Émile Zola
Tradução de Francisco Bittencourt
Tradução de Francisco Bittencourt
Primeira Parte
IV
Os quatro britadores acabavam de se estender uns acima dos outros por toda a altura frontal do corte, cada um deles ocupando aproximadamente quatro metros do veio, separados pelas pranchas com ganchos onde depositavam o carvão britado. Este veio era tão fino, com apenas cinquenta centímetros de espessura neste lugar, que eles tinham de ficar achatados entre o teto e o muro, arrastando-se com os joelhos e cotovelos, sem se poderem voltar, para não ferir as costas. Para despedaçar a hulha, tinham de ficar deitados de lado, pescoço torto, braços levantados e brandindo de viés a picareta de cabo curto.
Bem embaixo estava Zacharie, no meio, superpostos, Levaque e
Chaval, e, no alto, Maheu. Cada um deles cortava o leito de xisto a golpes
de picareta, para depois abrir dois entalhes verticais na camada e destacar o
bloco inteiro com uma cunha de ferro encravada na parte superior. A hulha
era gordurosa, o bloco esfarelava-se, rolava em pedaços ao longo do ventre
e das coxas. Quando esses pedaços, barrados pela prancha, tinham se
amontoado sobre eles, os britadores desapareciam, murados na fenda
estreita.
O que mais sofria era Maheu; na parte de cima a temperatura subia
a trinta e cinco graus, o ar não circulava e com o tempo a asfixia era mortal.
Para poder ver, tivera de pendurar a lâmpada num prego, próximo da
cabeça, e essa lâmpada, esquentando-lhe o crânio, fazia-lhe o sangue ferver.
O seu suplício agravava-se com a umidade; a rocha por cima dele, a poucos
centímetros do rosto, porejava água: gotas enormes, contínuas e rápidas,
caindo numa espécie de ritmo teimoso, sempre no mesmo lugar. Não
adiantava torcer o pescoço, revirar-se: elas batiam-lhe no rosto, escorriam,
fustigavam-no sem cessar. Após um quarto de hora estava encharcado —
além de coberto de suor — e fumegando num lago quente como uma
lixívia. Naquela manhã, uma goteira encarniçada contra seu olho fazia-o
praguejar. Não queria largar o trabalho, dava golpes fortes, que o
estremeciam violentamente entre as duas rochas, mais parecia um pulgão
preso entre duas folhas de um livro, sob ameaça de ser completamente
esmagado.
Não tinham trocado palavra; todos golpeavam sem descanso e não
se ouvia mais que esses golpes irregulares, velados e como que longínquos.
Os ruídos adquiriam uma sonoridade rouquenha, sem eco no ar morto. E era
como se as trevas estivessem revestidas de uma cor negra ainda
desconhecida, tornadas mais espessas pela poeira flutuante do carvão e
grávidas de gases que eram um castigo para os olhos. As mechas das
lâmpadas, sob suas proteções de tela metálica, emitiam apenas uns reflexos
avermelhados. Não se distinguia coisa alguma, a fenda subia como uma
enorme chaminé, achatada e oblíqua, onde a fuligem de dez invernos
parecia ter acumulado uma noite profunda. Formas espectrais agitavam-se
nessa fenda, clarões perdidos deixavam entrever o roliço de um quadril, um
braço nodoso, uma cara terrível, deformada como para um crime. Às vezes,
desprendendo-se, luziam pedaços de hulha, fímbrias e arestas,
repentinamente iluminados como cristais. Depois, tudo voltava ao escuro,
as picaretas davam grandes golpes surdos, não havia mais que o arquejar
dos peitos, o grunhido de mal-estar e de cansaço sob o peso do ar e da
chuva proveniente das infiltrações.
Zacharie, que estava com os braços sem vigor, devido a uma farra
que fizera na véspera, logo deixou o trabalho, pretextando que era
necessário forrar com madeira o local onde estava, e deixou-se ficar ali,
assobiando baixinho, de olhos perdidos no escuro.
Atrás dos britadores, quase três metros do veio estavam
desguarnecidos, sem que eles tivessem ainda tomado a precaução de
colocar contrafortes, descuidados em face do perigo e sem querer perder
tempo.
— Ei, aristocrata! — gritou o rapaz para Etienne. — Traze um
pouco de madeira.
Etienne, que estava aprendendo com Catherine a trabalhar com a
pá, teve de levar madeira ao veio; ainda havia uma pequena provisão de
véspera. Toda manhã, como de costume, traziam um carregamento de toros
já cortados na medida exata.
— Apressa-te, preguiçoso! — voltou à carga Zacharie, vendo o
novo operador de vagonetes subindo desajeitadamente entre o carvão,
carregando nos braços quatro toros de carvalho.
Com a picareta fez um entalhe no teto e logo um outro no muro;
enfiou neles as duas extremidades da madeira, escorando assim a rocha. Na
parte da tarde os operários do desaterro tiravam o entulho deixado no fundo
da galeria pelos britadores e aterravam as partes já exploradas do veio, onde
enfiavam os toros, deixando livres apenas as vias inferior e superior, para o
carreto.
Maheu cessou de gemer; tinha enfim cortado o seu bloco. Limpou
na manga o rosto molhado e, inquieto.
— Deixa isso — disse ele. — Depois do almoço veremos. É melhor
que voltes ao corte, senão ficaremos sem preencher nossa cota de
vagonetes.
— É que isso está baixando — respondeu o rapaz. — Olha, há
mesmo uma racha; tenho medo de que desabe.
O pai deu de ombros. Ora, desabar! Não seria a primeira vez... E
depois, a gente sempre daria um jeito de se salvar. Acabou ficando zangado
e mandando o filho de volta para a frente do corte.
A verdade é que todos estavam com preguiça. Levaque, deitado de
costas, praguejava, examinando o polegar esquerdo, que sangrava, esfolado
pela queda de um pedaço de arenito. Chaval arrancava furiosamente a
camisa, punha-se de torso nu, por causa do calor. Todos eles já estavam
negros de carvão, revestidos de uma poeira fina que o suor diluía, fazendo
escorrer, e que ia formar regatos e charcos. Maheu foi o primeiro que voltou
a golpear, desta vez mais abaixo, a cabeça ao nível da rocha. A goteira
pingava agora sobre a sua testa, e tão obstinada que ele tinha a sensação de
que ela ia fazer-lhe um buraco nos ossos do crânio.
— Eles sempre estão berrando — explicou Catherine. — O melhor
é não dar importância.
E, cheia de boa vontade, continuou com sua lição. Cada vagonete
carregado chegava lá em cima tal como partia do corte, marcado com um
sinal especial para que o recebedor pudesse lançá-lo na conta da
empreitada. Assim, devia-se ter muito cuidado ao enchê-lo, só colocando o
carvão bom, sob pena de ser recusado na recepção.
O rapaz, cujos olhos se habituavam à escuridão, olhava-a, branca
ainda, com sua tez clorótica, e não conseguia descobrir-lhe a idade; dava
lhe doze anos, de tão franzina que parecia, mas, na verdade, sabia que era
mais velha, livre como um menino, de um descaramento ingênuo, que o
constrangia um pouco; não se agradava dela, achava engraçada demais sua
cara esbranquiçada de Pierrô, comprimida nas têmporas pela coifa. O que o
espantava era a força dessa criança, uma força nervosa em que havia muito
de destreza. Ela carregava seu vagonete mais ligeira do que ele, com
pazadas regulares e rápidas; a seguir empurrava o carro até o plano
inclinado, com um único e lento impulso, sem dificuldade, passando
facilmente sob as rochas baixas. Ele se machucava, descarrilava, perdia o
rumo.
Na verdade, o caminho não era cômodo. Havia cerca de sessenta
metros da frente de corte ao plano inclinado, e a via, que os mineiros
desaterro ainda não tinham alargado, era um verdadeiro desfiladeiro, de teto
muito desigual, cheio de saliências; em certos ares o vagonete mal passava,
e o operador tinha de se achatar e empurrar ajoelhado para não quebrar a
cabeça. Além disso, os caibros já estavam vergando e rachando. Podia-se
ver que se partiam meio, em compridas fendas pálidas, semelhantes a
muletas muito frágeis; era preciso tomar cuidado para não se arranhar essas
fendas. E, sob o lento esmagamento que estourava toros de carvalho da
grossura de uma coxa, era preciso passar de rastos, com a surda inquietação
de ouvir de repente os ossos das costas se quebrando.
— Outra vez! — disse Catherine, rindo.
O vagonete de Etienne acabava de descarrilar numa passagem mais
difícil. Não conseguia fazê-lo rodar direito naqueles trilhos que se
afundavam na terra úmida; e praguejava, enfurecia-se, lutava raivosamente
com as rodas que não podia, apesar dos esforços exagerados, pôr
novamente no lugar.
— Espera um pouco — aconselhou a moça. — Se te zangas, ele
jamais andará.
Habilmente escorregou para baixo do vagonete, ficando apenas com
a parte superior do corpo para fora, e, usando os rins como alavanca,
levantou e recolocou o carro no lugar. O peso do vagonete era de setecentos
quilos. Ele, surpreso, envergonhado, balbuciou algumas desculpas.
Foi preciso que ela lhe ensinasse a abrir as pernas e a escorar os pés
contra as vigas dos dois lados da galeria para ter pontos de apoio sólidos. O
corpo devia permanecer inclinado, os braços tesos para poder empurrar,
com todos os músculos, os ombros e os quadris. Numa das viagens ele
seguiu-a, viu-a conduzindo com o dorso tenso e as mãos tão embaixo que
mais parecia estar trotando de quatro pés, como um desses animais anões
que trabalham nos circos. Ela suava, arquejava, estalava as juntas, mas sem
uma queixa, com a indiferença do hábito, como se a miséria comum fosse
uma fatalidade: a de viverem assim, curvados. Mas ele não conseguia fazer
o mesmo, os sapatos incomodavam, e, ao ter de caminhar assim, com a
cabeça baixa, seu corpo parecia que ia partir-se em pedaços. Depois de
alguns minutos, essa posição era um verdadeiro suplício, uma angústia
intolerável e tão dolorosa que ele se punha de joelhos, por instantes, para
descansar as costas e respirar.
Depois, no plano inclinado, era uma nova trabalheira. Ela lhe
ensinou como dar rapidez ao vagonete. Nos altos e baixos desse plano que
dava vazão a todos os veios, de uma embocadura de galeria a outra, havia
gente a postos: em cima o guarda-freio embaixo o recebedor. Esses
malandros, entre doze e quinze anos gritavam um ao outro, todo o tempo,
palavras abomináveis, e, para os prevenir, era preciso berrar palavrões ainda
mais violentos.
continua na página 38...
____________________
Primeira Parte - (IV.a) Os quatro britadores
____________________
O pai de Zola tinha 44 anos quando conheceu Émilie-Aurélie Aubert, numa de suas viagens a Paris. Apesar da grande diferença de idade — a moça não chegara aos vinte anos —, acabaram casando — se. O resultado dessa união foi Émile Zola, nascido em 12 de abril de 1840, durante uma estada do casal em Paris. O menino mal conheceu o pai: em 1847, François faleceu.
As coisas ficaram difíceis. Sozinha e com grandes esforços, a mãe procurou equilibrar o orçamento doméstico e fazer que o filho estudasse. De certa forma, ela teve sucesso: Zola foi aluno do Colégio Notre-Dame e do Colégio de Aix. Quando o rapaz atingiu a maioridade, partiu com Émilie para Paris e, graças a um amigo da família, conseguiu um emprego na Alfândega.
Em dezembro de 1859, concluía sua primeira obra em prosa, Les Grisettes de Provence (As Costureirinhas de Provença). Continuava, porém, desconhecido e insatisfeito. Ele mesmo costumava dizer: "Ser sempre desconhecido é chegar a duvidar de si; nada engrandece os pensamentos de um autor como o sucesso".
Assim, no início de 1866, deixou o emprego para dedicar-se à literatura.
Abandonou o romantismo de seus anos de adolescência e passou a admirar outros autores: Balzac (1799-1850), Stendhal (1783-1842), Flaubert (1821-1880). Essa guinada para o realismo devia-se principalmente às suas últimas leituras: das teorias evolucionistas de Darwin (1809-1882) até o Tratado da Hereditariedade Natural do Dr. Lucas, passando pela Filosofia da Arte de Taine (1328-1893). No entanto, o que parece tê-lo feito decidir-se pelo realismo foi a Introdução ao Estudo da Medicina Experimental (1865), de Claude Bernard (1813-1878). Essa obra foi importante para o rumo que Zola imprimiria a toda a sua obra: o rigor científico no romance, cujo objetivo, diria ele, é o mesmo das experiências de laboratório, isto é, o conhecimento da realidade. O que Claude Bernard havia feito com o corpo humano Zola faria com as paixões e os meios sociais.
Para fazer Germinal, Zola não se satisfez com a simples busca de documentos. Foi passar alguns meses numa região mineira. Morou em cortiços, bebeu cerveja e genebra nos botequins e desceu ao fundo dos poços para observar de perto o trabalho dos operários. Aos poucos foi se familiarizando com o meio onde viviam aqueles homens. Descobriu quais as principais doenças causadas pela mineração. Sentiu o problema dos baixos salários, os sacrifícios dos mineiros, a gota que cai com uma regularidade incrível sobre seus rostos, a dificuldade de empurrar um vagonete por um corredor estreito, o drama do salto na escuridão que eles têm de dar para poderem sobreviver. Numa passagem admirável, descreve a emoção de uma greve de operários. Mostra seu ódio animal. Um ódio que destrói tudo à sua passagem. Uma violência viva nos corpos que querem libertar-se, mesmo à custa da total destruição. Mostra também o amor feito sobre o carvão, os pequenos dramas das dívidas, as brigas no cortiço, a promiscuidade de pais e filhos em casas muito pequenas. A obra obteve enorme repercussão.
Em 29 de setembro de 1901, em Paris, Émile Zola morre asfixiado pelo gás do aquecedor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário