em busca do tempo perdido
volume IIIO Caminho de Guermantes
Segunda Parte
Segunda Parte
Depois, também saudei o príncipe de Foix e, para infelicidade de minhas falanges, que ficaram doloridas, deixei-as serem estreitadas no torno que era o aperto de mãos à alemã, acompanhado de um sorriso irônico ou bonachão, do príncipe de Faffenheim, o amigo do Sr. de Norpois, e a quem, com a mania dos apelidos própria àquele ambiente, chamavam tão universalmente de Príncipe Von, que ele mesmo assinava "Príncipe Von" ou, quando escrevia aos íntimos, "Von". A rigor, essa abreviatura ainda se entendia, por causa da extensão de um nome composto. Porém, menos se poderiam perceber os motivos que faziam substituir Elisabeth ora por Lili ora por Bebeth, como em outra sociedade pululavam os Kikim. Entretanto, explica-se que homens bastante frívolos e ociosos tenham adotado "Quiou", para não perderem tempo dizendo "Montesquiou". Mas percebe-se menos o que ganhavam apelidando um de seus primos Dinand, em vez de Ferdinand. Aliás, não seria preciso acreditar que, para dar apelidos, os Guermantes invariavelmente procedessem à repetição de uma sílaba. Assim, duas irmãs, a condessa de Montpeyroux e a viscondessa de Vélude, ambas de extrema corpulência, nunca se ouviam chamar, sem de modo algum se importarem e sem que ninguém pensasse sequer em sorrir, de tão antigo era o hábito, senão por "Pequena" e "Pequenina". A Sra. de Guermantes, que adorava a Sra. de Montpeyroux, caso esta ficasse gravemente enferma, perguntaria em lágrimas à sua irmã: "É certo que a Pequena está muito mal?"
A Sra. de I'Éclin, que usava cabelos em bandós que lhe cobriam totalmente as orelhas, era
chamada sempre de "ventre faminto"." Às vezes contentavam-se em acrescentar um “a” ao nome
ou sobrenome do marido para designar a esposa. Tendo o homem mais avaro, mais sórdido, mais
desumano do faubourg o prenome de Raphael, a sua encantadora, a sua flor, saindo também do
rochedo, sempre se assinava Raphaela; mas estas são simples amostras de regras inumeráveis,
algumas das quais sempre poderemos explicar quando se apresentar a ocasião.
A seguir, pedi ao duque a apresentação ao príncipe de Agrigento.
- Como, o senhor não conhece este excelente Gri-gri? - exclamou o Sr. de Guermantes, e
disse o meu nome ao Sr. d'Agrigento. O nome deste último, tantas vezes citado por Françoise, me
aparecera sempre como uma vidraça transparente, sob a qual eu via, batidos pelos raios oblíquos
de sol dourado, às margens do mar violáceo, os cubos rosados de uma cidade antiga da qual eu
não duvidava que o príncipe de passagem em Paris, por um breve milagre não fosse ele próprio,
tão luminosamente siciliano e gloriosamente patinado, o soberano efetivo. Ai de mim, o besouro
vulgar que me apresentaram, e que fez umas piruetas para me cumprimentar com uma
desenvoltura pesadona que acreditava ser elegante, era tão independente de seu nome como de
uma obra de arte que tivesse possuído, sem trazer sobre si nenhum reflexo dela, sem tê-la jamais
talvez sequer olhado. O príncipe de Agrigento era tão inteiramente destituído do que quer que
fosse de principesco e que pudesse fazer pensar em Agrigento, que era, de se supor que seu
nome, completamente distinto dele, ligado por coisa nenhuma à sua pessoa, tivesse tido o poder
de atrair a si tudo o que pudesse haver de vaga poesia naquele homem como em qualquer outro,
e de encerra-Ia, após essa operação, nas sílabas encantadas. Se a operação havia sofrido, em
todo caso fora bem feita, pois não restava um átomo, sequer encanto a extrair desse parente dos
Guermantes. De modo que ele era, ao mesmo tempo, o único homem do mundo a ser príncipe de
Agrigento talvez o único homem do mundo que o fosse menos. Além disso, muito fazia em sê-lo,
mas como um banqueiro se sente feliz por possuir numerosas ações de uma mina, sem se
preocupar se essa mina responde pelos belos nomes de mina Ivanhoé e mina Primerose, ou se
se chama apenas mira Premier. Entretanto, ao passo que terminavam as apresentações, tão
demoradas de se referir, mas que, principiadas desde a minha entrada no salão tinham durado
apenas alguns minutos, e que a Sra. de Guermantes, num tom quase suplicante, me dizia:
- Estou certa de que Basin o deixou cansado levando-o assim de uma para outra;
queremos que conheça nossos amigos, porém, acima de tudo, desejamos que não se canse para
que venha visitar-nos com frequência.
O duque, com um movimento bastante canhestro e timorato, fez sinal para que servissem
o jantar; o que gostaria de ter feito uma hora antes, gasta por mim na contemplação dos Elstirs.
É preciso acrescentar que faltava um dos convidados, o Sr. Grouchy, cuja esposa, nascida
Guermantes, viera sozinha, pois o marido devia chegar diretamente da caça em que passara o dia
inteiro. Este Sr. Grouchy, descendente daquele Grouchy do Primeiro império de quem se fala
falsamente que sua ausência no começo de Waterloo fora a causa principal da derrota de
Napoleão, era de excelente família, no entanto insuficiente aos olhos de certos obstinados pela
nobreza. Assim, o príncipe Guermantes, que anos depois deveria ser menos difícil para consigo
mesmo tinha o costume de dizer às sobrinhas:
- Que desgraça para essa pobre de Guermantes (a viscondessa de Guermantes, mãe da
Sra. de Grouchy), que jamais pôde casar as filhas! - Mas meu tio, a mais velha se casou com o Sr.
de Grouchy. Eu não chamo aquilo de marido! Enfim, dizem que o tio François pediu a mão da
caçula; assim, não ficarão todas solteiras.
Logo que se deu a ordem de servir à mesa, num vasto estalido giratório, múltiplo e
simultâneo, as portas do salão de refeições se abriram de par em par; um mordomo, que parecia
um mestre de cerimônias, inclinou-se diante da princesa de Parma e anunciou a notícia: "Madame
está servida", num tom que se assemelhava àquele em que teria dito: "Madame agoniza", mas
que não lançou qualquer tristeza na assembleia, pois foi com um ar contente e como no verão, em
Robinson, que os casais avançaram, um após o outro, na direção da sala de jantar, separando-se
ao alcançarem seu posto, onde os lacaios lhes acomodavam as cadeiras às costas; a última, Sra.
de Guermantes, caminhou na minha direção para que a conduzisse à mesa e sem que eu
experimentasse a menor sombra da timidez que seria de recear, pois, como caçadora a quem
uma grande habilidade muscular tornou fácil a graça, sem dúvida, vendo que eu me colocara do
lado errado, girou a meu redor com tanta precisão que encontrei seu braço sobre o meu e,
naturalmente, enquadrei-me num ritmo de movimentos ajustados e nobres. Obedeci-lhes com
tanto mais facilidade quanto os Guermantes não davam a isso mais importância que, à ciência,
um verdadeiro sábio, em cuja casa nos sentimos menos intimidados que na de um ignorante;
abriram-se outras portas, por onde entrou a sopa fumegante, como se o jantar ocorresse num
teatro de marionetes habilmente montado e onde a chegada tardia do jovem convidado pusesse,
a um sinal do dono, todas as engrenagens em ação.
Tímido, e não majestosamente soberano, fora aquele sinal do duque, ao qual
correspondera o desencadeamento daquela vasta, engenhosa, obediente e opulenta relojoaria
mecânica e humana. A indecisão do gesto não prejudicou, a meu ver, o efeito do espetáculo que
lhe era subordinado. Pois eu sentia que o que o fizera hesitante e embaraçado fora o temor de me
deixar ver que só esperavam por mim para jantar e que me haviam esperado por muito tempo,
assim como a Sra. de Guermantes temia que me cansassem depois de eu ter olhado tantos
quadros e não me deixassem tomar fôlego, apresentando-me a jato contínuo. De modo que era a
falta de grandeza no gesto que revelava a grandeza verdadeira, assim como aquela indiferença
do duque no que diz respeito ao seu próprio luxo e às suas atenções para com um convidado,
insignificante em si mesmo, mas a quem desejava honrar. Não é que o Sr. de Guermantes não
fosse, sob certos aspectos, bastante comum e não tivesse mesmo ridículo de homem
excessivamente rico, e o orgulho de um arrivista que ele não era. Porém, assim como funcionário
ou um padre veem seu talento medíocre multiplicado ao infinito (como uma onda por todo o mar
que se comprime atrás dela) por aquelas forças em que se apoiam, a Administração francesa e a
Igreja católica; assim o Sr. de Guermantes era levado por essa outra força, a mais genuína
polidez aristocrática. Tal polidez exclui muitas pessoas. A Sra. de Guermantes não teria recebido
a Sra. de Cambremer ou o Sr. de Forcheville. Mas, no momento em que alguém, como era o meu
caso, parecesse capaz de agregado ao meio Guermantes, essa polidez descerrava tesouros de
simplicidade hospitaleira mais magníficos ainda, se possível, do que esses velhos salões, esses
móveis maravilhosos que aí se conservavam. Quando queria aprazer a alguém, o Sr. de
Guermantes tinha assim para fazer dele nesse dia o personagem principal, uma arte que sabia
aproveitar as circunstâncias e o local. Sem dúvida, em Guermantes, suas "distinções" e suas
"graças" tomariam outra forma. Mandaria atrelar o carro para levar-me a passear sozinho com ele
antes do jantar. Tais como eram, a gente se sentia sensibilizado por suas maneiras, como nos
sentimos, ao ler Memórias do tempo, pelas mãos de Luís XIV, quando responde bondosamente,
com ar risonho e uma meia reverência, a algum solicitante. Nos dois casos é preciso ainda
compreender que semelhante polidez não vai além do que a palavra significa. Luís XIV (a que, no
entanto, os fanáticos da nobreza de seu tempo censuram sua pouca preocupação com a etiqueta,
embora, diz Saint-Sim ele tenha sido apenas um rei muito pequeno para o seu posto em
comparação com Filipe de Valois, Carlos V, etc.) manda redigir as mais minuciosas instruções
para que os príncipes da casa real e os embaixadores saibam a que soberanos devem abrir
passagem. Em certos casos, diante da impossibilidade de chegar a um acordo, prefere-se convir
que o filho de Luiz XIV, Monsenhor, só receberá determinado soberano estrangeiro fora, ao livre,
para que não se diga que, entrando no castelo, um precedeu o outro e o Eleitor paladino, ao
receber o duque de Chevreuse para jantar, finge de doente para não ceder a mão, e janta com
ele, mas deitado, o que contou a dificuldade. O Senhor Duque, evitando as ocasiões de ser
preposto serviço de Monsieur, faz com que este, a conselho do rei, seu irmão, que aliás gosta
muito dele, arranje um pretexto para mandar subir o primo a seus aposentos e obrigá-lo a
apresentar-lhe a camisa. Mas, quando se trata de um sentimento profundo, de coisas do coração,
o dever, tão inflexível se cuidar de polidez, muda completamente. Algumas horas após a moléstia
desse irmão, uma das pessoas que lhe foram mais queridas, sua Monsieur, segundo a expressão
do duque de Montfort, está "ainda muquente", Luís XIV canta árias de óperas, espanta-se de que
a duquesa de Bourgogne, que mal consegue dissimular sua dor, tenha um ar tão melancólico, e,
querendo que a alegria recomece logo, para que os cortesãos se decidam a voltar ao jogo, ordena
ao duque de Bourgogne que inicie uma partida de brelan. Ora, não só nas ações mundanas e
comedidas, mas na linguagem mais involuntária, nas preocupações, no emprego do tempo do Sr.
de Guermantes, encontrava-se o mesmo contraste: os Guermantes não sentiam mais desgostos
que os outros mortais, pode-se até dizer que sua verdadeira sensibilidade era menor; em
compensação, seu nome era visto todos os dias nas notas sociais do Galois por causa do
prodigioso número de enterros em que julgariam culpável não se inscrever. Como o viajante
encontra, quase idênticas, as casas cobertas de terra, os terraços que Xenofonte e São Paulo
poderiam ter conhecido, do mesmo modo nas maneiras do Sr. de Guermantes, homem
comovente de amabilidade e revoltante de dureza, escravo das menores obrigações e indiferente
aos mais sagrados pactos, eu encontrava ainda intacto, após decorridos mais de dois séculos,
esse desvio próprio à vida da corte sob Luís XIV e que transporta os escrúpulos de consciência do
domínio das afeições e da moralidade para as questões de pura forma.
A outra razão da amabilidade que me demonstrou a princesa de Parma era mais particular.
É que estava previamente convencida de que tudo o que via na casa da duquesa de Guermantes,
coisas e pessoas, era de qualidade superior a tudo o que possuía em sua casa. Na casa de todas
as outras pessoas, ela agia, na verdade, como se assim fosse; frente ao prato mais simples, às
flores mais comuns, ela não se contentava em se extasiar, pedia licença para já no dia seguinte
mandar buscar a receita ou examinar a espécie pelo seu cozinheiro ou jardineiro-chefe,
personagens de gordos salários, que tinham seu carro particular e sobretudo pretensões
profissionais, e que se sentiam muito humilhados por virem variedade de cravos que não era nem
pela metade mais linda, nem tão matizada, e nem tão grande quanto às dimensões das flores,
como as que eles tinham obtido há muito tempo na casa da princesa. Mas, se, da parte desta, na
casa de todos, esse espanto diante das menores coisas era fictício e destinado a mostrar que ela
não extraía da superioridade de sua classe e de suas riquezas um orgulho proibido pelos seus
antigos preceptores, dissimulado por sua mãe e insuportável aos olhos de Deus, em
compensação era com toda a sinceridade que olhava o salão da duquesa de Guermantes como
um lugar privilegiado onde só podia passar de surpresas a delícias. Aliás, de um modo geral, mas
que seria bem insuficiente para explicar esse estado de espírito, os Guermantes eram muito
diversos do resto da sociedade aristocrática; eram mais preciosos e mais raros. À primeira vista,
me haviam dado uma impressão contrária; achara-os vulgares, parecidos com todos os homens e
todas as mulheres, mas porque, previamente, eu vira neles, como em Balbec, em Florença, em
Parma, somente os nomes. É claro que, neste salão, todas ao mulheres que imaginara como
estatuetas de Saxe afinal se assemelhavam mais à grande maioria das mulheres. Porém, assim
como em Balbec ou Florença, os Guermantes, depois de terem desapontado a imaginação
popular que se pareciam mais a seus semelhantes do que a seu nome, podiam seguir, embora
em grau menor, oferecer à inteligência certas particularidades que os distinguiam. Até o seu físico,
a cor de um rosado especial de sua carnação, que às vezes ia até o violáceo, um certo louro
quase luminoso dos cabelos delicados, mesmo entre os homens, condensados em tufos dourados
e macios, metade de líquens paritários e metade de pelagfelina (fulgor luminoso a que
correspondia um certo brilho de inteligência pois, se diziam a pele e os cabelos dos Guermantes,
dizia-se também o espírito dos Guermantes, como o espírito dos Mortemart uma certa qualidade
social mais refinada desde antes de Luís XIV e tanto mais reconhecida por todos quanto eles
mesmos a promulgavam), tudo isso fazia com que, na própria matéria, por mais preciosa que
fosse, da sociedade aristocrática onde os encontravam envolvidos aqui e ali, os Guermantes
permanecessem reconhecíveis, fáceis de discernir e de seguir, como os fios que entremeiam com
seu louro o jaspe e o ônix, ou, melhor ainda, como a ondulação dessa cabeleira de claridade cujas
crinas despenteadas correm como raios flexíveis nos flancos da ágata musgosa.
Os Guermantes, pelo menos os dignos desse nome, não eram apenas de uma qualidade
de carnação, de cabelo, de olhar transparente refinado, mas possuíam uma maneira de andar,
uma postura, uma forma de saudar, de olhar antes de apertar a mão, pelas quais eram tão
diferentes em tudo isso de qualquer homem mundano como este de um camponês em mangas de
camisa. E apesar de sua amabilidade, as pessoas diziam: "Não têm eles verdadeiramente direito,
conquanto o dissimulem, quando nos veem andar, saudar, sair'' todas essas coisas que,
cumpridas por eles se tornariam tão graciosas como o voo das andorinhas ou a inclinação da
rosa, de pensar: ''Eles são de uma raça diferente da nossa, e nós somos príncipes da Terra?"
Mais tarde, compreendi que os Guermantes me julgavam de fato pertencente a outra raça, mas
que excitava a sua inveja, que eu possuía méritos que ignorava e que eles professavam
considerar únicos importantes. Ainda mais tarde, senti que essa profissão de fé só era meio
sincera e que, neles, o desdém ou o espanto coexistiam com a admiração e a inveja.
A flexibilidade física essencial aos Guermantes era dupla; graças a uma, sempre em ação,
a todo momento, e se, por exemplo, um Guermantes macho ia saudar uma dama, obtinha uma
silhueta de si mesmo feita do equilíbrio instável de movimentos assimétricos e nervosamente
compensados, uma perna arrastando um pouco, seja de propósito, seja porque, tendo sido muitas
vezes fraturada na caça, imprimia ao torso, para alcançar a outra perna, um desvio a que a subida
de uma espádua fazia contrapeso, enquanto o monóculo se instalava no olho, levantando uma
sobrancelha no mesmo instante em que o topete dos cabelos se abaixava para a saudação; a
outra flexibilidade, como a forma da onda, do vento ou da estria guardada para sempre pela
concha ou pelo barco, estilizara-se, por assim dizer, em uma espécie de mobilidade fixa,
encurvando o nariz agudo que, sob os olhos azuis à flor da pele, acima dos lábios muito delgados,
de onde saía, nas mulheres, uma voz rouca, lembrava a origem fabulosa, apontada no século XVI
pela boa vontade dos genealogistas parasitas e helenizantes dessa raça, antiga sem dúvida, mas
não até o ponto que pretendia quando lhes davam por origem a fecundação mitológica de uma
ninfa por um pássaro divino.
Os Guermantes não eram menos especiais do ponto de vista intelectual que do ponto de
vista físico. Salvo o príncipe Gilbert (o marido, de ideias antiquadas, de "Marfe Gilbert" e que fazia
sua mulher sentar-se à esquerda quando passeavam de carro, porque ela era de sangue menos
bom, embora real, do que ele; mas ele era uma exceção e, ausente, era objeto de zombarias na
família e de anedotas sempre novas), os Guermantes, mesmo vivendo na pura nata da
aristocracia, afetavam não fazer caso algum da nobreza. As teorias da duquesa de Guermantes,
que, a falar a verdade, à força de ser Guermantes, se tornava em certa medida alguma coisa de
diverso e mais agradável, de tal modo punham a inteligência acima de tudo e eram em política tão
socialistas que a gente se indagava onde, no seu palácio, se escondia o gênio encarregado de
assegurar a manutenção da vida aristocrática, e que, sempre invisível, mas evidentemente oculto
ora na antecâmara, ora no salão, ora no gabinete de toalete, lembrava aos criados dessa mulher
que não acreditava em títulos que a tratassem por Senhora Duquesa, a essa pessoa que só
gostava da leitura e não tinha qualquer respeito humano, que fosse jantar em casa de sua
cunhada quando dessem as oito horas e que se decotasse para isso. O mesmo gênio da família
apresentava à Sra. de Guermantes a situação das duquesas, pelo menos das primeiras dentre
elas e, como ela, multimilionárias, o sacrifício a aborrecidos chás, a jantares na cidade, reuniões,
de horas em que ela teria podido ler coisas interessantes, como necessidades desagradáveis
análogas à chuva, e que a Sra. de Guermantes aceitava exercendo sobre elas a sua verve
frondosa, mas sem ir ao ponto de procurar os motivos de sua aceitação. Este curioso efeito do
acaso, que o mordomo da Sra. de Guermantes sempre dissesse "Senhora Duquesa" a essa
mulher que só acreditava na inteligência, contudo não parecia chocá-la. Nunca pensara em pedir
lhe que dissesse "senhora" simplesmente. Levando a boa vontade até seus extremos limites,
poder-se-ia acreditar que, distraída, ela ouvisse apenas "Senhora" e que o apêndice verbal que
lhe era acrescentado passava despercebido; unicamente, se ela se fingia surda, não era muda.
Ora, de cada vez que precisava dar um recado ao marido, dizia ao mordomo: "Lembre ao Senhor
Duque..."
Aliás, o gênio da família tinha outras ocupações; por exemplo, fazer falar de moral.
Certamente, havia Guermantes mais especialmente inteligentes, Guermantes mais especialmente
moralistas, e de hábito não eram os mesmos. Mas os primeiros mesmo um Guermantes que
cometera falsificações e trapaceava no jogo, e era o mais delicioso de todos, aberto à todas as
ideias novas e justas tratavam ainda melhor da moral que os segundos, e da mesma forma que a
Sra. de Villeparisis, nos momentos em que o gênio da família se exprimia pela boca da velha
dama. Em momentos idênticos, via-se de repente os Guermantes assumirem um tema quase tão
antiquado, tão bonachão e, devido ao seu maior encanto, mais comovente, quanto o da
marquesa, para dizer de uma criada:
- Sente-se que no fundo ela é boa, não é vulgar; deve ser filha de gente direita, certamente
sempre se conservou no bom caminho. -
Nesses momentos, o gênio da família se transformava em entonação. Mas às vezes era
também um jeito, expressão fisionômica, a mesma na duquesa e no seu avô, o marechal, uma
espécie de inapreensível convulsão (semelhante à da Serpentes gênio cartaginês da família
Barca), e que várias vezes me fizera bater o coração, em seus passeios matinais, quando, antes
de ter reconhecido a duquesa de Guermantes, sentia-me encarado por ela do fundo de uma
pequena loja de laticínios. Esse gênio interviera numa circunstância que estava longe de ser
indiferente não só aos Guermantes, mas aos Courvoisiers; a parte adversa da família e, embora
de tão bom sangue como os Guermantes, o exato oposto deles (era até por sua avó Courvoisier
que os Guermantes explicavam o preconceito do príncipe de Guermantes de sempre falar em
nascimento e nobreza, como se tratasse da única coisa a ter importância).
Não só os Courvoisiers não reservavam à inteligência, o mesmo nível que os Guermantes,
mas dela não tinham a mesma idéia. Para um Guermantes (mesmo que imbecil), ser inteligente
era ter a língua ferina, ser capaz de dizer coisas maldosas, ganhar a vez; era também poder
discutir com a gente tanto sobre pintura como sobre arquitetura, sobre música, falar inglês. Os
Courvoisiers faziam da inteligência uma idéia menos favorável e, por pouco que alguém não
pertencesse ao seu mundo, ser inteligente não estava longe de significar "ter provavelmente
assassinado pai e mãe". Para eles, a inteligência era a espécie de "pé-de-cabra" graças à qual as
pessoas que não se conheciam nem de Eva nem de Adão forçavam as portas dos salões mais
respeitados, e, na casa dos Courvoisiers, sabia-se que sempre acabava saindo caro receber
semelhante "gentinha". Às mais insignificantes asserções das pessoas inteligentes que não eram
da alta sociedade, os Courvoisiers opunham uma desconfiança sistemática. Tendo alguém dito
certa vez:
"Mas Swann é mais jovem que Palamede. Pelo menos ele o diz, e, se o diz, esteja certo de
que tem interesse nisso" - respondera a Sra. de Gallardon. Além disso, como se comentasse a
respeito de duas estrangeiras muito elegantes que os Guermantes recebiam, que haviam feito
passar em primeiro lugar uma delas por ser a mais velha: "Mas será mesmo a mais velha?"
indagara a Sra. de Gallardon, não, positivamente, como se esse tipo de pessoas não tivesse
idade, mas como se, verossimilmente desprovidas de estado civil e religioso, de seguras
tradições, elas fossem mais ou menos jovens como as gatinhas de uma mesma ninhada, entre as
quais somente um veterinário poderá decidir-se. Num sentido, melhor que os Guermantes, os
Courvoisiers mantinham aliás a integridade da nobreza, graças, a um tempo, à estreiteza de seu
espírito e à maldade de seu coração. Assim como os Guermantes (para quem, acima das famílias
reais e de algumas outras como os Lignes, os La Tremoïlles, etc., todo o resto se confundia num
vago rebotalho) eram insolentes para com as pessoas de raça antiga que moravam nos arredores
de Guermantes, precisamente porque não davam atenção a esses méritos de segunda categoria
de que se ocupavam grandemente os Courvoisiers, a falta desses méritos pouco lhes importava.
Certas mulheres que não desfrutavam de posição muito elevada em sua província, mas,
esplendidamente casadas, ricas, bonitas, queridas pelas duquesas, eram para Paris, onde se está
pouco a par de "pai e mãe", um excelente e elegante artigo de importação. E podia ocorrer,
conquanto raramente, que tais mulheres fossem, através da princesa de Parma ou em virtude de
seu encanto pessoal, recebidas em casa de certas Guermantes. Mas a seu respeito jamais se
desarmava a indignação dos Courvoisiers. Encontrar entre as cinco e as seis, na casa de sua
prima, pessoas com cujos pais os seus pais não gostavam de conviver no Perche tornava-se para
eles um motivo de raiva crescente e um tema de inesgotáveis invectivas. Assim que, por exemplo,
a encantadora condessa G*** entrava na casa dos Guermantes, o rosto da Sra. de Villebon
tomava precisamente a expressão que assumiria caso tivesse de recitar o verso:
“E se restar apenas um, este serei eu” verso que aliás desconhecia. Esta Courvoisier,
quase todas as segundas, comera bombas de creme a poucos passos da condessa G***, mas
sem resultado. E a Sra. de Villebon confessava em segredo que não podia conceber como sua
prima Guermantes recebia uma mulher que nem sequer pertencia à segunda sociedade em
Châteaudun.
- De fato, não vale a pena que minha prima seja tão difícil em sua relação; isso já é zombar
da sociedade - concluía a Sra. de Villebon com diversa expressão no rosto, esta sorridente e
maliciosa no desespero, e à qual um jogo de adivinhação antes aplicaria outro verso, que a
condessa naturalmente também não conhecia:
“Graças aos deuses! Minha desgraça é superior à minha esperança”
De resto, antecipemo-nos aos acontecimentos dizendo que a "perseverança", rima da
"esperança" no verso seguinte, da Sra. de Villebon em esnobar a Sra. G*** não foi de todo inútil.
Aos olhos da Sra. G***, ela dotou a Sra. de Villebon de um prestígio tal, aliás puramente
imaginário, que, quando a filha da Sra. G***, que era a mais bela e mais rica dos bailes da época,
chegou à idade de se casar, espantaram-se ao vê-la recusar todos os duques. É que sua mãe,
lembrando-se das afrontas semanais que suportara na rua de Grenelle em recordação de
Châteaudun, só desejava um marido para a filha: um rapaz da família Villebon.
Em apenas um ponto os Guermantes e os Courvoisiers se encontravam: era a arte, aliás
infinitamente variada, de marcar as distâncias. As maneiras dos Guermantes não eram
inteiramente uniformes em todos. Mas, por exemplo, todos os Guermantes, dentre os que o eram
de verdade, quando vos apresentavam a eles, procediam com uma espécie de cerimônia, mais ou
menos como se o fato de vos estenderem a mão fosse tão considerável como se se cuidasse de
vos sagrar cavaleiro. No momento em que um Guermantes, mesmo que tivesse apenas vinte
anos, mas já caminhando nas pegadas dos mais velhos, ouvia vosso nome pronunciado pelo
apresentador, deixava cair sobre vós, como se de modo algum se decidisse a cumprimentar-vos,
um olhar em geral azul, sempre da frieza de uma lâmina, que parecia pronto a mergulhar nos mais
fundos recessos do vosso coração. Aliás, era o que os Guermantes julgavam estar fazendo na
verdade, visto que todos se achavam uns psicólogos de primeira ordem. Com esse exame,
pensavam aumentar ainda mais a amabilidade da saudação que se seguiria e que não vos seria
dada a não ser com pleno conhecimento de causa. Tudo isto se passava a uma distância de vós
que, por pequena que fosse, se se tratasse de combate de esgrima, parecia enorme para um
aperto de mão e gelava, neste como no primeiro caso, de modo que, quando o Guermantes,
depois de uma rápida invasão aos últimos esconderijos de vossa alma e de vossa honorabilidade,
vos julgara digno de vos encontrardes com ele daí em diante, sua mão, dirigida para vós na
extremidade de um braço estendido em todo o seu comprimento, dava a impressão de vos
apresentar um florete para um combate singular, e essa mão estava enfim tão longe do
Guermantes nesse momento que, quando ele então inclinava a cabeça, era difícil distinguir se
estava saudando a vós ou à sua própria mão. Certos Guermantes, não tendo o senso da medida,
ou sendo incapazes de não se repetirem sem cessar, exageravam ao recomeçar tal cerimônia
cada vez que vos encontrassem. Já que não mais precisavam proceder ao prévio exame
psicológico para o qual o "gênio da família" lhes delegara seus poderes e de cujos resultados
deviam se lembrar, a insistência do olhar perfurante que precedia o aperto de mão só podia
explicar-se pelo automatismo que esse olhar adquirira, ou então por algum dom de fascínio que os
Guermantes julgavam possuir.
Os Courvoisiers, cujo físico era diferente, tinham tentado em vão assimilar tal saudação
perscrutadora e se restringiram à rigidez altiva ou à rápida negligência.
Em compensação, era aos Courvoisiers que algumas raríssimas Guermantes pareciam ter
tomado de empréstimo a saudação das damas. Com efeito, no momento em que alguém vos
apresentasse a uma dessas Guermantes, ela vos fazia um grande cumprimento no qual
aproximava de vós, mais ou menos num ângulo de quarenta e cinco graus, a cabeça e o busto,
ficando imóvel a parte inferior do corpo (muito alta até a cintura, que servia de eixo). Porém, mal
desse modo projetara em vossa direção a parte superior de sua pessoa, logo a lançava para trás
além da vertical, com uma brusca retirada aproximadamente igual de comprimento. A inversão
consecutiva neutralizava o que vos parece ter sido concedido, o terreno que julgastes haver
ganho nem mesmo ficava adquirido, como em matéria de duelo, e as posições primitivas eram
guardadas.
continua na página 198...
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Leia também:
Volume 1
Volume 2
Volume 3
O Caminho de Guermantes (2a.Parte - também saudei o príncipe de Foix)
Volume 7
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