quarta-feira, 20 de agosto de 2025

Massa e Poder - Malta e Religião: O Islamismo como Religião de Guerra

Elias Canetti

MALTA E RELIGIÃO

      O Islamismo como Religião de Guerra

      Os fiéis maometanos reúnem-se em quatro ocasiões diversas:

 1) Reúnem-se várias vezes ao dia para orar, para o que lhes convoca uma voz vinda lá do alto. — Trata-se aí de pequenos grupos rítmicos aos quais se pode chamar maltas de oração. Todos os seus movimentos são-lhes minuciosamente prescritos e dominados por uma única direção: a de Meca. Uma vez por semana, na oração das sextas-feiras, essas maltas crescem, transformando-se em massas.
2) Reúnem-se para a guerra santa contra os infiéis.
3) Reúnem-se em Meca, quando da grande peregrinação.
4) Reúnem-se no juízo final.

     No islamismo, como em todas as religiões, as massas invisíveis são da maior importância. No entanto, com maior nitidez do que nas demais religiões universais, são massas duplas invisíveis que aí se defrontam.
     Tão logo soa a trombeta do juízo final, os mortos levantam-se todos de seus túmulos e, qual obedecessem a um comando militar, dirigem-se a toda a pressa para o campo do juízo. Ali, apresentam-se diante de deus em dois portentosos amontoados, apartados um do outro — de um lado, ficam os fiéis; do outro, os infiéis —, e cada um é julgado por deus.
     Reúnem-se, assim, todas as gerações humanas, parecendo a cada um ter baixado à sepultura somente no dia anterior. Ninguém tem ideia do tempo incomensurável ao longo do qual jazeu em seu túmulo. Sua morte não teve sonhos nem deixou lembranças. Todos, porém, ouvem o som da trombeta: “Nesse dia, os homens surgirão aos bandos”. O Corão faz constantes referências aos bandos desse grandioso momento. Trata se da mais abrangente ideia de massa que um fiel maometano é capaz de fazer. Ninguém poderá conceber um número de seres humanos maior do que o de todos os que já viveram, todos eles comprimidos num mesmo lugar. Tem-se aí a única massa que não cresce mais, e cuja densidade é a máxima possível, pois cada um de seus membros apresenta-se num único e mesmo lugar, diante de seu juiz.
     Contudo, grande e densa como é, essa massa permanece dividida em duas do começo ao m. Cada um sabe exatamente o que o espera: uns abrigam esperança; outros, pavor. “Nesse dia haverá rostos radiantes, risonhos, felizes; mas nesse mesmo dia haverá também rostos cobertos de pó e de escuridão: estes são os infiéis, os pecadores.” Uma vez que se trata de um veredicto absolutamente justo — cada ato encontra-se registrado por escrito, podendo ser comprovado —, ninguém poderá escapar da metade à qual pertence de direito.
     A bipartição da massa no islamismo é absoluta: ela separa o amontoado dos fiéis daquele dos infiéis. O destino de ambos, que permanecerá apartado para sempre, é combater um ao outro. A guerra da fé é tida por um dever sagrado, de modo que, já nesta vida, prefigura-se a cada batalha — ainda que de uma maneira menos abrangente — a massa dupla do juízo final.
     Um outro quadro apresenta-se aos olhos dos maometanos como um dever não menos sagrado: a peregrinação a Meca. Nesse caso, trata-se de uma massa lenta, que se forma pela paulatina a fluência de pessoas provindas de todas as partes. Essa massa pode estender-se por semanas, meses ou mesmo anos, dependendo de quão longe de Meca o fiel mora. A obrigação de realizar essa peregrinação ao menos uma vez na vida matiza a totalidade da existência terrena de uma pessoa. Quem nunca participou da peregrinação não chegou a viver de fato. Participar dela é uma experiência que condensa em si, por assim dizer, todo o território coberto pela fé, concentrando-a no local que foi seu ponto de partida. Essa massa de peregrinos é pacífica, voltada única e exclusivamente para o atingimento de sua meta. Subjugar infiéis não é tarefa que lhe caiba; ela precisa apenas chegar ao local designado: precisa ter estado lá.
     É considerado um milagre todo especial que uma cidade do tamanho de Meca seja capaz de acolher esses inúmeros bandos de peregrinos. O peregrino espanhol Ibn Jubayr — que esteve em Meca por volta do final do século XII, legando-nos uma descrição minuciosa da cidade — crê que mesmo a maior cidade do mundo não teria lugar para tanta gente. Meca, porém, teria sido agraciada com uma dilatabilidade especial para abrigar as massas; ter-se-ia de compará-la a um útero, que, de acordo com a conformação do embrião que contém, faz-se maior ou menor.
     O momento mais importante da peregrinação é o dia na planície de Arafat. Setecentas mil pessoas, afirma-se, reúnem-se ali. O que falta para completar esse número é preenchido por anjos que, invisíveis, misturam-se aos homens.
     Quando, porém, os dias de paz chegam ao m, a guerra da fé volta a assumir seus direitos. “Maomé”, afirma um dos maiores conhecedores do islamismo, “é o profeta da luta e da guerra [...] O que ele próprio fez em sua esfera árabe é o testamento que lega para o futuro de sua comunidade: o combate aos infiéis e a expansão não tanto da fé, mas da esfera de poder desta, que é a esfera de poder de Alá. Aos combatentes islâmicos importa não tanto a conversão, mas a subjugação dos infiéis.”
      O Corão — o livro do profeta inspirado por Deus — não deixa dúvida a esse respeito: “Terminados os meses sagrados, matai os infiéis, onde quer que os encontreis; apanhai-os, atormentai-os e preparai contra eles toda sorte de emboscadas”.

continua página 215...
____________________

Leia também:

Massa e Poder - Malta e Religião: O Islamismo como Religião de Guerra
____________________

ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
_______________________

Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

Nenhum comentário:

Postar um comentário