segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Marcel Proust - O Caminho de Guermantes (2a.Parte - muitos amigos da princesa sabiam)

em busca do tempo perdido

volume III
O Caminho de Guermantes

Segunda Parte

Capítulo Segundo

     Aliás, muitos amigos da princesa sabiam previamente que nessa data não seriam convidados. Era uma série particular, uma série fechada a tantos daqueles quê desejariam estar incluídos nela. Os excluídos podiam, quase com certeza; revelar os efeitos, e diziam entre si num tom de despeito: 

-Você sabe muito bem que Oriane de Guermantes nunca se desloca sem seu estado maior.-

     Com a ajuda deste, a princesa de Parma procurava cercar a duquesa como que de uma muralha protetora contra as pessoas cujo êxito junto a ela seria mais duvidoso. Porém a vários dos amigos preferidos da duquesa, a vários membros desse brilhante "estado-maior", a princesa de Parma se sentia constrangida ao fazer amabilidades, visto que a tinham muito pouco para com ela. Certo, a princesa admitia que era possível se divertirem muito mais na companhia da Sra. de Guermantes do que na sua própria. Bem se via obrigada a constatar que todos se ajuntavam nos "dias" da duquesa que ela mesma lá encontrava com frequência três ou quatro Altezas que se contentavam em deixar o cartão em sua casa. E, por mais que decorasse as frases de Oriane, imitasse os seus vestidos, servisse em seus chás as mesmas tortas com recheio de morango, havia ocasiões em que ela ficava sozinha o dia inteiro com uma dama de honor e um conselheiro de uma legação estrangeira. Assim, quando (como fora o caso de Swann antigamente) alguém não terminava nunca o dia sem ter ido passar duas horas na casa da duquesa e fazia uma visita a cada dois anos à princesa de Parma, esta não sentia muita vontade, mesmo para agradar a Oriane, de fazer a esse Swann qualquer um convite para jantar. Em suma, convidar a duquesa era para a princesa de Parma uma ocasião de perplexidades, de tanto que ela se inquietava pelo medo de que Oriane achasse tudo ruim. Mas em compensação, e pelo mesmo motivo, quando a princesa de Parma ia jantar na casa da Sra. de Guermantes, estava antecipadamente certa de que tudo correria bem, seria delicioso, e só tinha um receio: era o de não saber compreender, reter, agradar, de não saber assimilar as ideias e as pessoas. Sob tal aspecto, a minha presença excitava a sua atenção e sua cupidez, tanto quanto o teria feito uma nova maneira de decorar a mesa com guirlandas de frutos, incerta sobre se era uma ou outra, a decoração da mesa ou a minha presença, que era mais particularmente um desses encantamentos, segredo do sucesso das recepções de Oriane; e, na dúvida, bem decidida a tentar ter a ambos em seu próximo jantar. Aliás, o que justificava plenamente a curiosidade arrebatada que a princesa de Parma trazia à casa da duquesa era esse elemento único, perigoso, excitante, em que a princesa mergulhava com uma espécie de temor, de pasmo e de delícia (como, à beira-mar, num desses "rolos de ondas" de que os banhistas mostram o perigo, simplesmente porque nenhum deles sabe nadar), de onde saía retemperada, feliz, rejuvenescida, e que se denominava o espírito dos Guermantes. O espírito dos Guermantes entidade tão inexistente quanto a quadratura do círculo, segundo a duquesa, que se julgava a única Guermantes a possuí-lo era uma reputação como as carnes de porco de Tours fritas na banha, ou os biscoitos de Reims. Sem dúvida (como uma característica individual não emprega para se propagar os mesmos meios da cor dos cabelos ou da pele) certos íntimos da duquesa, e que não eram do seu sangue, possuíam esse espírito, o qual, em compensação, não pudera penetrar em certos Guermantes por demais refratários a qualquer tipo de espírito. Os detentores do espírito dos Guermantes, não aparentados à duquesa, tinham em geral como traço próprio o terem sido homens brilhantes, dotados para uma carreira à qual, foi sem as artes, a diplomacia, a eloqüência parlamentar, o exército, haviam preferido a vida de salão. Essa preferência talvez pudesse ser explicada para uma certa falta de originalidade ou de iniciativa, ou de força de vontade ou de saúde, ou de oportunidade, ou pelo esnobismo. No caso de alguns deles (aliás, é preciso reconhecer que se tratava de uma exceção), se o salão Guermantes fora o obstáculo de sua carreira, era contra a sua vontade. Assim, um médico, um pintor e um diplomata de grande futuro não tinham obtido êxito em suas carreiras, para as quais entretanto eram mais esplendidamente dotados que muitos, porque sua intimidade em casa dos Guermantes fazia com que os dois primeiros passassem por gente da sociedade, e o terceiro por um reacionário, o que impedira aos três de serem reconhecidos por seus pares. A antiga toga e o capelo rubro que revestem e cobrem ainda os colégios eleitorais das faculdades não é, ou pelo menos não era, não há muito tempo ainda, mais que a sobrevivência puramente exterior de um passado de ideias acanhadas, de um sectarismo fechado. Sob o capelo de borla de ouro, como os sumos sacerdotes sob o barrete cômico dos judeus, os "professores" estavam ainda, nos anos que precederam o Caso Dreyfus, encerrados em ideias rigorosamente farisaicas. Du Boulbon era no fundo um artista, mas salvara-se porque não gostava da sociedade. Cottard freqüentava os Verdurin, a Sra. Verdurin era uma cliente, e depois, ele era protegido por sua vulgaridade; enfim, na sua casa só se recebia a Faculdade, nos ágapes sobre os quais flutuava um odor de ácido fênico. Porém nos corpos fortemente constituídos, onde aliás o rigor dos preconceitos não passa do resgate da mais bela integridade, das idéias morais mais elevadas, que enfraquecem nos meios mais tolerantes e mais livres e rapidamente dissolutos, um professor, na sua toga de cetim escarlate forrada de arminho como a de um Dog (isto é, um duque) de Veneza encerrado no palácio ducal, era tão virtuoso, tão ligado a nobres princípios, mas tão impiedoso para com todo elemento estranho, como esse outro duque, excelente mas terrível, que era o Sr. de Saint-Simon. Estranho era o médico mundano, que possuía outras maneiras, outras relações. Para bem fazer as coisas, o infeliz de quem aqui falamos, a fim de não ser acusado pelos colegas de desprezá-los (que ideia de pessoa mundana!) se lhes ocultava a duquesa de Guermantes, contar desarmá-los oferecendo jantares mistos, em que o elemento médico se misturava no elemento mundano. Não sabia que desse modo assinava a sua perda, ou melhor, que dela era informado quando o conselho dos Dez (um pouco mais elevado em número) precisava prover uma cátedra, e que sempre o nome de um médico mais normal, ainda que mais medíocre, que saía de uma faculdade, e que o veto ressoava na antiga faculdade, tão solene, tão terrível, tão ridículo, como o "juro" com que morreu Moliere. O mesmo se dava igualmente com o pintor, rotulado para sempre de mundano, quando mundanos, que praticavam a arte, haviam conseguido ser rotulados de artistas; o mesmo quanto ao diplomata com muitas ligações reacionárias.
     Mas esse caso era o mais raro. O tipo de homens distintos que formavam o fundo do salão Guermantes era o de pessoas que haviam renunciado voluntariamente (ou que julgavam tê-lo feito, pelo menos) ao resto, a tudo aquilo que fosse incompatível com o espírito dos Guermantes, a polidez dos Guermantes, com esse encanto indefinível, odioso a todo "corpo", por menos centralizado que fosse.
     E as pessoas que sabiam que outrora um desses habitués do salão da duquesa obtivera a medalha de ouro do Salon, que um outro, secretário da Conferência dos Advogados, tivera começos brilhantes na Câmara, que um terceiro servira habilmente à França como encarregado de negócios, poderiam considerar como frustradas as pessoas que não tinham feito mais coisa alguma nos últimos vinte anos. Mas esses "bem informados" eram pouco numerosos, e os próprios interessados teriam sido os últimos a recordá-lo, achando de nenhum valor esses títulos antigos, em virtude mesmo do espírito de Guermantes: pois não fazia este acusar de maçante, de bedel, ou até, ao contrário, de caixeiro, a esses ministros eminentes, um deles um tanto solene, o outro amador de trocadilhos, a que os jornais entoavam louvores, mas ao lado de quem a Sra. de Guermantes bocejava e dava mostras de impaciência se a imprudência de uma dona de casa lhe dera um ou outro por vizinho? Já que ser um estadista de primeira ordem não era de modo algum uma recomendação para a duquesa, aqueles seus amigos que haviam pedido demissão da "carreira" ou do exército, que não se tinham reapresentado à câmara, julgavam, vindo almoçar e conversar todos os dias com sua grande amiga, e encontrando-a na casa de Altezas, aliás pouco apreciadas por eles, pelo menos era o que diziam, ter escolhido a melhor parte, ainda que seu aspecto melancólico, mesmo em meio ao ambiente alegre, contradissesse um tanto o fundamento de semelhante juízo.
     É preciso reconhecer ainda que a delicadeza da vida social, a finura das conversações na casa dos Guermantes tinham, ainda que de modo tênue, algo de real. Nenhum título oficial valia naquele meio o encanto de certos preferidos da Sra. de Guermantes, que os mais poderosos ministros não teriam podido atrair à casa deles. Se, neste salão, tantas ambições intelectuais e até mesmo nobres esforços tinham sido enterrados para sempre, pelo menos de suas cinzas havia brotado a mais rara floração de mundanismo. É claro que os homens de espírito, como Swann, por exemplo, se julgavam superiores aos homens de valor, a quem desdenhavam; é que a duquesa colocava acima de tudo não a inteligência, e sim força superior, segundo ela, mais rara, mais requintada, da inteligência, elevada a uma variedade verbal de talento o espírito. E antigamente, na casa dos Verdurin, quando Swann julgava Brichot e Elstir, um como pedante, o outro como um grosseirão, apesar de todo o saber de um e de todo o gênio do outro, era a infiltração do espírito de Guermantes que o fizera classificá-los desse modo. Jamais ousara apresentar nem um nem outro à duquesa, sentindo de antemão com que aspecto ela teria acolhido as tiradas de Brichot e as graçolas de Elstir, visto que o espírito de Guermantes enquadrava frases pretensiosas e prolongadas do gênero sério ou humorístico na mais intolerável imbecilidade.
     Quanto aos Guermantes conforme a carne, conforme o sangue, o espírito de Guermantes não se havia apossado deles de modo tão completo como ocorre, por exemplo, nos cenáculos literários onde todo mundo tem uma mesma forma de pronunciar, de enunciar e, consequentemente, de pensar -, certamente não é porque a originalidade seja mais profunda nos ambientes mundanos e neles oponha obstáculos à imitação. Mas a imitação tem como condições não só a ausência de uma originalidade irredutível, mas ainda uma finura relativa de ouvido, que permite discernir primeiro que se imita logo após. Ora, havia alguns Guermantes aos quais este senso musical faltava tão inteiramente como aos Courvoisiers. Para tomar como exemplo o exercício a que se denomina, numa outra acepção da palavra imitação, "fazer imitações" (o que se dizia na casa dos Guermantes, "fazer caricatura"), por mais que a Sra. de Guermantes fizesse admiravelmente, os Courvoisiers eram tão incapazes de se darem conta disso como se, em vez de homens e mulheres, fossem um bando de coelhos, pois nunca tinham sabido observar o defeito ou o acento que a duquesa cuidava de arremedar. Quando ela "imitava" o duque de Limoges os Courvoisiers protestavam:

- Oh, não! Ele não fala absolutamente desse jeito. Jantei com ele ainda ontem na casa de Bebeth, ele me falou a noite inteira, não falava assim -, ao passo que os Guermantes um tanto cultive dos exclamavam:
- Meu Deus, como Oriane é divertida! O mais forte é que enquanto o imita se parece com ele! Julgo ouvi-lo. Oriane, um pouco mais de Limoges! - 

     Ora, esses Guermantes (mesmo sem chegar aos que eram verdadeiramente notáveis, os quais, quando a duquesa imitava o duque de Limoges, diziam com admiração: 

"Ah, pode-se dizer que você o tem", ou "Como tu o tens", por mais que fossem faltosos de espírito, segundo a Sra.Guermantes (no que ela estava certa), à força de ouvir e de contar da duquesa, tinham chegado a imitar mais ou menos a sua maneira de se expressar, de julgar, aquilo a que Swann teria chamado, bem como a própria duquesa, sua maneira de "redigir", até o ponto de apresentar em sua conversação alguma coisa que para os Courvoisiers parecia incrivelmente idêntica ao espírito de Oriane e era considerada por eles como o espírito de Guermantes. Como esses Guermantes eram, para ela, não só parentes mas admiradores, Oriane (que mantinha bem afastado o resto da família e vingava-se agora com seus desdéns de todas as maldades que esta lhe fizera quando ela era solteira) ia visitá-los às vezes, e geralmente em companhia do duque, quando saía com ele no verão. Tais visitas eram um acontecimento. A princesa d'Épinay, que recebia em seu grande salão do andar térreo, sentia o coração bater-lhe mais vivamente ao avistar de longe, como os primeiros clarões de um incêndio inofensivo ou os "reconhecimentos" de uma invasão inesperada, atravessando lentamente e inclinando uma sombrinha, de onde jorrava um aroma de verão. 

- Olha, Oriane - dizia ela como um "alerta" que procurava advertir seus visitantes com prudência, e para que tivessem tempo de sair em ordem, que evacuassem os salões sem pânico. Metade dos presentes não ousava ficar, erguia-se. 
- Não? Por quê? Fiquem sentados, estou encantada em tê-los mais um pouquinho dizia a princesa com uma voz fingida, mas com aspecto desembaraçado e à vontade (para bancar a grande dama). - Vocês poderiam ter que se falar. - Verdade que têm pressa? Pois bem, irei à casa de vocês - respondia a dona da casa àquelas que não desgostava ver partir. O duque e a duquesa saudavam muito cortesmente pessoas que viam ali há muitos anos sem por isso conhecê-las mais, e que mal os cumprimentavam, por discrição. Logo que saíam, o duque amavelmente pedia informações a respeito delas, para dar a impressão de se interessar pela qualidade intrínseca das pessoas que ele não recebia devido à maldade do destino ou por causa do estado de nervos de Oriane, para quem fazia mal frequentar mulheres: 
- Quem era aquela senhora baixinha de chapéu cor-de-rosa? 
- Mas, meu primo, você a viu muitas vezes; é a viscondessa de Tours, nascida Lamarzelle. - Pois sabe que é bonita? Tem um ar inteligente; se não fosse um pequeno defeito no lábio superior, com certeza seria deslumbrante. Se existe um visconde de Tours, não deve aborrecer se. Oriane, sabe em quem me fizeram pensar as suas sobrancelhas e o implante de seus cabelos? Em sua prima, Hedwige de Ligne. - 

     A duquesa de Guermantes, que se aborrecia quando falavam da beleza de uma mulher que não ela, deixava cair a conversa. Não contara corrigir o gosto do marido em fazer ver que estava perfeitamente a par das pessoas a quem não recebia, pelo que julgava mostrar-se mais "sério" que a esposa.

- Mas - dizia de repente - com força você pronunciou o nome de Lamarzelle. Lembro-me de que, quando estava na Câmara, foi pronunciado um discurso absolutamente notável... - Era o tio da moça que você acabou de ver. 
- Ah, que talento! Não, minha pequena - dizia o duque- 

     A viscondessa de Égremont, que a Sra. de Guermantes não podia suportar que, não se arredando da casa da princesa d'Épinay, onde se abaixava, voluntariamente ao papel de criada (disposta a bater na sua, ao voltar para casa), ficava, confusa, desamparada, mas ficava quando o par ducal se achava ali, retirava os abrigos, tratava de fazer-se útil e por discrição se oferecia para passar à sala ao lado. 

- Não faça chá para nós, conversemos tranquilamente somos pessoas simples, sem cerimônias. Aliás - acrescentou, voltando-se para a Sra. d'Épinay (deixando a Égremont corada, humilde, ambiciosa e solícita) -, só podemos lhe dar um quarto de hora. -

     Esse quarto de hora era inteiramente ocupado com uma espécie de exposição das frases que a duquesa pronunciara durante a semana e que ela mesma certamente havia citado, mas que, muito habilmente, o duque, tendo o ar de censurá-la a propósito de incidentes que as tinham provocado, levava-a a dizê-las de novo como que involuntariamente.
     A princesa d'Épinay, que estimava a prima e sabia que ela possuía um fraco pelos cumprimentos, extasiava-se com seu chapéu, sua sombrinha, seu espírito.

- Fale-lhe de sua toalete o quanto quiser - dizia o duque no tom emburrado que adotara e que temperava com um sorriso malicioso para que não levassem a sério o seu descontentamento- mas é o nome do céu, não de seu espírito, pois eu passaria muito bem sem uma mulher tão inteligente. Provavelmente, vocês fazem alusão ao mau trocadilho que ela faz a respeito de meu irmão Palamede - acrescentou, sabendo muito bem que a princesa e o resto da família ignoravam ainda esse trocadilho, e encantado em valorizar sua mulher. - Primeiro, acho indigno de umas pessoa que diz às vezes, reconheço-o, coisas muito bonitas, fazer maus trocadilhos, mas sobretudo sobre meu irmão que é muito suscetível e, se isto tem como resultado ficar de mal com ele, vejam se na verdade valeria a pena! 
- Mas nós não sabemos! Um trocadilho de Oriane? Deve ser delicioso. Oh, conte-o. 
- Não, não - replicava o duque, ainda amuado embora sorridente -, estou feliz que vocês ainda não o conhecem. Falando sério, gosto muito do meu irmão. 
- Escute, Basin - dizia a duquesa, a quem chegara o momento, de replicar ao marido -, não sei por que você diz que isto pode aborrecer Palamede; sabe muito bem que é exatamente o contrário. Ele é suficientemente inteligente para se melindrar com esse gracejo estúpido que não tem nada de indelicado. Você está fazendo todos crerem que se trata de uma maldade que eu tenha dito; mas simplesmente respondi algo que não tem graça, e você é que lhe dá importância com a sua indignação. Não o compreendo. Você nos deixa terrivelmente intrigados. De que se trata? 
- Oh, evidentemente nada de grave! - exclamava o Sr. de Guermantes. - Talvez tenham ouvido dizer que meu irmão queria dar Brézé, o castelo de sua mulher, à sua irmã Marsantes. 
- Sim, mas disseram-nos que ela não o desejava, que não gostava da região em que ele se localizava, pois o clima não lhe convinha. 
- Pois bem; justamente alguém dizia tudo isso à minha mulher e que, se meu irmão dava esse castelo à nossa irmã, não seria para lhe causar prazer e sim para amofiná-la. ''É que é tão trocista," o Charlus, dizia essa pessoa. Ora, vocês sabem que Brézé é régio, pode valer vários milhões, é uma antiga terra do rei, e existe lá uma floresta, das mais belas da França. Há muitas pessoas que apreciariam lhes fizessem troças desse tipo. Assim, ao ouvir o termo de "taquin" aplicado a Charlus porque estava dando um castelo tão lindo, Oriane não pôde evitar de exclamar, involuntariamente, devo confessá-lo, ela não pôs maldade, pois aquilo veio rápido como um relâmpago: "Taquín... taquin... então é Taquin o Soberbo!" Vocês compreendem acrescentava, retomando seu aspecto emburrado e não sem ter lançado um olhar ao redor para avaliar o efeito produzido pelo espírito da mulher, pois o duque era bastante cético quanto ao conhecimento que a Sra. d'Épinay teria de história antiga -, vocês compreendem, é por causa de Tarquínio, o Soberbo, o rei de Roma; é estúpido, é um mau trocadilho, indigno de Oriane. E depois, eu que sou mais circunspecto que minha mulher, se possuo menos espírito, pelo menos penso nas consequências; se desgraçadamente repetirem isto ao meu irmão, seria uma coisa terrível! Tanto mais - acrescentou - que, como Palamede é mesmo muito altivo e também melindroso, muito dado aos mexericos, até fora da questão do castelo, é preciso reconhecer que Taquin o Soberbo lhe cai muito bem. O que salva os ditos de Madame é que, mesmo quando ela quer se rebaixar a trocadilhos vulgares, permanece espirituosa, apesar de tudo, e pinta muito bem as pessoas. 
     Assim, graças uma vez a Taquin o Soberbo, outra vez a uma outra frase, essas visitas do duque e da duquesa aos membros da família renovavam a provisão de histórias, e a emoção que elas causavam durava por muito tempo após a partida da mulher de espírito e de seu empresário. Primeiro, regalavam-se com os privilegiados que tinham estado na festa (ali pessoas que ali haviam ficado) com as frases que Oriane dissera.

- Não conheciam Taquin o Soberbo? - perguntava a princesa d'Épinay. 
- Sim - respondia corando a marquesa de Baveno -, a princesa de Sarsina-La Rochefoucauld já me falou nisso, mas não exatamente nos mesmos termos? Mas isto deve ter sido bem mais interessante de ouvir contar desse jeito diante de minha prima - acrescentava, como teria dito: ouvi-lo contar acompanhado pelo autor. - Nós falávamos da última da Oriane, que estava aqui há pouco diziam a uma visita que ficaria desolada por não ter vindo uma hora antes. 
- Como? Oriane estava aqui? 
- Claro que sim; se você tivesse chegado um pouco mais cedo - respondia a princesa d'Épinay, sem censura, mas dando a entender tudo aquilo que a desastrada perdera era por sua própria culpa que não assistira à criação do mundo ou à última representação de Madame Carvalho. 
- Que é que diz da última de Oriane? 

     Confesso apreciei muito o “Taquin, o Soberbo" e a frase ainda era comida fria no almoço do dia seguinte, entre os íntimos que eram convidados para isso, e reaparecia com diversos molhos durante a semana. Além disso, a princesa, fazendo naquela semana sua visita anual à princesa de Parma, aproveitou para perguntar à Alteza se ela conhecia o trocadilho, e contou-lhe. 

- Ah, Taquin o Soberbo - dizia é princesa de Parma, os olhos esbugalhados por uma admiração a priori, mal que implorava um suplemento de explicações a que não se recusava a princesa d'Épinay. - Confesso que Taquin o Soberbo me agrada infinitamente como redação concluía a princesa.

     Na realidade, o termo "redação" não convinha em absoluto a esse trocadilho, mas a princesa d'Epinay, que tinha a pretensão de haver assimilado o espírito dos Guermantes, tomara à Oriane as expressões "redigido, redação", usando-as sem muito discernimento.
     Ora, a princesa de Parma, que não gostava muito da princesa d'Épinay, a quem considerava feia, sabia ser avara, e julgava maldosa, dos Courvoisiers, reconheceu o vocábulo "redação", que ouvira ser pronunciado pela de Guermantes e que ela não saberia aplicar por si mesma. Teve, de fato, a impressão de que era a "redação" que fazia o encanto de Taquin o Soberbo e, sem esquecer de todo a sua antipatia pela dama feia, a avarenta, não pôde evitar um tal sentimento de admiração por uma moça que possuía a esse ponto o espírito dos Guermantes, que desejou convidar a princesa d'Épinay para a ópera. Susteve-a a ideia de que talvez fosse conveniente consultar primeiro a Sra. de Guermantes. Quanto à Sra. D'Épinay que, bem diferente dos Courvoisiers, fazia muitos obséquios a Oriane e a estimava, mas sentia-se enciumada pelas relações dela e agastada com os gracejos que a duquesa lhe diria diante de todos acerca de sua avareza, contou, ao chegar a casa, como a princesa de Parma custara a compreender Taquin o Soberbo e quanto era preciso que Oriane fosse esnobe para ter entre seus íntimos semelhante perua.

- Jamais teria podido frequentar a princesa de Parma, se o quisesse - disse ela aos amigos que tinha ao jantar - porque o Sr. d'Épinay não me permitiria nunca devido à sua imoralidade aludindo a certas libertinagens puramente imaginárias da Sra. de Parma. Porém, mesmo se eu tivesse um marido menos severo, confesso que o não poderia. Não sei como Oriane faz para vê-la constantemente. Quanto a mim, vou até lá uma vez ao ano e me custa muito chegar ao fim da visita. -  

     Quanto aos Courvoisiers que se encontravam na casa de Vinturnienne no momento da visita da Sra. de Guermantes, a chegada da duquesa em geral punha-os em fuga por causa da exasperação que lhes causavam os "salamaleques exagerados" que faziam para Oriane. Apenas um permaneceu no dia do "Taquin o Soberbo". Não compreendeu bem o gracejo, mas ainda assim pela metade, pois era pessoa instruída. E os Courvoisiers foram repetindo que Oriane chamara o tio Palamede de "Tarquínio o Soberbo", o que, segundo elas, pintava-o muito bem. 

- Mas por que inventar tantas histórias com Oriane? - acrescentavam. - Não fariam mais por uma rainha. Em suma, quem é Oriane? Não digo que os Guermantes não sejam de velha cepa, mas os Courvoisiers não lhes cedem a palma em nada, nem como ilustração, nem como antigüidade, nem como alianças. É preciso não esquecer que, no Camp du Drap d'or, como o rei da Inglaterra perguntasse a Francisco I qual era o mais nobre dos senhores ali presentes: "Sire, respondeu o rei da França, é o Courvoisier." -

continua na página 208...
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Volume 2
Volume 3
O Caminho de Guermantes (2a.Parte - muitos amigos da princesa sabiam)
Volume 7

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