segunda-feira, 11 de agosto de 2025

Émile Zola - Germinal: Primeira Parte - (IV.a) Os quatro britadores

Germinal

Émile Zola

Tradução de Francisco Bittencourt

Primeira Parte

IV

     Os quatro britadores acabavam de se estender uns acima dos outros por toda a altura frontal do corte, cada um deles ocupando aproximadamente quatro metros do veio, separados pelas pranchas com ganchos onde depositavam o carvão britado. Este veio era tão fino, com apenas cinquenta centímetros de espessura neste lugar, que eles tinham de ficar achatados entre o teto e o muro, arrastando-se com os joelhos e cotovelos, sem se poderem voltar, para não ferir as costas. Para despedaçar a hulha, tinham de ficar deitados de lado, pescoço torto, braços levantados e brandindo de viés a picareta de cabo curto.
     Bem embaixo estava Zacharie, no meio, superpostos, Levaque e Chaval, e, no alto, Maheu. Cada um deles cortava o leito de xisto a golpes de picareta, para depois abrir dois entalhes verticais na camada e destacar o bloco inteiro com uma cunha de ferro encravada na parte superior. A hulha era gordurosa, o bloco esfarelava-se, rolava em pedaços ao longo do ventre e das coxas. Quando esses pedaços, barrados pela prancha, tinham se amontoado sobre eles, os britadores desapareciam, murados na fenda estreita.
     O que mais sofria era Maheu; na parte de cima a temperatura subia a trinta e cinco graus, o ar não circulava e com o tempo a asfixia era mortal. Para poder ver, tivera de pendurar a lâmpada num prego, próximo da cabeça, e essa lâmpada, esquentando-lhe o crânio, fazia-lhe o sangue ferver. O seu suplício agravava-se com a umidade; a rocha por cima dele, a poucos centímetros do rosto, porejava água: gotas enormes, contínuas e rápidas, caindo numa espécie de ritmo teimoso, sempre no mesmo lugar. Não adiantava torcer o pescoço, revirar-se: elas batiam-lhe no rosto, escorriam, fustigavam-no sem cessar. Após um quarto de hora estava encharcado — além de coberto de suor — e fumegando num lago quente como uma lixívia. Naquela manhã, uma goteira encarniçada contra seu olho fazia-o praguejar. Não queria largar o trabalho, dava golpes fortes, que o estremeciam violentamente entre as duas rochas, mais parecia um pulgão preso entre duas folhas de um livro, sob ameaça de ser completamente esmagado.
     Não tinham trocado palavra; todos golpeavam sem descanso e não se ouvia mais que esses golpes irregulares, velados e como que longínquos. Os ruídos adquiriam uma sonoridade rouquenha, sem eco no ar morto. E era como se as trevas estivessem revestidas de uma cor negra ainda desconhecida, tornadas mais espessas pela poeira flutuante do carvão e grávidas de gases que eram um castigo para os olhos. As mechas das lâmpadas, sob suas proteções de tela metálica, emitiam apenas uns reflexos avermelhados. Não se distinguia coisa alguma, a fenda subia como uma enorme chaminé, achatada e oblíqua, onde a fuligem de dez invernos parecia ter acumulado uma noite profunda. Formas espectrais agitavam-se nessa fenda, clarões perdidos deixavam entrever o roliço de um quadril, um braço nodoso, uma cara terrível, deformada como para um crime. Às vezes, desprendendo-se, luziam pedaços de hulha, fímbrias e arestas, repentinamente iluminados como cristais. Depois, tudo voltava ao escuro, as picaretas davam grandes golpes surdos, não havia mais que o arquejar dos peitos, o grunhido de mal-estar e de cansaço sob o peso do ar e da chuva proveniente das infiltrações.
     Zacharie, que estava com os braços sem vigor, devido a uma farra que fizera na véspera, logo deixou o trabalho, pretextando que era necessário forrar com madeira o local onde estava, e deixou-se ficar ali, assobiando baixinho, de olhos perdidos no escuro.
     Atrás dos britadores, quase três metros do veio estavam desguarnecidos, sem que eles tivessem ainda tomado a precaução de colocar contrafortes, descuidados em face do perigo e sem querer perder tempo.

— Ei, aristocrata! — gritou o rapaz para Etienne. — Traze um pouco de madeira.

     Etienne, que estava aprendendo com Catherine a trabalhar com a pá, teve de levar madeira ao veio; ainda havia uma pequena provisão de véspera. Toda manhã, como de costume, traziam um carregamento de toros já cortados na medida exata.

— Apressa-te, preguiçoso! — voltou à carga Zacharie, vendo o novo operador de vagonetes subindo desajeitadamente entre o carvão, carregando nos braços quatro toros de carvalho.

     Com a picareta fez um entalhe no teto e logo um outro no muro; enfiou neles as duas extremidades da madeira, escorando assim a rocha. Na parte da tarde os operários do desaterro tiravam o entulho deixado no fundo da galeria pelos britadores e aterravam as partes já exploradas do veio, onde enfiavam os toros, deixando livres apenas as vias inferior e superior, para o carreto.
     Maheu cessou de gemer; tinha enfim cortado o seu bloco. Limpou na manga o rosto molhado e, inquieto.
 
 
— Deixa isso — disse ele. — Depois do almoço veremos. É melhor que voltes ao corte, senão ficaremos sem preencher nossa cota de vagonetes. 
— É que isso está baixando — respondeu o rapaz. — Olha, há mesmo uma racha; tenho medo de que desabe.

     O pai deu de ombros. Ora, desabar! Não seria a primeira vez... E depois, a gente sempre daria um jeito de se salvar. Acabou ficando zangado e mandando o filho de volta para a frente do corte.
     A verdade é que todos estavam com preguiça. Levaque, deitado de costas, praguejava, examinando o polegar esquerdo, que sangrava, esfolado pela queda de um pedaço de arenito. Chaval arrancava furiosamente a camisa, punha-se de torso nu, por causa do calor. Todos eles já estavam negros de carvão, revestidos de uma poeira fina que o suor diluía, fazendo escorrer, e que ia formar regatos e charcos. Maheu foi o primeiro que voltou a golpear, desta vez mais abaixo, a cabeça ao nível da rocha. A goteira pingava agora sobre a sua testa, e tão obstinada que ele tinha a sensação de que ela ia fazer-lhe um buraco nos ossos do crânio.

— Eles sempre estão berrando — explicou Catherine. — O melhor é não dar importância.

     E, cheia de boa vontade, continuou com sua lição. Cada vagonete carregado chegava lá em cima tal como partia do corte, marcado com um sinal especial para que o recebedor pudesse lançá-lo na conta da empreitada. Assim, devia-se ter muito cuidado ao enchê-lo, só colocando o carvão bom, sob pena de ser recusado na recepção.
     O rapaz, cujos olhos se habituavam à escuridão, olhava-a, branca ainda, com sua tez clorótica, e não conseguia descobrir-lhe a idade; dava lhe doze anos, de tão franzina que parecia, mas, na verdade, sabia que era mais velha, livre como um menino, de um descaramento ingênuo, que o constrangia um pouco; não se agradava dela, achava engraçada demais sua cara esbranquiçada de Pierrô, comprimida nas têmporas pela coifa. O que o espantava era a força dessa criança, uma força nervosa em que havia muito de destreza. Ela carregava seu vagonete mais ligeira do que ele, com pazadas regulares e rápidas; a seguir empurrava o carro até o plano inclinado, com um único e lento impulso, sem dificuldade, passando facilmente sob as rochas baixas. Ele se machucava, descarrilava, perdia o rumo.
      Na verdade, o caminho não era cômodo. Havia cerca de sessenta metros da frente de corte ao plano inclinado, e a via, que os mineiros desaterro ainda não tinham alargado, era um verdadeiro desfiladeiro, de teto muito desigual, cheio de saliências; em certos ares o vagonete mal passava, e o operador tinha de se achatar e empurrar ajoelhado para não quebrar a cabeça. Além disso, os caibros já estavam vergando e rachando. Podia-se ver que se partiam meio, em compridas fendas pálidas, semelhantes a muletas muito frágeis; era preciso tomar cuidado para não se arranhar essas fendas. E, sob o lento esmagamento que estourava toros de carvalho da grossura de uma coxa, era preciso passar de rastos, com a surda inquietação de ouvir de repente os ossos das costas se quebrando.

 — Outra vez! — disse Catherine, rindo.

      O vagonete de Etienne acabava de descarrilar numa passagem mais difícil. Não conseguia fazê-lo rodar direito naqueles trilhos que se afundavam na terra úmida; e praguejava, enfurecia-se, lutava raivosamente com as rodas que não podia, apesar dos esforços exagerados, pôr novamente no lugar.

 — Espera um pouco — aconselhou a moça. — Se te zangas, ele jamais andará.

     Habilmente escorregou para baixo do vagonete, ficando apenas com a parte superior do corpo para fora, e, usando os rins como alavanca, levantou e recolocou o carro no lugar. O peso do vagonete era de setecentos quilos. Ele, surpreso, envergonhado, balbuciou algumas desculpas.
     Foi preciso que ela lhe ensinasse a abrir as pernas e a escorar os pés contra as vigas dos dois lados da galeria para ter pontos de apoio sólidos. O corpo devia permanecer inclinado, os braços tesos para poder empurrar, com todos os músculos, os ombros e os quadris. Numa das viagens ele seguiu-a, viu-a conduzindo com o dorso tenso e as mãos tão embaixo que mais parecia estar trotando de quatro pés, como um desses animais anões que trabalham nos circos. Ela suava, arquejava, estalava as juntas, mas sem uma queixa, com a indiferença do hábito, como se a miséria comum fosse uma fatalidade: a de viverem assim, curvados. Mas ele não conseguia fazer o mesmo, os sapatos incomodavam, e, ao ter de caminhar assim, com a cabeça baixa, seu corpo parecia que ia partir-se em pedaços. Depois de alguns minutos, essa posição era um verdadeiro suplício, uma angústia intolerável e tão dolorosa que ele se punha de joelhos, por instantes, para descansar as costas e respirar.
     Depois, no plano inclinado, era uma nova trabalheira. Ela lhe ensinou como dar rapidez ao vagonete. Nos altos e baixos desse plano que dava vazão a todos os veios, de uma embocadura de galeria a outra, havia gente a postos: em cima o guarda-freio embaixo o recebedor. Esses malandros, entre doze e quinze anos gritavam um ao outro, todo o tempo, palavras abomináveis, e, para os prevenir, era preciso berrar palavrões ainda mais violentos.

continua na página 38...
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Primeira Parte - (IV.a) Os quatro britadores
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O pai de Zola tinha 44 anos quando conheceu Émilie-Aurélie Aubert, numa de suas viagens a Paris. Apesar da grande diferença de idade — a moça não chegara aos vinte anos —, acabaram casando — se. O resultado dessa união foi Émile Zola, nascido em 12 de abril de 1840, durante uma estada do casal em Paris. O menino mal conheceu o pai: em 1847, François faleceu. 
As coisas ficaram difíceis. Sozinha e com grandes esforços, a mãe procurou equilibrar o orçamento doméstico e fazer que o filho estudasse. De certa forma, ela teve sucesso: Zola foi aluno do Colégio Notre-Dame e do Colégio de Aix. Quando o rapaz atingiu a maioridade, partiu com Émilie para Paris e, graças a um amigo da família, conseguiu um emprego na Alfândega.
Em dezembro de 1859, concluía sua primeira obra em prosa, Les Grisettes de Provence (As Costureirinhas de Provença). Continuava, porém, desconhecido e insatisfeito. Ele mesmo costumava dizer: "Ser sempre desconhecido é chegar a duvidar de si; nada engrandece os pensamentos de um autor como o sucesso".
Assim, no início de 1866, deixou o emprego para dedicar-se à literatura. 
Abandonou o romantismo de seus anos de adolescência e passou a admirar outros autores: Balzac (1799-1850), Stendhal (1783-1842), Flaubert (1821-1880). Essa guinada para o realismo devia-se principalmente às suas últimas leituras: das teorias evolucionistas de Darwin (1809-1882) até o Tratado da Hereditariedade Natural do Dr. Lucas, passando pela Filosofia da Arte de Taine (1328-1893). No entanto, o que parece tê-lo feito decidir-se pelo realismo foi a Introdução ao Estudo da Medicina Experimental (1865), de Claude Bernard (1813-1878). Essa obra foi importante para o rumo que Zola imprimiria a toda a sua obra: o rigor científico no romance, cujo objetivo, diria ele, é o mesmo das experiências de laboratório, isto é, o conhecimento da realidade. O que Claude Bernard havia feito com o corpo humano Zola faria com as paixões e os meios sociais.
Para fazer Germinal, Zola não se satisfez com a simples busca de documentos. Foi passar alguns meses numa região mineira. Morou em cortiços, bebeu cerveja e genebra nos botequins e desceu ao fundo dos poços para observar de perto o trabalho dos operários. Aos poucos foi se familiarizando com o meio onde viviam aqueles homens. Descobriu quais as principais doenças causadas pela mineração. Sentiu o problema dos baixos salários, os sacrifícios dos mineiros, a gota que cai com uma regularidade incrível sobre seus rostos, a dificuldade de empurrar um vagonete por um corredor estreito, o drama do salto na escuridão que eles têm de dar para poderem sobreviver. Numa passagem admirável, descreve a emoção de uma greve de operários. Mostra seu ódio animal. Um ódio que destrói tudo à sua passagem. Uma violência viva nos corpos que querem libertar-se, mesmo à custa da total destruição. Mostra também o amor feito sobre o carvão, os pequenos dramas das dívidas, as brigas no cortiço, a promiscuidade de pais e filhos em casas muito pequenas. A obra obteve enorme repercussão.
Em 29 de setembro de 1901, em Paris, Émile Zola morre asfixiado pelo gás do aquecedor.

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