quarta-feira, 13 de agosto de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Mário, Livro Primeiro - Paris estudado na sua mais tênue parcela / II - Alguns dos seus sinais particulares

Victor Hugo - Os Miseráveis

Terceira Parte - Mário

Livro Primeiro — Paris estudado na sua mais tênue parcela

II - Alguns dos seus sinais particulares
     
     O gaiato de Paris é um anão gerado por uma gigante.
     Não exageremos, contudo; este querubim da enxurrada tem algumas vezes camisa, mas neste caso não tem mais de uma; possui algumas vezes sapatos, mas sem solas; tem por vezes uma habitação que esma, porque nela encontra sua mãe; mas prefere a rua, porque acha nela a liberdade. Tem seus brinquedos e malícias, que lhe são próprios, mas cujo fundo é o ódio aos burgueses; tem metamorfoses que lhe são peculiares; estar morto chama-se comer taráxacos pela raiz; há ocupações que lhe são privativas, como ir buscar carruagens, baixar os estribos das carruagens, estabelecer alpendres de um a outro lado da rua, nas ocasiões de grossas chuvas, ao que ele chama fazer pontes das artes, apregoar os discursos pronunciados pela autoridade em favor do povo francês, e esgaravatar entre as pedras das calçadas; tem também a sua moeda particular, que se compõe de todos os bocadinhos de metal que acha na rua. Esta curiosa moeda, que toma o nome de chabicas, tem curso invariável e muito bem regulado na pequena boémia das crianças.
     Tem, enfim, a fauna particular, que observa estudiosamente por todos os cantos: as lagartas, os besoiros e o «diabo», inseto preto que ameaça com a cauda, guarnecida de dois ferrões. Tem o seu monstro fabuloso com escamas no ventre e que não é um lagarto, com pústulas no lombo e não é sapo, que habita nos fornos de cal abandonados e nos poços secos, negro, felpudo, viscoso, arrastando-se ora devagar, ora rapidamente, que não grita, mas que olha, e que é tão terrível que nunca foi visto por ninguém; a este monstro chama ele «o surdo». Procurar surdos entre as pedras é um prazer do gênero terrível. Outro prazer ainda: levantar de repente uma pedra e ver bichos de conta. Cada região de Paris é célebre pelos interessantes achados que nela se podem fazer. Nas estâncias das Ursulinas dominam as formigas, no Panteon as centopeias, nos fossos do campo de Marte as rãs.
     Quanto a frases, este pequeno tem-nas propriamente suas como Talleyrand; não é menos cínico mas é mais honrado É dotado de imprevista jovialidade; aturde inopinadamente o primeiro lojista por cujo estabelecimento passa, com uma incrível risada fingida. A sua gama desce atrevidamente da alta comédia até à farsa.
     Passa um enterro. Entre os que o acompanham vai um médico.

— Ora esta! — grita um gaiato. — Desde quando é que os médicos vão levar a obra?

      Entre a multidão está outro gaiato. De repente, um homem sério de óculos e muitos berloques no relógio volta-se para ele, bramando indignado:

— Maroto! Deitaste a mão à cintura de minha mulher!
— Eu, senhor!? Apalpe-me, veja se a encontra!

continua na página 437...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Mário, Livro Primeiro - II - Alguns dos seus sinais particulares
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

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