Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
Quarta Parte
11.
continuando...
. Àquela hora o corredor estava
escuro. "E se ele, de repente, saísse daquele vão e investisse contra mim, na
escada?” Foi a ideia que lhe relampejou no espírito quando se sentiu perto do
mesmo lugar daquela vez passada. Mas não surgiu ninguém.
Alcançou a porta da
rua, saiu, admirou-se ao ver a densa multidão que se espraiava pelas ruas (como
sempre, no verão, à hora do poente, acontece em Petersburgo). Virou na direção
da Gorókhovaia. Devia já estar distanciado do hotel uns cinquenta passos quando,
na primeira rua que ia atravessar, alguém, na multidão, sem ele esperar, lhe
tocou o cotovelo e lhe sussurrou ao ouvido:
- Liév Nikoláievitch, meu irmão,
preciso de ti. Segue-me.
Era Rogójin.
Foi uma coisa estranha, mas deve ser
dita: o príncipe pôs-se logo a lhe contar efusivamente, muito além de qualquer
propósito, de modo atabalhoado, que estivera a esperá-lo no hotel e que até
pensara encontrá-lo no corredor.
- Eu estive lá - respondeu Rogójin. - Vem
comigo!
Esta resposta surpreendente só espantou o príncipe dois minutos depois,
quando a entendeu bem. E, tendo compreendido, ficou alarmado, a olhar com
toda a atenção para Rogójin, que caminhava na sua frente, à distância de um
passo, abrindo passagem para ele, Míchkin, com cuidado mecânico, alheio a todo
o mundo.
- Mas, se esteve no hotel, por que não foi me procurar no quarto?
Rogójin parou,
olhou-o um pouco e, como se não tivesse ouvido direito a pergunta, disse:
- Presta atenção no que te vou pedir, Liév Nikoláievitch. Segue sempre à direita,
rua acima, até a minha casa; e eu atravesso e vou pelo outro lado da rua. Mas
repara que um tome conta do outro.
Dito o que, atravessou a rua, para a outra calçada, parou, a ver, de lá, se o
príncipe estava andando. Vendo, porém, que não, fez-lhe um sinal com os olhos,
tomou a direção de Gorókhovaia e seguiu, virando a todo momento para olhar o
príncipe, e lhe fazendo sinal para o seguir. E evidentemente se certificou logo que
o príncipe o tinha compreendido e o estava já seguindo, pelo outro lado da rua, na
calçada paralela. O príncipe pensou que, com certeza, Rogójin queria espreitar
alguma pessoa que lhe não conviria que passasse por ele ou o seguisse. E tinha
atravessado para o outro lado, por precaução.
“Mas, ao menos, por que não me
disse de quem está com receio?”
Caminharam, assim, uns quinhentos passos. De repente, sem saber direito
por que, Míchkin começou a tremer. Rogójin continuava a olhá-lo, de quando em
quando, porém mais espaçadamente. Sentindo que não podia prosseguir, o
príncipe lhe fez um sinal, chamando-o. Rogójin atravessou imediatamente a rua,
enviesando-se na sua direção.
- Nastássia Filíppovna está em sua casa?
- Está.
- Foi você que me olhou, por detrás da cortina, esta manhã?
- Fui.
- Como? Era você?
E o príncipe não soube o que perguntar a seguir e nem como acabar a sua
interrogação. De mais a mais, o seu coração batia tanto que mal poderia
continuar a falar. Rogójin também ficou calado e continuou a olhar para ele,
como ainda agora, com uma expressão de sonho...
- Bem, então vou indo - disse,
afinal, preparando-se para atravessar para o outro lado - Tu vais sozinho, pois
fica melhor cada um seguir separadamente...
Quando, por fim, dobraram a
esquina para a Gorókhovaia, já próximos da casa de Rogójin, as pernas do
príncipe começaram a fraquejar a ponto de lhe ser quase impossível poder
prosseguir. Eram mais ou menos dez horas da noite. As janelas do lado da velha
ainda estavam escancaradas, como de dia. As da parte de Rogójin permaneciam
todas fechadas e, na penumbra, as cortinas ficavam mais visíveis. O príncipe
aproximava-se pela calçada oposta à casa. Rogójin, sempre pela sua calçada,
chegou, dobrou para as escadas e, lá do vão, lhe acenou. Míchkin atravessou e
veio se juntar a ele.
- O porteiro ignora que estou aqui. Menti-lhe, esta manhã,
que ia para Pávlovsk e deixei uma palavra neste sentido também à minha mãe. - sussurrou, com um sorriso dissimulado e quase jactancioso - Vamos entrar de
maneira que ninguém ouça.
A chave já estava na sua mão. Subindo a escada,
virou-se, fez com o dedo no ar um gesto bem significativo, dando a entender ao
príncipe que subisse sem nenhum ruído. Abriu sem o menor estalido a porta dos
seus aposentos, fez o príncipe passar, entrou também, com muita cautela, fechou
a porta, guardou a chave no bolso.
- Vem - ciciou ele.
Desde a Litéinaia que só falava por cicios, estando, por dentro, a despeito de toda
a calma aparente, em um estado de intensa agitação. Chegando à sala
de visitas, a caminho do gabinete, se dirigiu para a janela e fez um gesto para
Míchkin.
- Esta manhã, quando tocaram, adivinhei logo que eras tu. Fui, na ponta dos pés,
até àquela porta e te ouvi falar com a Pafnútievna. Mal o dia raiou eu dei ordem
a ela para que se tu, ou qualquer pessoa mandada por ti, batesse na minha porta,
não dissesse absolutamente que eu estava aqui: principalmente se fosses tu, e lhe
dei o teu nome. Depois, quando te foste embora, me veio o pensamento: “E se
ele fica parado a espiar lá da rua, vigiando?” Aproximei-me então desta janela.
aqui. franzi um pouco a cortina.... E lá estavas tu, e me olhaste até... Foi assim.
- Onde está Nastássia Filíppovna? - perguntou o príncipe, quase sem fôlego.
- Ela... está... aqui... - respondeu Rogójin, baixo, demorando a falar.
- Onde?
Rogójin ergueu os olhos e fitou o príncipe.
-Vem...
Falava sempre ciciando, com aquele mesmo ar de sonho. Já um pouco antes,
ainda agora mesmo, quando contou aquela coisa a respeito da cortina, parecia
querer dizer coisa muito outra, apesar de ter simulado estar falando
espontaneamente.
Entraram no gabinete.
Havia qualquer mudança naquela sala,
depois da anterior vinda do príncipe. Uma pesada cortina verde, que devia ter
servido para outro fim, pendia de viés, separando a ala da alcova de Rogójin.
Estava escuro. As noites brancas, do verão de Petersburgo, já se iam alterando, e
se não houvesse lua cheia teria sido difícil distinguir qualquer coisa nessas peças
com janelas tapadas por cortinas. Em todo o caso podiam distinguir o rosto um do
outro, embora mal. As faces de Rogójin estavam pálidas como de costume. Os
seus olhos cintilantes continuavam a vigiar o príncipe, com um brilho seco
- Seria melhor acender uma luz - sugeriu Míchkin.
- Não. Não precisa
respondeu o outro - que, tocando a mão do príncipe, o fez sentar.
Sentou-se
também, por sua vez, tendo trazido a cadeira para tão perto que quando se sentou,
ficou roçando os joelhos do outro. Junto deles, um pouco para um lado, havia
uma mesinha redonda.
- Fiquemos aqui um pouco - disse, como querendo
persuadir o príncipe a não se levantar.
- Bem me pareceu que devias estar lá naquele hotel, de novo - começou
ele, com aquela maneira por que certas pessoas, iniciando um assunto
importante, preludiam antes com ninharias que não vêm a propósito. - Mal entrei
pelo corredor adentro, pensei: “E se ele estiver sentado lá dentro esperando por
mim, enquanto eu estou aqui em pé, esperando por ele?” Estiveste na casa da
viúva do mestre-escola?
Devido ao violento palpitar do seu coração, o príncipe
mal pôde responder:
- Estive.
- Pensei nisso, também “Vão acabar falando”, pensei.., então disse comigo
assim: “Vou trazê-lo aqui, esta noite, de maneira a passarmos a noite juntos...
- Rogójín! Onde está Nastássia Filíppovna? - perguntou o príncipe, prontamente.
E
todos os seus membros começaram a tremer, quando ficou de pé. Rogójin
também se levantou, e sussurrou, apontando para a cortina:
- Está ali.
- Dormindo? - balbuciou o príncipe.
Rogójin tornou a olhar para ele com profunda atenção.
- Bem, entra, tu...
somente... Entra...
Ergueu a cortina, assim, em pé, voltado para o príncipe.
- Entra! - disse, reforçando, com um gesto, empurrando-o mansamente para
dentro da cortina.
Míchkin entrou.
- Está escuro... - disse.
- Mas se vê... - ciciou Rogójin.
- Vejo muito mal... Aqui... é... uma cama?
- Aproxima-te - sugeriu Rogójin,
brandamente.
O príncipe deu o primeiro passo; depois o segundo e parou. Parou
e ficou olhando. Passou um minuto.
Custou muito a passar outro minuto. Permaneciam perto da cama, bem rente.
Não falavam absolutamente nada. O coração do príncipe batia tão violentamente
que era agora a única coisa audível na quietude mortal da alcova.
Os seus olhos já se estavam acomodando na treva e então começou a distinguir a
cama inteira. Alguém jazia nela, dormindo um sono de perfeita imobilidade, sem
fazer ruído algum, por mais insignificante que fosse: nem mesmo o da
respiração. E quem assim dormia estava coberto desde a cabeça até aos pés com
um lençol branco sob o qual os membros vagamente se configuravam. Tudo
quanto se podia ver era que um corpo humano jazia ali,
estendido em todo o seu comprimento.
Na mais completa desordem, aos pés da
cama, sobre as cadeiras ao lado, e pelo chão, havia roupas jogadas. Um rico
vestido de seda branca. Flores. E fitas. Em uma pequenina mesa, junto
à cabeceira da cama, um diadema de diamantes que tinha sido tirado e posto ali.
Do lado dos pés da cama havia um monte de sedas e cambraias amarrotadas, e
sobre elas emergia de uma nesga do lençol um pé nu. Tão branco, tão imóvel
que parecia de mármore. O príncipe olhava... E, olhando, sentia que a alcova
cada vez se ornava mais sepulcralmente silenciosa. Nisto ouviu o zunido de uma
mosca que voou sobre o leito e foi pousar no travesseiro. O príncipe recuou.
- Agora, vem comigo! - era Rogójin, que lhe tocava no braço.
continua página 547...
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Segunda Parte
Terceira Parte
O Idiota: Quarta Parte (11b) - Àquela hora o corredor estava escuro
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