sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Quarta Parte (11a) - Uma hora depois

O Idiota

Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Quarta Parte

11.


.     Uma hora depois já chegava a Petersburgo. E logo um pouco depois das nove horas estava tocando a campainha da casa de Rogójin. Durante longo tempo, parado no vestíbulo do andar, não foi atendido. Insistiu. Por fim a porta da ala ocupada pela mãe de Rogójin foi aberta por uma empregada idosa e de aparência respeitável que foi logo informando:

- Parfión Semiónovitch não está em casa. Com quem quer falar o senhor? 
- Com Parfión Semiónovitch. 
- Não está. - a criada olhava para o príncipe com uma curiosidade desatenciosa. 
- Em todo o caso me informe se ele dormiu em casa esta noite, se chegou sozinho aqui, ontem! 

     A velha continuava olhando para ele sem responder. 

- Esta noite passada não veio com ele, para aqui, Nastássia Filíppovna? 
- Mas permita, por favor, que lhe pergunte: quem é o senhor? 
- O Príncipe Liév Nikoláievitch Míchkin. Somos amigos íntimos. 
- O patrão não está em casa. - a mulher abaixou os olhos.
- E Nastássia Filíppovna? 
- Não entendo o que o senhor está falando. 
- Espere. espere! Quando é que ele volta? - Quanto a isso, não sabemos tampouco. 

     E a porta fechou-se.
     O príncipe resolveu voltar daí a uma hora justa. Deu uma olhadela ao pátio e viu o porteiro.

- Parfión Semiónovitch está em casa? 
- Sim, está. 
- Como é que me disseram agora mesmo que não estava? 
- Disse-lhe isso a empregada dele? 
- Quem me disse foi a empregada da mãe dele. Toquei a campainha da porta dele, mas não obtive resposta. 
- Talvez ele tenha saído - ponderou o dvórnik. - Ele nunca avisa, sabe? Às vezes leva a chave e as peças ficam fechadas até três dias seguidos. 
- Veja se se lembra bem se ele esteve em casa ontem!
- Esteve sim. Às vezes entra pela porta da frente e a gente não vê. 
- E não estava Nastássia Filíppovna com ele, ontem? 
- Isso não posso dizer. Ela não vem muito por aqui. Penso, porém, que se tivesse estado, a gente teria visto, ou pelo menos sabido.

     Perdido em pensamentos. o príncipe, tendo saído, começou a caminhar pela calçada oposta. para cima e para baixo. Reparara ja que as janelas do apartamento de Rogójin se achavam fechadas e que as do lado onde a mãe dele morava estavam quase todas abertas. Era um dia quente e luminoso. Lá da calçada fronteira tornou a olhar para cima. E então distinguiu que, além de fechadas. as janelas tinham entre as vidraças, cortinas brancas. Ficou parado algum tempo e teve, de repente, como que a impressão de que um canto de uma cortina fora afastado e logo largado, no ínterim entre uma coisa e outra lhe parecendo ter visto, de relance, a cara de Rogójin, em uma espécie de vislumbre.
     Esperou mais um pouco, depois resolveu voltar e tocar outra vez; refletindo porém melhor, resolveu esperar uma hora. “E quem sabe se não foi apenas imaginação minha...”
     Mas essa resolução de adiar por uma hora fora subconsciente pressa de ir até Ismáilovskii Polk, ao apartamento que Nastássia Filíppovna ocupava ultimamente. Lembrou-se de que três semanas antes, quando a seu pedido deixara Pávlovsk, ela se tinha ido acomodar em casa de uma amiga, viúva de um mestre-escola, estimável senhora com família, que alugava peças mobiliadas e que vivia, realmente, quase que só disso. Assim, pois, não era de todo improvável que, voltando a Pávlovsk, pela segunda vez, não tivesse conservado os aposentos. E de qualquer forma, mais provável era agora que tivesse passado esta noite, de ontem para hoje, naqueles aposentos, levada naturalmente por Parfión.
     O príncipe tomou uma tipoia e no caminho lhe veio a censura de não ter começado por onde agora ia, pois era evidente que ela não teria passado a noite em casa de Rogójin, reforçando-lhe este pensamento a afirmativa do porteiro de que Nastássia Filíppovna raramente aparecia. Se, dantes, não aparecia senão raramente, por que haveria de permanecer em casa de Rogójin essa noite?
      Procurando se reconfortar com tais deduções, chegou Míchkin à casa de Ismáilovskii Polk, mais morto do que vivo. Mas, para grande decepção sua, na casa da viúva do mestre-escola nem sequer tinham ouvido falar em Nastássia Filíppovna essa manhã, ou na véspera; mas todos acorreram para o observar como a um prodígio. A numerosa família daquela senhora, tudo meninas entre sete e quinze anos, rodeara a mãe, fitando Míchkin com muita vivacidade. Juntou-se-lhes a tia, de cara chupada e amarela e, por último, a avó, muito idosa, de óculos. A dona da casa, muito diligentemente, lhe sugeriu que entrasse e se sentasse, o que o príncipe logo fez.
     Percebeu que sabiam muito bem quem ele era e que estivera para se casar na véspera, estando mortas por perguntar pela noiva, muito abismadas por estar ele a indagar da esposa que, não havia dúvida, devia estar consigo àquela hora, em Pávlovsk. Mas, delicadas como eram, não o fizeram. Em breves palavras lhes satisfez a curiosidade quanto ao casamento. Gritos e exclamações de espanto e de admiração se seguiram, de modo que se viu na obrigação de contar a história quase toda, embora por alto, naturalmente.
     Finalmente, as senhoras idosas e sábias, em concílio, determinaram que a primeira coisa a fazer, indubitavelmente, era bater à porta de Rogójin até obter resposta, procurando saber, positivamente, alguma coisa dele. Caso não estivesse em casa (do que ele teria de se certificar de modo absolutamente certo!), ou se não quisesse dizer, então o príncipe devia ir imediatamente à casa de uma senhora alemã que vivia em companhia da mãe em Semiónovskii Polk, muito amiga de Nastássia Filíppovna: quem sabia lá se, no seu atarantamento e desejo de se esconder, não fora passar a noite lá. com elas?
     O príncipe levantou-se, completamente arrasado. Segundos depois, elas depuseram, ficara mortalmente pálido; de fato, as suas pernas não se resolviam a caminhar. Percebeu, dentro do terrível e agudo estridor de suas vozes que estavam combinando agir com ele, e que lhe perguntavam o seu endereço na cidade. Ainda por cúmulo, não tinha ele endereço algum para lhes dar. Aconselharam-no a ir então para um hotel; o príncipe pensou um pouco e lhes deu o nome do hotel onde estivera uma vez já, aquele onde cinco semanas antes sofrera um ataque.
     Encaminhou-se novamente para a casa de Rogójin. Lá, desta vez, não conseguiu ser atendido em nenhuma das duas portas. Foi então procurar o porteiro, com muita dificuldade acabando por encontrá-lo no pátio, ocupado e que lhe respondeu grosseiramente, olhando-o de esguelha, garantindo que Parfión Rogójin saíra de manhã, muito cedo, para Pávlovsk, não devendo voltar a casa esse dia.

- Fico esperando. Talvez volte à noite. 
- Não voltará nem daqui a uma semana. É escusado. 
- Mas, então, esteve em casa esta noite?! 
- Que esteve, lá isso esteve. Pode ficar certo.

     Tudo era muito suspeito e havia qualquer coisa esquisita nisso. Muito possivelmente o porteiro recebera instruções recentes, na sua ausência de ainda agora, pois como era que, da primeira vez, fora tão tagarela e agora lhe voltava as costas?
     Sem dizer nada, o Príncipe resolveu voltar daí a duas horas e, se achasse preciso, ficar vigiando a casa, logo lhe sobrevindo uma esperança na pessoa da senhora alemã de Semiónovskii Polk. Mas na casa da senhora alemã não entenderam uma palavra do que ele queria. E, por algumas palavras deixadas escapulir, o príncipe se deu conta de que essa beldade alemã cortara relações com Nastássia Filíppovna quinze dias antes, não tendo pois ouvido mais falar nela, ultimamente, esmerando-se mesmo em dar a entender que não se importava absolutamente de saber até “que se tinha casado com todos os príncipes do mundo”.
     O Príncipe apressou- se em ir embora.
     E então começaram a lhe ocorrer outras hipóteses e conjeturas. Ela podia ter ido para Moscou como já fizera antes, uma vez, tendo naturalmente Rogójin ido depois, ou talvez mesmo com ela. “Se, ao menos, eu pudesse achar alguns traços!” Nisto, se lembrou de que lhe era conveniente ficar um pouco no hotel: e foi ligeiro para a Litéinaia. Arranjou logo um quarto. O criado perguntou-lhe se queria comer alguma coisa. Respondeu a esse que sim. Depois, quando caiu em si, ficou furioso em ter de perder meia hora com um almoço. E ainda foi muito depois que lhe veio a evidência de que não era obrigado a comer o que lhe haviam trazido.
     Ao sair afinal do hotel, mal sabendo o que estava fazendo, uma estranha sensação tomou posse dele quando se viu ao longo do corredor escuro e abafado. Uma sensação que custou, cruelmente lenta, a se transformar em pensamento perceptível. Perceptível? Pois se nem assim pôde adivinhar que pensamento novo, ou velho, era esse em que se debatia! A sua cabeça estava em um rodopio. Mas, para onde estava ele indo agora? Arremessou-se, outra vez, na direção da casa de Rogójin. Mas este não havia voltado. Resposta nenhuma, por mais que tocasse a campainha ou batesse. Foi tocar diante da porta da velha senhora Rogójin. Estava aberta, e algum tempo depois de espera, alguém lhe disse que Rogójin não estava e nem estaria durante, pelo menos, três dias. O príncipe ficou mais perplexo ainda ao se sentir olhado, como antes, com tão desconcertante curiosidade.
     Desta vez não conseguiu, de modo algum, encontrar o porteiro. Atravessou para a calçada do outro lado, como já fizera antes, percorreu a vista pelas janelas e ficou caminhando para cima e para baixo, por meia hora, ou possivelmente mais, sob o calor insuportável. Em todo esse tempo, coisa alguma buliu lá em cima; as cortinas brancas estavam imóveis e as janelas permaneciam fechadas. Imaginou que, decerto, daquela vez, antes, se tinha enganado; devia ter sido mera alucinação.
     De fato, as vidraças eram opacas e encardidas, sendo difícil cá de baixo distinguir se alguém espiava de lá. Sossegado com estas reflexões, dirigiu-se de novo à casa da viúva em Ismáilovskii Polk. Já o estavam esperando, aflitas. A senhora estivera pessoalmente já em três ou quatro lugares. Inclusive na porta da residência de Rogójin, onde nada pudera saber nem ver, O príncipe, ouvindo em silêncio, entrou para a sala, sentou no sofá e ficou a olhar como se não estivesse entendendo o que elas todas lhe contavam, falando ao mesmo tempo. 
     Por mais estranho que seja, convém ser dito aqui que, em dado momento, o seu olhar era de quem está com o espírito completamente ausente do corpo. Toda a família declarou mais tarde que, nesse dia, ele estava assim como uma pessoa em quem é fácil ver que “o fim já era claro”.
     Posto o que, se levantou e pediu para ver os aposentos que tinham sido de Nastássia Filíppovna. Estes eram claros, altos, lindamente mobiliados, dos que se alugam a alto preço. As senhoras relataram mais tarde como foi que o príncipe examinou tudo, minuciosamente, coisa por coisa, objeto por objeto. Que, tendo visto sobre a mesa um livro aberto, um volume francês, Madame Bovary. Dobrou a folha, fechou-o, pediu permissão para levá-lo e sem ouvir as explicações das senhoras de que o livro era de uma biblioteca circulante, meteu-o a seguir no bolso externo do paletó.
     Sentou-se um pouco, em frente mesmo da janela. E depois, notando uma mesa de jogo, com o tampo coberto de rubricas de giz, perguntou quem tinha estado a jogar. Responderam que na temporada anterior Nastássia Filíppovna costumava jogar todas as noites, com Rogójin, paciência, burro, durakí uíste e mielnike. Que se tinham posto a jogar cartas, naquela vez em que vieram de Pávlovsk, porque Nastássia Filíppovna vivia sempre se queixando que estava entediada, que Rogójin nem conversar sabia, as noites sendo insuportáveis. Que muitas vezes até chorara. E que então, uma noite, sem dizer nada, ele, Rogójin, trouxera um baralho. Que Nastássia ficara contente, dando então em jogar para se distrair.
     O príncipe perguntou pelo baralho; mas não houve meio das cartas aparecerem. É que Rogójin trazia um baralho novo todas as tardes levando o 
usado cada vez que se ia embora, de noite.
     Aconselharam-no as senhoras a voltar ainda à casa de Rogójin e a tocar bem alto e bater com força. Não agora, mas de noite. “Talvez conseguisse alguma coisa”. Ofereceu-se a viúva a, enquanto isso, ir até Pávlovsk, pessoalmente, à casa de Dária Aleksiéievna, a fim de indagar se alguma coisa fora sabida lá. Sugeriram a Míchkin que em todo o caso voltasse às dez horas para, se fosse necessário, combinarem os planos para o dia seguinte. A despeito de todas as tentativas para consolá-lo e acalmá-lo, a sua alma estava subjugada por um absoluto desespero, tendo se dirigido para o hotel em uma inexprimível angústia.
     A poeirenta e sufocante atmosfera de Petersburgo pesava sobre ele como uma prensa; era acotovelado por gente vagarosa ou bêbada; fixava a esmo as fisionomias. E decerto caminhou muito além do que o necessário, já sendo quase noite quando voltou para o seu quarto. Resolveu descansar um pouco antes de tornar a ir à casa de Rogójin, como lhe tinham aconselhado. Sentou-se em um sofá, apoiou os cotovelos sobre a mesa, e afundou em pensamentos.
     Deus sabe o tempo e aquilo em que pensou.
     Havia muitas coisas que ele temia. Sentiu dolorosamente, pungentemente, uma horrível apreensão. Mais, bem mais que apreensão. Pavor. Vera Liébedieva lhe veio ao espírito. E nisto o pensamento o assaltou de que Liébediev talvez soubesse de alguma coisa; ou que, se não soubesse, pudesse procurar mais depressa e com mais facilidade do que ele. Depois se lembrou de Ippolít: e que Rogójin costumava conversar com Ippolít. E pensou ainda em Rogójin, quando estivera no funeral, depois no jardim e depois e isso repentinamente - naquela vez em que ele, Rogójin, estivera ali no corredor do hotel e como se escondera e o esperara com um punhal. Recordou-se dos olhos dele, aqueles olhos que o olhavam em brasa, na treva. Estremeceu, porque um pensamento, esse pensamento que se estava conformando em expressão aguda, lhe veio à cabeça. Se Rogójin estivesse em Petersburgo, escondido mesmo, por enquanto, acabaria, certamente, por vir até ele, o príncipe, fosse com boa ou com má intenção, como já fizera uma vez.
     De qualquer maneira, se, pois, quisesse vir vê- lo, não podia ser em lugar nenhum senão ali, naquele corredor. Não tendo nenhum outro endereço, só poderia supor que ele, o príncipe, estivesse no mesmo hotel de antigamente. Acabaria por vir procurá-lo ali; tentaria isso, se tivesse grande precisão dele. E quem sabia lá se já não tinha precisado dele?
     Desta maneira esteve a considerar. E a ideia lhe pareceu bem razoável. Não lhe teria sido possível explicar por qual motivo concluíra que ele, o príncipe, era necessário a Rogójín e que, portanto, se teriam de encontrar. Mas a conclusão era categórica, na forma deste pensamento alternado: “Se ele estiver bem, não virá; mas se se sentir infeliz, virá. E é lógico que se sente infeliz.”
     Já que estava com esta convicção, devia ter ficado no hotel, esperando Rogójin, em seu quarto. Mas não se sentiu capaz de permanecer ali, com aquela ideia. Agarrou o chapéu e saiu apressadamente.

Terceira Parte
O Idiota: Quarta Parte (11a) - Uma hora depois
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