sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Marcel Proust - O Caminho de Guermantes (2a.Parte - Uma vez sozinho com os quadros)

em busca do tempo perdido

volume III
O Caminho de Guermantes

Segunda Parte

Capítulo Segundo

     Uma vez sozinho com os quadros de Elstir, esqueci completamente a hora do jantar; de novo, como em Balbec, tinha diante de mim os fragmentos daquele mundo de cores desconhecidas que era apenas a projeção da maneira particular de ver desse grande pintor e que suas palavras não traduziam de modo algum. As partes das paredes cobertas de pinturas suas, todas homogêneas umas às outras, eram como imagens luminosas de uma lanterna mágica, a qual, no caso presente, seria a cabeça do artista e cuja estranheza não se poderia suspeitar se apenas se conhecesse o homem, ou seja, enquanto somente se visse a lanterna cobrindo a lâmpada, antes mesmo que algum vidro colorido lhe tivesse sido posto. Entre esses quadros, alguns dos que pareceriam extremamente ridículos às pessoas da sociedade eram os que me interessavam mais que os outros, naquilo que recriavam essas ilusões de ótica que nos provam não identificaríamos os objetos se não fizéssemos intervir o raciocínio. Quantas vezes, de carro, não descobrimos uma longa rua clara que principia a poucos metros de nós, quando à nossa frente está apenas um trecho de muro fortemente iluminado que nos dá a miragem da profundidade! Portanto, não é lógico, não por artifício de simbolismo, mas por um retorno sincero à própria raiz da impressão, representar uma coisa por essa outra que, no fulgor de uma primeira ilusão, tomamos por ela? As superfícies e os volumes são na realidade independentes dos nomes de objetos que a nossa memória lhes impõe quando os reconhecemos. Elstir procurava extrair o que sabia daquilo que acabava de sentir; seu esforço muitas vezes se dera no sentido de dissolver esse agregado de raciocínios a que denominamos visão. As pessoas que detestavam esses "horrores" espantavam-se de que Elstir admirasse Chardin, Perronneau, tantos pintores que elas, pessoas da sociedade, apreciavam. Não percebiam que Elstir refizera por conta própria, diante do real (com a indicação particular de seu gosto por certas pesquisas), o mesmo esforço de um Chardin ou de um Perronneau, e que, consequentemente, quando deixava de trabalhar para si mesmo, admirava neles as tentativas do mesmo gênero, espécies de fragmentos antecipados de obras suas. Mas as pessoas da sociedade não acrescentavam pelo pensamento, à obra de Elstir, essa perspectiva do Tempo que lhes permitiria gostar ou, pelo menos, olhar sem constrangimento a pintura de Chardin. Entretanto, os mais velhos poderiam dizer consigo que no decurso de sua vida tinham visto, à medida que os anos os afastavam dela, a distância intransponível entre o que julgavam uma obra-prima de Ingres e o que julgavam dever permanecer para sempre um horror (por exemplo, a Olímpia de Manet) diminuir até que as duas telas parecessem gêmeas. Mas lição alguma se aproveita porque não sabemos descer ao geral e imaginamos sempre estar em face de uma experiência que não tem precedentes no passado.
     Fiquei comovido ao reencontrar em dois quadros (estes mais realistas e de um estilo anterior) um mesmo senhor, uma vez de fraque no seu salão, outra vez de cartola e casaca numa festa popular à beira d'água, onde evidentemente não tinha o que fazer, e que provava que para Elstir ele não era apenas um modelo habitual, mas um amigo, talvez um protetor, que ele gostava, como outrora Carpaccio com certos senhores notáveis e perfeitamente parecidos de Veneza, de representar em seus quadros, do mesmo modo que Beethoven sentia prazer em inscrever, no alto de uma obra preferida, o nome querido do arquiduque Rodolfo. Essa festa à beira d'água apresentava algo de fascinante. Os vestidos das mulheres, as velas dos barcos, os inumeráveis reflexos de umas e outras achavam-se próximos àquele quadrado de pintura que Elstir recortara de uma tarde maravilhosa. O que deslumbrava no vestido de uma mulher, que deixara por um instante de dançar devido ao calor e à sufocação, era também cambiante, e da mesma maneira, no pano de uma vela parada, na água do pequeno porto, no portão de madeira, nas folhagens e no céu. Assim, num dos quadros que eu vira em Balbec, o hospital, tão belo sob o céu de lápis lazúli como a própria catedral, parecia, mais ousado que o Elstir teórico, que o Elstir homem de gosto e apaixonado pela Idade Média, declamar: "Não existe gótico, não existe obra-prima, o hospital sem estilo vale o glorioso portal"; da mesma forma, eu ouvia: "A dama um tanto vulgar, que um diletante a passeio evitaria contemplar, e excluiria do quadro poético que a natureza compõe diante dele, essa dama também é bela; seu vestido recebe a mesma luz que a vela do barco, e não há coisas mais ou menos preciosas, o vestido comum e a vela em si mesma bonita são dois espelhos do mesmo reflexo. Todo o valor está nos olhos do pintor."
     Ora, este soubera, imortalmente, parar o movimento das horas naquele instante luminoso em que a dama sentira calor e cessara de dançar, em que a árvore estava cingida de um, círculo de sombra, em que as velas pareciam deslizar sobre um verniz dourado. Mas, justamente porque o instante pesava sobre nós com tanta força essa tela tão fixa dava a impressão mais fugaz, sentia-se que a dama ia logo virar-se, os barcos desaparecerem, a sombra mudar de lugar, a noite cair; que o prazer acaba, que a vida passa, e que os instantes, mostrados ao mesmo tempo por tantas luzes que lhes são vizinhas, já não se encontram.
     Eu reconhecia ainda um aspecto, é verdade que bem diverso, do que é o Instante, em algumas das aquarelas de assuntos mitológicos, datando dos começos de Elstir e que também ornavam aquele salão. As pessoas mundanas "avançadas" chegavam "até" essa maneira, porém não iam adiante. Decerto não se tratava do que Elstir fizera de melhor, mas a sinceridade com que o assunto era enfocado já lhe retirava a frieza. Assim é que, por exemplo, as Musas estavam representadas como o seriam criaturas pertencentes a uma espécie fóssil mas que não teria sido raro, nos tempos mitológicos, ver passar à tardinha, em grupos de duas ou três, ao longo de alguma trilha montanhosa. Por vezes um poeta, de uma raça que também tivesse uma individualidade particular para um zoólogo (caracterizada por uma certa sexualidade), passeava com uma Musa, como, na natureza, criaturas de espécies diversas, porém amigas, e que andam em companhia. Numa dessas aquarelas, via-se um poeta, cansado por uma longa caminhada na montanha, que um centauro, que encontrou, penalizado com sua fadiga, toma sobre seu lombo e o transporta. Em outras mais, a imensa paisagem (em que a cena mítica e os heróis fabulosos ocupam um lugar minúsculo e estão como que perdidos) é retratada, dos píncaros ao mar, com uma exatidão que indica, mais que a hora, até o minuto, devido ao grau preciso do declínio do sol e à fidelidade fugitiva das sombras. Desse modo o artista apresenta, subtaneizando-a, uma espécie de realidade histórica vivida ao símbolo da fábula, pinta-a e a relata no pretérito perfeito.
     Enquanto eu contemplava as pinturas de Elstir, haviam soado os toques de campainha dos convidados que chegavam, ininterruptos, toques que me haviam docemente embalado.
     Mas o silêncio que lhes sucedeu, e que já durava há muito tempo, acabou - é verdade que menos rapidamente - por me despertar do devaneio, como o silêncio que sucede à música de Lindoro arranca Bártolo de seu sono. Receei que se esquecessem de mim, que estivessem à mesa, e fui depressa para o salão. À porta do gabinete dos Elstirs encontrei um criado que esperava, velho ou empoado, não sei, com ar de um ministro espanhol, mas tributando-me o mesmo respeito que teria deposto aos pés de um rei. Pelo seu aspecto, senti que teria me esperado ainda uma hora, e pensei apavorado no atraso que devia ter causado ao jantar, ainda mais que prometera estar às onze horas na casa do Sr. de Charlus.
     O ministro espanhol (não sem que eu tornasse a encontrar no caminho o lacaio perseguido pelo porteiro, que, radiante de felicidade quando lhe pedi notícias da noiva, disse que justamente o dia seguinte era o da folga de ambos e que poderia passar o dia inteiro com ela, e enalteceu a sós a bondade da duquesa) conduziu-me ao salão, onde eu temia encontrar o Sr. de Guermantes de mau humor. Ao contrário, ele me acolheu com uma alegria evidentemente em parte fictícia e ditada pela polidez, mas por outro lado sincera, inspirada pelo seu estômago, em que tamanho atraso havia atiçado a fome, pela consciência de uma impaciência igual em todos os convidados, os quais enchiam completamente o salão. De fato, soube mais tarde que tinham me esperado cerca de três quartos de hora.
     O duque de Guermantes, sem dúvida, pensou que prolongar o suplício geral por dois minutos não o agravaria, e que a polidez, tendo-o feito adiar por tanto tempo o momento de se pôr à mesa, tal polidez seria mais completa se, não mandando servir imediatamente, conseguisse me convencer de que eu não estava atrasado e que não tinham esperado por mim. Assim, perguntou me, como se tivéssemos ainda uma hora até o jantar, o que achara eu dos Elstirs. Mas, ao mesmo tempo, e sem deixar perceber os espasmos de seu estômago, para não perder mais um segundo, de combinação com a duquesa, procedia às apresentações. Só então percebi que se produzira a meu redor, que até aquele dia exceto o estágio no salão da Sra. Swann fora habituado em casa da minha mãe, em Combray e em Paris, às maneiras protetoras ora na defensiva, de burgueses rabugentos que me tratavam como criança, uma mudança de cenário comparável à que introduz Parsifal de súbito no meio das donzelas-flores. As que me rodeavam, inteiramente decidi todas (sua carnadura aparecia dos dois lados de um ramo sinuoso de formosa ou sob as largas pétalas de uma rosa), só me cumprimentavam deslizando sobre mim longos olhares acariciantes como se apenas a timidez as impedisse de beijar-me. Nem por isso muitas deixavam de ser bastante honestas, do ponto de vista dos costumes; muitas, não todas, pois as mais virtuosas não sentiam pelas levianas aquela repulsa que minha mãe experimentaria. Os caprichos do comportamento, negados por santas amigas apesar da evidência, pareciam, no mundo dos Guermantes, ter muito mais importância que as relações que se tinham sabido conservar. Fingia se ignorar que o corpo de uma dona de casa era manuseado por quem quisesse, contanto que seu "salão" permanecesse intacto. Como o duque ligava muito pouco aos convidados (com quem e de quem há muito já não tinha o que aprender), porém muito a mim, cujo tipo de superioridade, sendo desconhecido, causava-lhe até certo ponto o mesmo tipo de respeito que os ministros burgueses aos grão-senhores da corte de Luís XIV, ele evidentemente considerava que o fato de não conhecer seus convidados não tinha qualquer importância, se não para eles, ao menos para mim, e, enquanto eu me preocupava, por sua causa, com o efeito que teria sobre eles, o que se preocupava apenas com o que eles me causariam.
     Primeiramente, aliás, ocorreu uma dupla confusão. De fato, no momento mesmo em que eu entrara no salão, o Sr. de Guermantes, sem sequer me dar tempo de cumprimentar a duquesa, me conduzira, como para fazer uma surpresa, àquela pessoa a quem parecia dizer:

"Eis o seu amigo; veja como eu o trago seguro pelo cangote", a uma dama de muito baixa estatura. Ora, bem antes que, impelido pelo duque, eu chegasse diante dela, essa dama não cessara de me dirigir, com seus grandes e doces olhos negros, os mil sorrisos de compreensão que endereçamos a uma velha conhecida que talvez não nos reconheça. Como era justamente o meu caso e eu não conseguisse me lembrar de quem se tratava, desviei a cabeça, sempre andando, de modo a não ter de responder até que a apresentação me livrasse do embaraço. Enquanto isso, a dama continuou a manter em equilíbrio instável o seu sorriso destinado a mim. Dava a impressão de querer se livrar rapidamente dele e que eu finalmente dissesse:
"Ah, minha senhora, como vai ficar contente mamãe por nos termos encontrado!" 

     Sentia-me tão impaciente por saber-lhe o nome quanto ela de ver que por fim a saudava com pleno conhecimento de causa, e que seu sorriso, indefinidamente prolongado como um sol sustenido, podia enfim cessar. Mas o Sr. de Guermantes deu-se tão mal, pelo menos na minha opinião, que me pareceu ter nomeado somente a mim, de modo que eu ignorava sempre quem era a pseudo desconhecida, a qual não teve presença de espírito para identificar-se, de tão claros lhe parecessem os motivos de nossa intimidade, obscuros para mim. Com efeito, tão logo me juntei a ela, não me estendeu a mão, mas segurou familiarmente a minha e me falou no mesmo tom de como se eu estivesse tão a par que ela das boas recordações a que se reportava mentalmente. Disse-me o quanto Albert, que compreendi ser seu filho, iria lamentar não ter podido vir. Procurei entre meus antigos colegas aquele que se chamasse Albert, só encontrei Bloch, mas aquela senhora não podia ser Madame Bloch, que já falecera há muitos anos. Esforcei-me em vão para adivinhar esse passado comum a nós dois, ao qual ela se referia em pensamento. Porém não o percebia melhor, através do azeviche translúcido das grandes e doces pupilas que só deixavam passar o sorriso, do que se distingue uma paisagem situada por detrás de um vidro negro, embora inflamado pelo sol. Ela me perguntou se meu pai não se cansava demais, se eu não queria ir um dia ao teatro com Albert, se estava menos doente, e como as minhas respostas, titubeando eu na escuridão mental em que me achava, só se tornaram distintas para dizer que não me sentia bem naquela noite, ela própria tratou de empurrar uma cadeira para mim, com mil atenções a que jamais se acostumaram os outros amigos de meus pais. Enfim, achado o enigma me foi dado pelo duque: 

- Ela o acha encantador - murmurou-me ao ouvido, o qual se sentiu ferido como se essas palavras não lhe fossem estranhas. Eram as que a Sra. de Villeparisis nos dissera, à minha avó e a mim, quando tínhamos conhecido a princesa de Luxemburgo. Então compreendi tudo: a dama presente nada tinha em comum com a Sra. de Luxemburgo, mas pela linguagem de quem me servia descobri a espécie de gente. Era uma Alteza. De maneira alguma conhecia a mim e à minha família, porém, saída da mais nobre raça e possuindo a maior fortuna do mundo (pois, filha do príncipe de Parma, desposara um primo igualmente principesco), desejava, em sua gratidão ao Criador, testemunhar ao próximo, por mais pobre ou humilde que fosse, que não o desprezava. Para falar a verdade, os sorrisos poderiam ter-me feito adivinhá-lo, eu vira a princesa, de Luxemburgo comprar pãezinhos de centeio na praia para dá-los à minha avó como se esta fosse um animal do Jardim da Aclimação. Mas ela era apenas a segunda princesa de sangue real a quem me apresentavam, e era desculpável de minha parte não ter distinguido os traços gerais da amabilidade dos grandes. Aliás, não tinham eles mesmos se dado ao trabalho de me advertir que não levasse muito em conta essa amabilidade, visto que e duquesa de Guermantes, que me fizera tantos acenos na ópera, parecerá estar furiosa por tê-la saudado na rua, como as pessoas que, tendo alguma vez dado um louís a alguém, pensam que com isso estão quites para sempre. Quanto ao Sr. de Charlus, seus altos e baixos eram ainda mais contrastantes. Enfim, como veremos, conheci altezas e majestades de outra espécie, rainhas que fazem de rainha, e falam não segundo os hábitos de suas congêneres, e sim como as rainhas das peças de Sardou.  
     
     Se o Sr. de Guermantes tivera tanta pressa em apresentar-me é que é intolerável o fato de haver, numa reunião, alguém desconhecido de uma Alteza real, coisa que não pode se prolongar por um segundo. Fora essa mesma pressa que Saint-Loup tivera em se fazer apresentado à minha avó. Ademais, por um resto herdado da vida das cortes que se denomina polidez mundana e que não é superficial, mas em que, por uma ação de fora para dentro, é a superfície que se torna essencial e profunda, o duque em duquesa de Guermantes consideravam como um dever mais essencial o da caridade, da castidade, da piedade e da justiça, tantas vezes negligenciados pelo menos por um deles, o dever mais inflexível de não falar à Princesa de Parma senão na terceira pessoa.
     Na falta de ainda não ter ido a Parma (o que desejava desde longínquas férias de Páscoa), conhecer a princesa, que eu sabia possuir o mais belo palácio daquela cidade única, onde aliás tudo devia ser homogêneo e isolado como estava do resto do mundo, entre os muros polidos, na esfera, sufocante como uma tarde de verão sem vento na praça de uma cidadezinha italiana, do seu nome compacto e por demais doce, isso deveria ter substituído de súbito aquilo que eu procurava imaginar pelo que existia de verdade em Parma, numa espécie de chegada fragmentária e sem que me movesse; era, na álgebra da viagem à cidade de Giorgione, como uma primeira equação dessa incógnita. Mas se eu, há muitos anos como um perfumista a um bloco cerrado de matéria graxa -, fizera esse nome de princesa de Parma absorver o perfume de milhares de violetas, em compensação, desde que vi a princesa, que até então estaria convencido tratar-se pelo menos da Sanseverina, uma segunda operação principiou, operação que, a falar a verdade, só terminou alguns meses mais tarde, e que consistiu, com o auxílio de novas compressões químicas, em expelir todo óleo essencial de violetas e todo perfume stendhaliano do nome da princesa e a incorporar nele, em seu lugar, a imagem de uma mulherzinha morena, ocupada em obras de caridade, de uma gentileza de tal modo humilde que se compreendia logo de que orgulho altaneiro essa gentileza se originava. Aliás semelhante, com poucas diferenças, às outras grandes damas, ela era tampouco stendhaliana como, por exemplo, em Paris, no bairro da Europa, a rua de Parma, que se assemelha muito menos ao nome de Parma que todas as ruas que a circundam e faz pensar menos na Chartreuse onde Fabrice morre do que na sala dos passos perdidos da estação de Saint-Lazare.
     Sua gentileza decorria de duas causas. Uma, de caráter geral, era a educação que essa filha de soberanos havia recebido. Sua mãe (não só aliada a todas as famílias reais da Europa, mas ainda em contraste com a casa ducal de Parma mais rica que qualquer princesa reinante) lhe inculcara, desde a mais tenra idade, os preceitos orgulhosamente humildes de um esnobismo evangélico; e agora, cada traço do rosto da filha, a curva de seus ombros, os movimentos de seus braços pareciam repetir:

"Lembra-te que, se Deus te fez nascer sobre os degraus de um trono, não deves te aproveitar da tua situação para desprezar aqueles a quem a divina Providência quis (que ela seja louvada!) que tu fosses superior pelo nascimento e pela fortuna. Pelo contrário, sê bondosa para com os pequenos. Teus avós eram príncipes de Cleves e de Juliers desde 647; Deus, na Sua bondade, quis que possuísses quase todas as ações do canal de Suez e três vezes tantas da Royal Dutch quantas possui Edmond de Rothschild; tua filiação em linha direta está estabelecida pelos genealogistas desde o ano 63 da era cristã; tens como cunhadas duas imperatrizes. Assim, ao falares, não tenhas nunca o ar de te lembrares de tão grandes privilégios, não que sejam precisos (pois nada se pode mudar à antiguidade da raça e sempre se terá necessidade de petróleo), mas é inútil espalhar que és mais bem-nascida que ninguém e que teus investimentos são de primeira ordem, visto que todos sabem disso. Sê prestativa aos infelizes. Fornece, a todos aqueles que a bondade celestial te fez a graça de pôr abaixo de ti, o que puderes doar sem prejuízo de tua posição, ou seja, recursos em dinheiro, até mesmo cuidados de enfermeira; mas nunca, bem entendido, convites às tuas recepções, o que não lhes faria bem algum, mas, diminuindo o teu prestígio, tiraria à tua ação benfazeja toda a sua eficácia."

     Assim, mesmo nos momentos em que não podia fazer o bem, a princesa procurava mostrar, ou melhor, fazer crer por todos os sinais exteriores da linguagem muda, que não se julgava superior às pessoas do meio em que se encontrava. Tinha com cada um essa encantadora polidez que têm para com os inferiores as pessoas bem-educadas, e a todo momento; para se mostrar útil, movia sua cadeira para me dar mais espaço, segurava minhas luvas, oferecia-me todos esses serviços, indignos das orgulhosas burguesas, e que de boa vontade prestam as soberanas ou, instintivamente e por hábito profissional, os antigos criados. O outro motivo de gentileza que me mostrou a princesa de Parma era mais particular, porém de modo algum ditado por uma misteriosa simpatia por mim. Mas essa nova razão, não tive oportunidade de aprofundá-la naquele momento. De fato, o duque, parecendo ter pressa de acabar as apresentações, arrastara-me para outra das donzelas-flores. Ouvindo o seu nome, disse-lhe que havia passado diante de seu castelo, não longe de Balbec.

- Oh! Como teria ficado feliz em mostrá-lo ao senhor - disse ela quase em voz baixa como para se mostrar mais modesta, mas num sentido, cheio de pena pela ocasião perdida de um prazer especial; e acrescentou com um olhar insinuante: - Espero que nem tudo esteja perdido. E devo dizer que o que lhe teria interessado mais seria o castelo de minha tia Brancas; foi construído por Mansard; é a pérola da província. -

     Não é somente ela quem teria ficado contente de mostrar seu castelo, mas tia Brancas, que não ficaria menos encantada em me fazer as honras em seu, pelo que me assegurou essa dama com palavras nada comprometedoras, que, evidentemente, pensava que, sobretudo num tempo em que a terra tende a passar às mãos dos financistas que não sabem viver, o importante é que os grandes mantenham as altas tradições da hospitalidade senhoril. Era também porque ela buscava, como todas as pessoas do seu meio, dizer as coisas que podiam dar o máximo prazer ao interlocutor, dar a mais alta ideia de si mesmo, fazê-lo acreditar que lisonjeava as pessoas a quem escrevia, que honrava seus anfitriões, que todos estavam ansiosos para conhecê-lo. A falar a verdade, existe até mesmo na burguesia às vezes, esse costume de querer dar aos outros uma ideia agradável aos mesmos. Encontra-se nela essa disposição benevolente, a título de qualidade individual que compensa um defeito, não, infelizmente, entre os amigos mais certos, mas pelo menos entre as companheiras mais agradáveis. Em todo caso, floresce completamente isolada. Numa parte importante da aristocracia, ao contrário, esse traço de caráter deixou de ser individual; cultivado pela educação, mantido pela ideia de uma grandeza própria que não pode recear ser humilhada, que não conhece rivais, sabe que por meio da amenidade ela pode fazer as pessoas felizes e se compraz em fazê-las. Isso tornou-se o caráter genérico de uma classe. Até aqueles cujos defeitos pessoais muito opostos os impedem de conservá-lo no coração trazem consigo o seu sinal inconsciente no seu vocabulário ou em sua gesticulação.  

- É uma mulher muito bondosa - disse-me o Sr. de Guermantes a respeito da princesa de Parma - e que sabe ser uma "grande dama" como pessoa.

     Enquanto eu era apresentado às mulheres, havia um senhor que dava numerosos sinais de agitação: era o conde Hannibal de Bréauté-Consalvi. Tendo chegado tarde, não tivera tempo de se informar acerca dos convivas e, quando entrei no salão, vendo em mim um convidado que não fazia parte da sociedade da duquesa e, portanto, deveria possuir títulos bastante extraordinários para nela penetrar, instalou seu monóculo na curva arcada dos supercílios, pensando que isso o ajudaria muito a distinguir que espécie de homem eu era. Sabia que a Sra. de Guermantes possuía, apanágio precioso das mulheres verdadeiramente superiores, aquilo a que se chama um "salão", ou seja, acrescentava por vezes às pessoas de seu mundo alguma notabilidade que acabava de revelar a descoberta de um remédio ou a produção de uma obra prima. O faubourg Saint-Germain permanecia ainda sob a impressão de ter sabido que, na recepção oferecida ao rei e à rainha da Inglaterra, a duquesa não temera convidar o Sr. Detaille. As mulheres de espírito do faubourg mal se consolavam por não terem sido convidadas, de tanto que estavam interessadas em se aproximar desse gênio estranho. A Sra. de Courvoisier afirmava que também estivera presente o Sr. Ribot, mas tratava-se de uma invenção, destinada a fazer acreditar que Oriane procurava tornar seu marido embaixador. Enfim, para cúmulo do escândalo, o Sr. de Guermantes, com uma galanteria digna do marechal de Saxe, se apresentara no salão da Comédie Française e rogara à Srta. Reichenberg que fosse recitar versos diante do rei, o que acontecera e constituíra um fato sem precedentes nos anais das reuniões mundanas. À lembrança de tantos imprevistos (que aliás aprovava plenamente, sendo ele mesmo um ornamento e, assim como a duquesa de Guermantes, porém do masculino, uma consagração para um salão), o Sr. de Bréauté se perguntara quem poderia eu ser, sentia um terreno bem vasto aberto às investigações. Por um momento, o nome do Sr. Widor passou pelo seu espírito; porém julgou que eu era muito jovem para ser um organista, e o Widor bem pouco notável para ser "recebido". Mais verossimilmente, pareceu-lhe ver em mim apenas o novo adido da legação da Suécia, de quem lhe tinham falado; e preparava-se para me pedir notícias do rei Oscar; por quem fora por várias vezes muito bem recebido; mas, quando o duque, para me apresentar, disse meu nome ao Sr. de Bréauté, este, vendo que esse nome lhe era absolutamente desconhecido, já não duvidou desde então encontrando-me ali, que eu fosse alguma celebridade. Decididamente, Oriane não fazia asneiras e conhecia a arte de atrair os homens em evidência, à percentagem de um para cem bem entendido, sem o que teria depreciado o seu salão. O Sr. de Bréauté começou, portanto, a lamber os beiços e a fungar com as gulosas narinas, com o apetite despertado não só pelo bom jantar que estava certo de comer, mas pelo caráter da reunião, que a minha presença não podia deixar de tornar interessante e que lhe forneceria assunto de conversação picante durante o almoço do dia seguinte em casa do duque de Chartres. Ainda não estava bastante certo de saber se eu era o homem de cujo soro contra o câncer acabavam de fazer experiências ou autor cujo próximo anteato se ensaiava no Théâtre-Français, mas, grande intelectual, grande entusiasta de "narrativas de viagens", não cessava de multiplicar diante de mim as reverências, os sinais de inteligência, os sorrisos filtrados pelo seu monóculo; seja baseado na idéia falsa de que um homem de valor o estimaria mais se ele conseguisse lhe gravar no espírito a ilusão de que para ele, conde de Bréauté-Consalvi, os privilégios do pensamento não eram menos dignos de respeito que os do berço; seja simplesmente por precisão e dificuldade de expressar sua satisfação, na ignorância da língua em que deveria falar-me, em suma, como se se achasse a presença de um dos "naturais" de uma terra desconhecida, onde tivesse abordado a sua jangada e com os quais, por esperança de lucro, enquanto observasse curiosamente os seus costumes e sem interromper as demonstrações de amizade e nem de soltar grandes gritos de boa vontade com eles, trataria de trocar ovos de avestruz e especiarias por miçangas. Depois de corresponder da melhor maneira à sua alegria, apertei a mão duque de Châtellerault, que já havia encontrado na casa da Sra. de Villeparisis, da qual dissera-me ele tratar-se de uma espertalhona. Ele era Guermantes, por causa dos cabelos louros, o perfil arqueado, os pontos que se altera a pele do rosto, tudo o que já se vê nos retratos dessa família que nos deixaram os séculos XVI e XVII. Mas, como eu já não amasse a duquesa, sua reencarnação em um rapaz não me servia de atrativo, como o gancho que fazia o nariz do duque de Châtellerault como a assinatura de um pintor que eu tivesse estudado há muito, mas que já não me interessava de modo algum. 
 
continua na página 192...
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Volume 2
Volume 3
O Caminho de Guermantes (2a.Parte - Uma vez sozinho com os quadros)
Volume 7

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