seja, de uma jovem tão indiscutivelmente preciosa e autorizada, de cabelos caídos sobre a testa (o que uma Courvoisier jamais teria consentido em usar), lhes vinha um tal auxílio. Desse modo, certo número de boas ou más realidades ganham muito em receber a adesão de pessoas que têm autoridade sobre nós. Por exemplo, entre os Courvoisiers, os ritos de amabilidade na rua compunham-se de um certo cumprimento, feio e pouco amável em si mesmo, mas de que se sabia ser a maneira distinta de cumprimentar, de forma que todo mundo, eliminando o sorriso e a boa acolhida, se esforçava por imitar essa ginástica fria. Mas Guermantes, em geral, e particularmente Oriane, conhecendo melhor que ninguém esses ritos, não hesitavam, ao avistar-nos de um carro, em não fazer uma saudação gentil com a mão e, num salão, deixando os Courvoisiers fazerem suas saudações rígidas e emprestadas, esboçavam encantadoras reverências, estendendo-nos a mão como a um camarada, sorrindo com seus olhos azuis, de modo que, de repente, graças aos Guermantes entrava na substância da distinção, até aí um tanto vazia e seca, tudo naturalmente nos agradaria, e que nos empenháramos em anular, a acolhida, a expansão de uma amabilidade verdadeira, a espontaneidade. Da mesma forma, porém devido a uma reabilitação dessa vez pouco justificada é que as pessoas que mais entranhado têm o gosto da música medíocres, das melodias, por banais que sejam, que têm algo de acariciante e chegam, graças à cultura sinfônica, a mortificar esse gosto em si mesmo. Mas, uma vez chegadas a esse ponto, quando maravilhadas com razão deslumbrante colorido orquestral de Richard Strauss, vêem este mesmo acolher, com uma indulgência digna de Auber, o motivo mais vulgar que essas pessoas apreciam encontra de súbito uma justificativa em autoridade tão alta, que as extasia e elas se encantam sem escrúpulos com uma gratidão dobrada, ao ouvir Salomé, com o que lhes era proibido apreciar nos Diamantes da Coroa.
     Autêntica ou não, a apóstrofe da Srta. de Guermantes ao grão-duque, divulgada de casa em casa, era ocasião para contar com que elegância excessiva Oriane se apresentara naquele jantar. Mas, se o luxo (o que precisamente a tornava inacessível aos Courvoisiers) não nasce da riqueza, mas da prodigalidade, esta ainda dura mais tempo, enfim, se é sustentada pela primeira, que lhe permite então exibir todo o seu brilho. Ora, em vista dos princípios alardeados não só por Oriane, mas pela Sra. de Villeparisis, a saber, que a nobreza não conta, que é ridículo preocupar se com a estirpe, que a fortuna não traz felicidade, que só a inteligência, o coração e o talento têm importância, os Courvoisiers podiam esperar que, em virtude dessa educação que ela recebera da marquesa, Oriane se casaria com alguém que não pertencesse à alta sociedade, um artista, um condenado da justiça, um pobretão, um livre-pensador, que ela entraria definitivamente para a categoria que os Courvoisiers denominavam "os transviados". Tanto mais podiam esperá-lo, considerando que a Sra. de Villeparisis, atravessando naquele momento, do ponto de vista social, uma crise difícil (nenhuma das raras pessoas brilhantes que encontrei em sua casa voltara ainda ao seu convívio), ostentava um horror profundo à sociedade que a mantinha afastada.
     Mesmo quando falava de seu sobrinho, o príncipe de Guermantes, que a visitava, não eram poucas as zombarias que lhe fazia, porque ele era muito presumido com sua nobreza. Mas, no próprio instante em que se tratava de encontrar um marido para Oriane, já não tinham sido os príncipes escarnecidos pela tia e a sobrinha a ganharem a disputa; fora o misterioso "gênio da família". Tão infalivelmente, como se a Sra. de Villeparisis e Oriane nunca tivessem falado senão de títulos de renda e de genealogias, em vez de mérito literário e qualidades de coração, e como se a marquesa estivesse por alguns dias como estaria mais tarde morta e enterrada na igreja de Combray, onde cada membro da família não passava de um Guermantes, com uma privação de individualidade e de pronomes de que dava fé, sobre os grandes cortinados negros, o solitário G de púrpura, encimado pela coroa ducal; fora sobre o homem mais rico e mais bem-nascido, sobre o maior Partido do faubourg Saint-Germain, o filho mais velho do duque de Guermantes, o príncipe des Laumes, que o gênio da família fizera recair a escolha da intelectual, desrespeitosa e evangélica Sra. de Villeparisis. E, durante duas horas, no dia do casamento, a Sra. de Villeparisis teve em sua casa todas as pessoas da nobreza de quem troçava, de quem troçou até com os poucos burgueses íntimos que havia convidado e com quem o príncipe des Laumes deixou cartões antes de "cortar as amarras" logo no ano seguinte. Para cúmulo do desespero dos Courvoisiers, as máximas que fazem das iniciais e do talento as únicas superioridades sociais começavam a ser declamadas na casa da princesa des Laumes logo após o casamento. E diga se de passagem, a esse respeito o ponto de vista defendido por Saint-Loup, quando vivia com Rachel, freqüentava os amigos de Rachel, desejava se casar com Rachel, comportava por mais horror que inspirasse à família menos mentira que o das senhoritas Guermantes em geral, enaltecendo a inteligência, quase não admitindo que se pusesse em dúvida a igualdade dos homens, enquanto tudo isso levava precisamente ao mesmo resultado de que se elas houvessem professado máximas contrárias, isto é, a casar com um duque riquíssimo. Ao contrário, Saint-Loup agia de acordo com suas teorias, o que fazia dizerem que estava em mau caminho. Certamente do ponto de vista moral, Rachel de fato era pouco satisfatória. Mas não é certo que, se uma pessoa não valesse mais, porém fosse duquesa ou possuísse muitos milhões, a Sra. de Marsantes fosse desfavorável ao casamento.
     Ora, para regressar à Sra. de Laumes (logo depois duquesa da Guermantes pela morte do sogro), foi um acréscimo de pena infligido aos Courvoisiers, que as teorias da jovem princesa, ficando desse modo em sua linguagem, em nada norteassem a sua conduta; pois assim, tal filosofia (se se pode falar deste jeito) não prejudicava em coisa alguma a elegância aristocrática do salão Guermantes. Está visto que todas as pessoas que a Sra. de Guermantes não recebia imaginavam que era por não serem bastante inteligentes; e determinada americana rica, que jamais possuíra outro livro senão um pequeno exemplar antigo, jamais aberto, de poesias colocado, por ser "da época", sobre um móvel de seu gabinete, mostrava apreço que dava às qualidades do espírito pelos olhares famintos que lançava sobre a duquesa de Guermantes quando esta entrava na Ópera. Sem dúvida, a Sra. de Guermantes também se mostrava sincera quando elegia uma pessoa devido à sua inteligência. Quando dizia de uma mulher: parece que é "encantadora", ou de um homem, que era tudo o que há de mais inteligente, não julgava ter outros motivos para consentir em recebê-lo, senão esse encanto ou essa inteligência, visto que o gênio dos Guermantes não intervinha nesse último minuto: mais profundo, situado à entrada obscura da região em que os Guermantes julgavam, esse gênio vigilante impedia os Guermantes de acharem o homem inteligente ou a mulher encantadora caso estes não tivessem valor mundano, atual, ou futuro. O homem declarado sábio, mas como um dicionário, ou, pelo contrário, vulgar, com um espírito de caixeiro-viajante; a mulher bonita possuía um gênio terrível, ou falava demais. Quanto às pessoas que não tinham posição social, que horror, eram esnobes. O Sr. de Bréauté, cujo castelo era bem vizinho Guermantes, só frequentava as altezas. Porém caçoava delas e sonhava apenas viver nos museus. Assim, a Sra. de Guermantes se mostrava indignada quando chamavam o Sr. de Bréauté de esnobe. 

- Babal, esnobe! Mas o senhor está louco, meu pobre amigo; é exatamente o contrário, ele detesta as pessoas brilhantes, não há maneira de apresentá-lo a alguém. Nem mesmo na minha casa. Se o convido com algum conhecido novo, ele só vem resmungando.

     Não é que, mesmo na prática, os Guermantes não dessem muito mais valor à inteligência que os Courvoisiers. De um modo positivo, essa diferença entre os Guermantes e os Courvoisiers já dera suficientes bons frutos. Assim, a duquesa de Guermantes, de resto envolta num mistério diante do qual sonhavam de longe tantos poetas, oferecera a recepção da qual já falamos, em que o rei da Inglaterra se sentira melhor que em qualquer outra parte, pois ela tivera a idéia, que jamais ocorreria ao espírito dos Courvoisiers, e a ousadia, que esfriaria o ânimo de todos eles, de convidar, além das personalidades que acabamos de mencionar, o músico Gaston Lemaire e o dramaturgo Grandmougin. Mas era sobretudo do ponto de vista negativo que a intelectualidade se fazia sentir. Se o coeficiente necessário de inteligência e de encanto diminuía à medida que se elevava o nível social da pessoa que desejava ser convidada à casa da duquesa de Guermantes, até aproximar-se do zero quando se tratava das principais cabeças coroadas, em compensação, quanto mais se descia abaixo desse nível régio, mais o coeficiente se elevava. Por exemplo, na casa da princesa de Parma havia uma quantidade de pessoas que a Alteza recebia porque eram conhecidos de infância, ou porque estavam ligados a determinada duquesa, ou à pessoa de certo soberano, aliás por mais feias, aborrecidas ou estúpidas que fossem tais pessoas; ora, para um Courvoisier, o motivo "apreciado pela princesa de Parma", "irmã, por parte de mãe, da duquesa d'Arpajon", "passando três meses por ano com a rainha da Espanha", teria bastado para fazê-lo convidar tais pessoas, mas a Sra. de Guermantes, que recebera cortesmente o seu cumprimento nos últimos dez anos em casa da princesa de Parma, nunca as deixara transpor o seu limiar, considerando que, no tocante aos salões, dá-se o mesmo no sentido social como no sentido material da palavra, onde são bastantes alguns móveis que a gente não acha bonitos, mas conserva para encher espaço e mostrar riqueza, para torná-lo horrível. Um tal salão se parece a uma obra onde não sabemos nos abster de frases que demonstram sabedoria, brilhantismo e facilidade. Como um livro, como uma residência, a qualidade de um "salão", pensava com acerto a Sra. de Guermantes, tem por pedra angular o sacrifício.
     Muitas das amigas da princesa de Parma e com quem a duquesa - Guermantes se contentava, há muitos anos, com o mesmo cumprimento correto ou em lhes mandar cartões, sem jamais convidá-las e nem ir às festas, queixavam-se discretamente à Alteza, a qual, nos dias em que o Sr. de Guermantes ia vê-la sozinho, tocava no assunto. Mas o astuto senhor, mal marido para a duquesa no que dizia respeito às amantes, porém comparava a toda prova no referente ao bom funcionamento do seu salão (e do espírito de Oriane, que era a atração principal), respondia: - Mas será que minha mulher a conhece? Ah, então deveria mesmo tê-la convidado. Mas vou dizer a verdade a Vossa Alteza: no fundo, Oriane não aprecia a conversa das mulheres. Ela está cercada de uma corte de espíritos superiores; quanto a mim, não sou seu marido, não passo de seu primeiro lacaio. A não ser um número bem pequeno delas, que são muito espirituosas, as mulheres a aborrecem. Vejamos, Vossa Alteza, que possui tanta finura, não me dirá que a marquesa de Souvré tenha espírito. Sim, compreendo muito bem, a princesa recebe por uma questão de bondade. E depois, ela a conhece. Vossa Alteza diz que Oriane a viu; é possível, mas bem pouco, asseguro-lhe. E depois, vou dizer à princesa, isso ocorre um tanto por falta minha. Minha mulher anda muito cansada e tanto gosta de ser amável que, se a deixasse agir, seria um não acabar de visitas que ela faria. Ainda ontem à noite, estava febril, receava desgostar a duquesa de Bourbon se não fosse à sua casa. Tive de lhe mostrar os dentes e proibir que atrelassem o carro. Saiba a princesa que tenho desejo de nem sequer dizer a Oriane que Vossa Alteza me falou da Sra. de Souvré. Oriane estima tanto Vossa Alteza que logo iria convidar a Sra. de Souvré, seria uma visita a mais, isso nos obrigaria a travar relações com a irmã, cujo marido não conheço bem. Creio que não direi absolutamente nada a Oriane, se a princesa me permite. Com isto, evitaremos a ela muita fadiga e agitação. E lhe asseguro que a Sra. de Souvré não se verá privada. Ela vai a toda parte, aos locais mais brilhantes. Quanto a nós, nem sequer recebemos, fazemos jantarzinhos de nada, a Sra. de Souvré se aborreceria mortalmente. -
     A princesa de Parma, ingenuamente convencida de que o duque de Guermantes não transmitiria o seu pedido à duquesa e desolada por não ter podido obter o convite desejado pela Sra. de Souvré, sentia-se tanto mais lisonjeada por ser uma das habitués de um salão tão pouco acessível. Sem dúvida, tal satisfação não era isenta de aborrecimentos. Assim, cada vez que a princesa de Parma convidava a Sra. de Guermantes, tinha de quebrar a cabeça para não convidar ninguém que pudesse desagradar à duquesa e a impedi-la de comparecer.
     Nos dias costumeiros (depois do jantar, em que tinha sempre, desde cedo, alguns convivas, tendo conservado os hábitos antigos), o salão da princesa era aberto aos habitués e, de um modo geral, a toda a alta aristocracia francesa e estrangeira. A recepção consistia em que, ao sair da sala de jantar, a princesa sentava-se num canapé diante de uma grande mesa redonda, conversava com duas das mulheres mais importantes que tinham jantado, ou então passava os olhos por uma revista, jogava cartas (ou fingia jogar, conforme um costume da corte alemã), seja fazendo paciência, seja tomando como parceira, real ou suposta, um personagem em evidência. Cerca das nove horas, a porta do grande salão não deixava mais de se abrir de par em par, de voltar a fechar-se, de se abrir de novo, para dar passagem aos visitantes que haviam jantado às pressas (ou, se jantavam na cidade, surripiavam o café dizendo que iam voltar, contando, de fato, "entrar por uma porta e sair por outra") a fim de se submeterem aos horários da princesa. No entanto, esta, atenta ao jogo ou à conversação, fingia não ver as que chegavam e só no momento em que estavam a dois passos de distância é que ela se erguia graciosamente, sorrindo com bondade para as mulheres. Entretanto, estas faziam, diante da Alteza de pé, uma reverência que ia até a genuflexão, de modo a pôr seus lábios à altura da bela mão que pendia muito baixo e beijá-la. Mas nesse momento a princesa, como se de cada vez se surpreendesse com um protocolo, que no entanto conhecia perfeitamente, erguia a ajoelhada como que à força com uma graça e uma doçura sem iguais, e beijava-a nas faces. Graça e doçura que tinham como condição, se dirá, a humildade com que a recém-chegada dobra o joelho. Certamente; e parece que numa sociedade igualitária a polidez desapareceria não, como se crê, por defeito de educação, mas porque, em uns, desapareceria a deferência devida ao prestígio que deve ser imaginário para ser eficaz, e, sobretudo, nos outros, a amabilidade, que se prodigaliza e se refina quando se sente que possui, para quem a recebe, um valor infinito que, num mundo baseado na igualdade, cairia subitamente a zero, como tudo aquilo que só tem valor fiduciário. Porém esse desaparecimento da polidez numa sociedade nova não é seguro, e às vezes estamos dispostos a crer que as condições atuais de um estado de coisas sejam as únicas possíveis. Excelentes espíritos acreditaram que uma república não poderia ter diplomacia e alianças, e que a classe camponesa não suportaria a separação da Igreja do Estado. Afinal, a polidez em uma sociedade igualitária não seria um milagre superior ao sucesso das estradas de ferro e à utilização militar do aeroplano. Depois, se de fato a polidez desaparecesse, nada prova que isso seria uma desgraça. Enfim, uma sociedade não seria secretamente hierarquizada, à medida que fosse verdadeiramente mais democrática? É bem possível.
     O poder político dos papas aumentou muito desde que eles deixaram de possuir Estados e exércitos; as catedrais gozavam de um prestígio bem menor aos olhos de um devoto do século XVII do que de um ateu do século XX, e, se a princesa de Parma fosse soberana de um Estado, sem dúvida eu tanto teria vontade de falar a seu respeito como a respeito de um presidente da república, ou seja, não falaria nada.
     Uma vez erguida a impetrante e beijada pela princesa, esta voltava a sentar-se, retomaria o seu jogo de paciência, não sem ver se a recém chegada era pessoa de importância, conversado um instante com ela, fazendo-a sentar-se numa poltrona.
     Quando o salão se enchia demais, a dama de honor encarregada do serviço de ordem abria espaço, guiando os habitués para um imenso hall que dava para um salão repleto de quadros, de curiosidades relativas à casa dos Bourbons. Os convivas habituais da princesa então faziam de bom grado o papel de cicerones e diziam coisas interessantes, que os jovens não tinham paciência de ouvir, mais atentos em olhar as Altezas vivas (e, caso possível, fazerem-se apresentar a elas pela dama e as senhoritas de honor) do que em considerar as relíquias de soberanas mortas. Excessivamente ocupados em conhecimentos que poderiam fazer e convites que talvez arrumassem, não sabiam absolutamente nada, mesmo após muitos anos, a respeito do que havia naquele precioso museu dos arquivos da monarquia, e lembravam-se apenas, confusamente, de que era ornamentado de cactos e de palmeiras gigantes que faziam esse centro de elegâncias parecer-se ao Palmarium do Jardim da Aclimação.
     Sem dúvida para mortificar-se, a duquesa de Guermantes vinha às vezes fazer naquelas noites uma visita de digestão à princesa, que a conservava o tempo todo a seu lado, sempre gracejando com o duque. Mas quando a duquesa vinha jantar, a princesa evitava ter os seus habitués e fechava a porta ao levantar da mesa, com receio de que visitantes pouco escolhidos desagradassem à exigente duquesa. Nessas noites, se alguns fiéis não prevenidos se apresentassem à porta da Alteza, o porteiro dizia: 

- Sua Alteza Real não recebe esta noite -, e eles iam embora.

continua na página 203...
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