domingo, 31 de agosto de 2025

crônica - um professor bagunceirinho (2)

um professor bagunceirinho (2)

baitasar

aqui estamos, sentados, frente à frente, em silêncio, olha diretamente em meus olhos com seu jeito calmo e inabalável, não tem pressa, penso que se ela não está com pressa, também não preciso estar, para um estranho pode aparentar cautela esse seu talento para acalmar fantasmas, contagia sua paciência e sensatez, anuncia silenciosamente sua conexão profunda com o momento e sua sinceridade, é a força que se revela na tranquilidade, na paz interior sem ingenuidade, no olhar questionador das causas e consequências da realidade

desvio meu olhar, na parede um lembrete:

“a educação é uma inspiração que liberta através da reflexão formativa; professores e professoras, não se intimidem nem se limitem apenas a informar, tenham mais ousadia, criatividade e amorosidade”

meu olhar curioso fica pensativo, acordo lembranças, reviro memórias, infindáveis conversas sobre a escola ser um espaço de resistência e esperança, emancipando emocional e intelectualmente, rompendo paradigmas opressores, estimulando o potencial de cada estudante, formando cidadãos e cidadãs críticas, homens e mulheres éticas e ativas, capazes de atuar na transformação desta sociedade injusta, submissa e egoísta, para outra convivência possível com cidadania justa, livre e solidária, uma camaradagem democrática, acesso à informação, trabalho e empregos bem remunerados, qualificados pela garantia de direitos e deveres, educação, saúde, moradia, segurança, uma escolha consciente pela vida sempre, usando o diálogo para promover o entendimento e respeito às diferenças, formando indivíduos criativos e felizes com suas tomadas de decisões, fortalecendo valores de cidadania desde a infância

lembro discussões antigas sobre a importância de não utilizar o diálogo como arma para desarmar alunos e alunas, essa abordagem sugere a mim uma contradição provocativa, indicando que o diálogo para construção e entendimento também pode ser usado para enfraquecer e desestabilizar, como por exemplo, a manipulação da informação e do discurso das mídias, por interesses pessoais, econômicos e políticos, é preciso estarmos atentos ao diálogo como estratégia para dividir, desinformar ou enfraquecer as pessoas, utilizado de forma hostil para gerar mais conflitos, inseguranças e fragilidades, transformando debates em campos de batalha do ódio e intolerância

precisamos do diálogo como uma ponte de entendimento, empatia e resolução de conflitos, fortalecendo a confiança, o respeito e a solidariedade, com escuta ativa e respeito mútuo, falar e escutar, encorajar vínculos comunitários

é urgente que entendamos que um ambiente de vivência, reflexão e crescimento integral, não é apenas um espaço de transmissão de conteúdos, vou repetir, a escola como um ambiente de vivência, reflexão e crescimento, não é apenas um espaço de transmissão de conteúdos, é fundamental incentivar todos e todas, na escola, a compreenderem nossa realidade social, econômica e política, despertando o senso de responsabilidade e engajamento

desde sempre, acreditei na possibilidade da construção de uma escola diferente – pelo menos, uma escola – voltada à conscientização, inclusão, autonomia, participação, diálogo, alegria, libertação e cidadania com amorosidade

ainda acredito que é possível a libertação do sujeito escravizado pelo medo, arrogância, egoísmo, mentiras e desinformação, não é fácil o desacordo e o enfrentamento com aqueles que replicam ódios e pensamentos fedorentos, uma dissonância constante em nossas vidas, mas nunca foi fácil, nada cai do céu, recordo a greve de 1979, minha primeira greve, movimento deflagrado, no primeiro dia de aula daquele ano letivo, pelos professores e professoras do Rio Grande do Sul, organizados pelo CPERS, o governador Amaral de Souza negava-se a cumprir as promessas assumidas por Synval Guazelli, de quem fora vice na gestão anterior –tivemos vitórias e recuos naqueles anos, conquistamos a organização coletiva e a consciência de classe, o plano de carreira, a paridade entre ativos e inativos, a gestão democrática nas escolas, o 13º salário, reinvindicações que se somaram ao longo das greves que se seguiram –, essa paralisação garantiu a nomeação de 20 mil concursados e 70% de reajuste salarial parcelado, 13 dias de lutas pela escola pública em plena ditadura militar, o medo permanente e real de professoras e professores serem demitidos sumariamente, torturados, desaparecidos, saímos da greve fortalecidos e como medalha de luta recebemos faltas não justificadas dadas em silêncio  

a ditadura militar do silêncio denunciada e enfraquecida pela sineta, seu som clamava por dignidade e respeito

ainda acredito que é possível nos desfazermos das diferentes máscaras que simulam círculos sobre nossas cabeças, repetindo ameaças infames, capturando a atenção e o coração das pessoas, alimentando pensamentos distorcidos e ódios profundos, forças manipuladoras em uma sociedade que muitas vezes aceita a superficialidade dos conteúdos e incentiva o ciclo vicioso da desconfiança, intolerância, com notícias falsas, discursos de ódio, contaminando mentes e corações, espalhando-se como fogo, destruindo e consumindo nossos sabores e letras de amorosidade, uma cafeteria sem conversas animadas

neste cenário, é fundamental buscar a verdade, questionar o que nos é apresentado e resistir às forças que tentam dividir e enfraquecer nossa humanidade, é preciso vencer esse caos de mentiras e construir dia-a-dia um outro jeito de viver mais consciente, justo e amoroso

liberto um suspiro profundo como uma baforada despedaçando minha quietude no vidro fumê

O que foi, Marko?

volto minha atenção à professora Rachel, sinto vontade de sorrir, pedir que ela anuncie com brevidade às paredes e ao mundo dos vivos e mortos, Este é o seu primeiro dia de aposentado, Marko, simples assim, o primeiro dia do resto da minha vida, professor aposentado, inativo, continuo em silêncio, sem ruídos, aguardando o anúncio, pronto para mostrar-me, Eu aposentei!

ela me observa

eu a espreito

sinto que hesita um instante, tento acalmar meu coração que está aos pulos, estou pronto para sorrir, agradecer e aceitar minha jubilação, explicar que é muito bem-vindo esse outro tempo para mim, não irei sentir falta dessa vida de professor – não vou murmurar queixumes de melancolia, quero experimentar essa outra vida com plenitude, apesar das advertências que toda essa rotina diária será difícil de preencher

bobice, quando histórias e conversas terminam, inevitavelmente, começamos outras conversas, outras histórias, a vida se dispersa em outros caminhos, novas escolhas que juntamos e misturamos com segurança, algumas vezes; com embaraço ou com melancolia, outras tantas, e seguimos, é preciso ir em frente, dialogando com a vida e acariciando o coração em algum lugar com aparência agradável, com sorte e resiliência para outros risos e mais voos

sinto que estou sorrindo

Marko, preciso de você, diz sem afobação ou malícia melodramática

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