segunda-feira, 11 de agosto de 2025

Marcel Proust - O Caminho de Guermantes (2a.Parte - Entretanto, eu olhava para Robert)

em busca do tempo perdido

volume III
O Caminho de Guermantes

Segunda Parte

Capítulo Segundo

     Entretanto, eu olhava para Robert e pensava numa coisa. Havia nesse café, e conhecera eu na vida, muitos estrangeiros, intelectuais, artistas de todo tipo, resignados ao riso que provocavam a sua capa pretensiosa, suas gravatas à 1830 e, bem mais ainda, seus movimentos desajeitados chegando mesmo a provocar esse riso para mostrar que não se preocupavam com essas coisas, e que eram pessoas de real valor intelectual e moral e de profunda sensibilidade. Desagradavam os judeus principalmente, os judeus não assimilados bem entendido, não era o caso dos outros; às pessoas que não podem suportar uma aparência estranha, adoidados (como Bloch a Albertine). Geralmente, logo se reconhecia que, se tinham contra si os cabelos muito compridos, o nariz e os olhos grandes demais; os gestos bruscos e teatrais, seria pueril julgá-los por isso, pois tinham muito talento e coração e, sob esse aspecto, eram pessoas de quem se poderia gostar profundamente. Quanto aos judeus em particular, eram poucos aqueles cujos pais não fossem de uma generosidade de coração, de uma largueza de espírito, de uma sinceridade que, em comparação, a mãe de Saint-Loup - e o duque de Guermantes fariam reles figura moral devido à sua secura; sua religiosidade superficial, que bradava apenas contra os escândalos, sua apologia familiar de um cristianismo que findava infalivelmente (pelas vias imprevistas da inteligência estimada com exclusividade) num colossal casamento por dinheiro. Mas, enfim, no caso de Saint-Loup, fosse qual fosse o modo como os defeitos dos pais se combinassem numa criação nova de qualidades, reinava a mais atraente abertura de espírito e de coração. E então - é preciso dizê-lo para a glória imortal da França, quando tais qualidades se encontram num francês puro, seja da aristocracia ou do povo, elas florescem; seria muito dizer que se desvanecem, pois a medida e a restrição nelas persistem com uma graça que o estrangeiro, por mais estimável que seja, não nos apresenta. É claro que os outros também possuem qualidades intelectuais e morais, e, se é obrigatório atravessar primeiro o que desagrada, o que choca e o que faz sorrir, não são menos preciosas.
     Mas de qualquer modo é uma bela coisa, talvez exclusivamente francesa, que o que é belo a critério da equidade, o que vale segundo o espírito e o coração, seja primeiro um encanto para os olhos, colorido com graça, cinzelado com justeza, realize igualmente na sua matéria e em sua forma a perfeição interior. Eu olhava para Saint-Loup e dizia comigo que era uma bela coisa quando não há desgraça física para servir de vestíbulo às graças interiores, e que as asas do nariz são delicadas e de um desenho perfeito como as asas das borboletinhas que pousam nas flores das campinas, nos arredores de Combray; e que o verdadeiro opus francigenum, cujo segredo não se perdeu desde o século XIII e que não pereceria com as nossas igrejas, não são tanto os anjos de pedra de Saint-André-des-Champs como os pequenos franceses, nobres, burgueses ou campesinos, de rosto esculpido com aquela delicadeza e sinceridade, que permaneceram tão tradicionais como no pórtico famoso, mas ainda criadoras.
     Depois de ter se afastado por um instante para vigiar ele próprio o fechamento da porta e a encomenda do jantar (insistiu muito para que pedíssemos carne de vaca, pois as de galinha sem dúvida não estavam muito boas), o dono do estabelecimento voltou para nos dizer que o Senhor príncipe de Foix gostaria que o Senhor marquês lhe permitisse vir jantar numa mesa perto. 

- Mas elas estão todas ocupadas - respondeu Robert, vendo as mesas que bloqueavam a minha. 
- Quanto a isso, não quer dizer nada - retrucou o patrão -; se for agradável ao senhor marquês, ser-me-ia bem fácil pedir a essas pessoas que mudassem de lugar. São coisas que é possível fazer pelo Senhor marquês! 
- Mas quem decide és tu - disse-me Saint-Loup - Foix é um bom rapaz, não sei se te aborrecerá. É menos idiota que muitos. -

     Respondi a Robert que certamente ele me agradaria, mas que, como na ocasião estava jantando com ele e sentia-me muito feliz por isso, gostaria que estivéssemos a sós. 

- Ah, o Senhor príncipe tem uma capa muito bonita - disse o patrão enquanto nós deliberávamos. 
- Sim, conheço-a - respondeu Saint-Loup.

     Eu queria contar a Robert que o Sr. de Charlus fingira para a cunhada que não me conhecia e lhe perguntar qual poderia ser o motivo dessa dissimulação, mas fui impedido pela chegada do Sr. de Foix. Tendo vindo para saber se o seu pedido fora aceito, percebemos que estava parado a dois passos de nós. Robert nos apresentou, mas não escondeu ao amigo que, tendo de conversar comigo, preferia que nos deixasse em paz. O príncipe se afastou, acrescentando à saudação de despedidas que me fez um sorriso que designava Saint-Loup e parecia desculpar-se, com a decisão deste, por uma apresentação breve que desejaria mais longa. Mas nesse momento Robert, parecendo tocado por uma ideia súbita; afastou-se com seu camarada, depois de me haver dito: 

- Fica sentado e começa a jantar, que já volto - e desapareceu na salinha.

     Aborreci-me ao ouvir os jovens chiques, a quem não conhecia, contarem as histórias mais ridículas e maledicentes sobre o jovem grão-duque herdeiro de Luxemburgo (ex-conde de Nassau), que me conhecera em Balbec e dera provas bastante delicadas de simpatia durante a doença de minha avó. Um pretendia que ele dissera à duquesa de Guermantes: 

- Exijo que todos se levantem quando minha mulher passar e que a duquesa teria respondido (o que não apenas era desprovido de espírito, mas de exatidão, visto que a avó da jovem princesa fora sempre a mulher mais honesta do mundo): 
- Se é preciso que a gente se levante quando passar a tua mulher, isso era diferente no caso da avó dela, pois com ela os homens se deitavam. -

     Depois tagarelavam que, tendo ido visitar naquele ano, em Balbec, sua tia a princesa de Luxemburgo, e tendo parado no Grande Hotel, queixara-se ao gerente (meu amigo) de que não tinham hasteado a flâmula de Luxemburgo por sobre o molhe. Ora, essa flâmula era menos conhecida e de menos emprego que as bandeiras da Inglaterra ou da Itália, e foram necessários vários dias para conseguirem uma, para vivo descontentamento do jovem grão-duque. Não acreditei numa só palavra dessa história, mas prometi a mim mesmo, que quando fosse a Balbec, interrogar o gerente do hotel de modo a ter certeza de que era pura invenção.
     À espera de Saint-Loup, pedi ao dono do restaurante que me trouxesse pão. 

- Imediatamente, senhor barão - disse ele, solícito. 
- Não sou barão - respondi com ar de tristeza em vez de rir. 
- Oh, perdão, senhor conde!

     À espera de Saint-Loup, pedi ao dono do restaurante que me trouxesse pão. 

- Imediatamente, senhor barão - disse ele, solícito.
- Não sou barão - respondi com ar de tristeza em vez de rir.  
- Oh, perdão, senhor conde! 

     Não tive tempo de fazer ouvir um segundo protesto, depois do qual certamente me tornaria "Senhor marquês", pois tão depressa como anunciara, Saint-Loup reapareceu na entrada, tendo à mão a grande vicunha do príncipe, pelo que compreendi que ele a havia pedido me manter abrigado. Fez-me de longe um sinal para que eu não me levantasse, avançou; seria preciso avançar mais a minha mesa ou que eu trocasse de lugar para que ele pudesse sentar-se. Logo que entrou na grande sala, Saint-Loup subiu rapidamente para as banquetas de veludo que faziam a volta ao longo da parede e onde, além de mim, estavam sentados apenas três ou quatro rapazes do Jockey, conhecidos dele, que não tinham encontrado lugar na salinha. Entre as mesas, estavam estendidos fios elétricos a uma certa altura; sem se embaraçar com eles, Saint Loup saltou-se com destreza, como um cavalo de corrida por sobre um obstáculo; confuso porque ele se desempenhava assim unicamente por minha causa e com o objetivo de evitar-me um movimento bem simples, eu estava ao mesmo tempo maravilhado com a segurança com que meu amigo cumpria aquele exercício de acrobacia; e não era o único; pois, ainda que o tivessem mediocremente apreciado caso partisse de um freguês menos aristocrático e menos generoso, o dono e os garçons se mostravam fascinados como conhecedores na pesagem; um garçom, como que paralisado, ficara imóvel com um prato que os convivas ao lado esperavam; e, quando Saint Loup, tendo que passar por trás de seus amigos, grimpou sobre o rebordo do encosto, onde avançou equilibrando-se, romperam discretos aplausos no fundo da sala. Enfim, tendo chegado onde eu estava, estacou de súbito com a precisão de um chefe diante da tribuna de um soberano e, inclinando-se, estendeu-me com ar de cortesia e submissão a capa de vicunha, que logo após, estando sentado a meu lado, sem que eu tivesse de fazer um só movimento, arrumou sobre minhas espáduas, como um xale quente e leve. 

- Olha, antes que me esqueça - disse Robert -, meu tio Charlus tem algo para te dizer. Prometi que te levaria à casa dele amanhã à noite. 
- Ia justamente falar nele. Mas amanhã à noite vou jantar na casa da tua tia Guermantes. 
- Sim, há uma tremenda comilança amanhã na casa de Oriane. Não estou convidado. Mas meu tio Palamede gostaria que lá não fosses. Não podes te desconvidar? Em todo caso, vai à casa do tio Palamede depois. Creio que ele faz questão de te ver. Vejamos, podes muito bem estar lá às onze horas. Onze horas, não te esqueças, encarrego-me de avisá-lo. Ele é muito suscetível. Se não fores, vai embirrar contigo. Sempre terminam cedo na casa de Oriane. Aliás, preciso falar com Oriane por causa do meu posto em Marrocos, de onde gostaria de me transferir. Ela é tão gentil para essas coisas e consegue tudo com o general de Saint-Josep, de quem depende isso. Mas não lhe fale neste assunto. Já me dirigi à princesa de Parma; as coisas correrão por si mesmas. Ah, o Marrocos é muito interessante. Teria muito o que te falar sobre ele. Há pessoas muito finas por lá. Sente-se a igualdade da inteligência. 
- Não achas que os alemães podem ir à guerra por causa disso? 
- Não; aquilo os aborrece, e no fundo é muito justo. Mas o imperador é pacífico. Os alemães estão sempre nos fazendo acreditar que desejam a guerra para nos forçar a ceder. Confira o pôquer. O príncipe de Mônaco, agente de Guilherme II, vem dizer-nos confidencialmente que a Alemanha se lançará sobre nós se não cedermos. Então cedemos. Mas, se não cedêssemos, não haveria nenhum tipo de guerra. Basta pensares que coisa cósmica seria uma guerra hoje. Seria mais catastrófica do que Crepúsculo dos Deuses, apenas duraria menos tempo.

     Falou-me da amizade, da predileção, da nostalgia (muito embora, todos os viajantes do seu tipo, fosse partir outra vez no dia seguinte, em alguns meses, que devia passar no campo, e devesse voltar só durante quarenta e oito horas a Paris, antes de voltar a Marrocos, ou a outra parte; as palavras que assim lançou no calor do coração que eu tinha naquela noite acendiam neste um suave devaneio. Nossas raras conversações íntimas, e sobretudo esta, desde então fizeram época na minha memória tanto para ele, como para mim, esta foi a noite da amizade.
     No entanto, a que eu entendia naquele momento (e, devido a isso, não sem algum remorso) não era de modo nenhum, como temia, a que lhe agradaria inspirar. Ainda repleto de prazer que tinha tido ao vê-lo avançar em ligeiro galope e atingir graciosamente a meta, sentia que esse prazer decorria de que cada um dos movimentos desenrolados ao longo da parede, sobre a banqueta, tinha o seu significado, sua causa, na natureza individual talvez do próprio Saint-Loup; porém mais ainda naquela que, por nascimento e educação, havia herdado de sua raça. Uma certeza de gosto na ordem, não do belo, mas das maneiras, e que em presença de uma nova circunstância fazia com que o homem elegante apreendesse logo como no caso de um músico a quem pedem que toque um trecho musical que desconhece o sentimento, o movimento que a circunstância reclama, e a ela adaptar o mecanismo, a técnica que melhor lhe convém, permitindo depois a esse gosto agir sem o freio de nenhuma outra consideração, que teria paralisado a tantos jovens burgueses, não só pelo receio de parecerem ridículos aos olhos dos outros) faltando às conveniências, como de serem julgados solícitos em excesso aos de seus amigos, e que em Robert era substituído por um desdém que certamente ele jamais experimentara no coração, mas que recebera por herança em seu corpo, submetendo os modos de seus ancestrais a uma familiaridade que eles achavam não poder senão encantar e lisonjear aquele a quem ela se dirigia; enfim, uma nobre liberalidade que, não levando em conta tantas vantagens materiais (os gastos em profusão naquele restaurante tinham acabado por fazer dele, aqui como em outros locais, o freguês mais em moda e o grande favorito, situação que acentuava a solicitude para com ele, não só dos empregados da casa mas também de toda a juventude mais brilhante), fazia-o espezinhá-las, como aquelas banquetas de púrpura efetiva e simbolicamente pisoteadas, semelhantes a um caminho suntuoso que só agradava ao meu amigo na medida em que lhe permitia vir até mim com mais graça e rapidez; tais eram as qualidades, todas essenciais à aristocracia, que, por trás daquele corpo, não opaco e obscuro como teria sido o meu, mas límpido e significativo, transpareciam como, através de uma obra de arte, a força industriosa e eficiente que a criou, e tomavam os movimentos daquela corrida ligeira que Robert desenvolvera ao longo da parede, tão inteligíveis e cativantes como os dos cavaleiros esculpidos num friso.

"Ah! -teria pensado Robert -, vale a pena que eu tenha passado a juventude a desprezar meu nascimento, a enaltecer unicamente a justiça e o espírito, a escolher, fora dos amigos que me eram impostos, companheiros canhestros e mal vestidos, se possuíam eloquência, para que o único ser que aparecesse em mim, de que guardem preciosa lembrança, seja não aquele que a minha vontade, esforçando-se e merecendo, moldou à minha semelhança, mas um ser que não é obra minha, que nem mesmo sou eu, que sempre desprezei e busquei vencer? Vale a pena que eu tenha amado meu amigo preferido como amei, para que o maior prazer que ele ache em mim seja o de descobrir algo de muito mais geral que eu próprio, um prazer que não é absolutamente, como ele diz e não pode sinceramente crê-lo, um prazer de amizade, mas um prazer intelectual e desinteressado, uma espécie de prazer de arte?" Eis o que hoje temo que Saint-Loup haja pensado algumas vezes. Ele se enganou neste caso.
     Se não tivesse amado, como o fez, alguma coisa mais elevada que a elasticidade inata de seu corpo, se não estivesse, desde tanto tempo, isolado do orgulho nobiliárquico, haveria mais aplicação e pesadume na sua própria agilidade, uma vulgaridade importante em suas maneiras. Como à Sra. de Villeparisis fora preciso muita seriedade para que ela conferisse à sua conversação e suas memórias o sentimento da frivolidade, que é intelectual, assim também, para que o corpo de Saint-Loup fosse habitado por tanta aristocracia, seria preciso que esta houvesse desertado de seu pensamento, levantado para os mais altos fins e, reabsorvida em seu corpo, nele se fixasse em linhas nobres e inconscientes. Por isso a sua distinção de espírito não era destacada de uma distinção física, que não seria completa se faltasse a primeira.
     Um artista não tem necessidade de exprimir diretamente seu pensamento em sua obra para que esta lhe reflita a qualidade; pode-se dizer até que o louvor mais alto de Deus está na negação do ateu, que acha a criação perfeita o bastante para prescindir de um criador. E bem sabia eu, também, que não era somente uma obra de arte o que admirava nesse jovem cavaleiro, desenrolando ao longo da parede o friso de sua corrida; o jovem príncipe (descendente de Catherine de Foix, rainha de Navarra e neta de Carlos VII), que ele acabava de deixar em meu benefício, a situação de nascimento e de fortuna que ele inclinava diante de mim, os ancestrais desdenhosos e desenvoltos que sobreviviam na segurança, na agilidade e na polidez com as quais acabava de dispor em torno a meu corpo friorento a capa de vicunha, tudo isso não seria como amigo mais antigo do que eu em sua vida, pelos quais eu julgaria devêssemos estar sempre separados, e que, ao contrário, ele os sacrificava a mim devido a uma escolha que só se pode fazer nas alturas da inteligência, com aquela liberdade soberana de que os movimentos de Robert eram a imagem e na qual se realiza a amizade perfeita? Do que a familiaridade de um Guermantes em lugar da distinção que tinha em Robert, porque nele o desdém hereditário não passava de roupagem, transformada em graça inconsciente, de uma verdadeira humildade moral - houvesse revelado de soberba vulgar, eu pudera conscientizá-lo, não no Sr. de Charlus, em quem os defeitos de caráter que até então não compreendia bem se haviam superposto aos hábitos aristocráticos, mas no duque de Guermantes. No entanto, também este, no conjunto vulgar que tanto desagradara à minha avó, quando o conhecera antigamente na casa da Sra. de Villeparisis, oferecia partes de grandeza antiga e que me foram sensíveis quando fui jantar em sua casa, no dia seguinte à noitada que passei com Saint-Loup.
     Não me haviam aparecido, nem nele nem na duquesa, quando os vira pela primeira vez em casa de sua tia, assim como também não vira no primeiro dia as diferenças que separavam a Berma de suas companheiras, ainda que nesta as particularidades fossem infinitamente mais captáveis do que nas pessoas da sociedade, visto que se tornam mais marcantes à medida que os objetos são mais reais, mais concebíveis pela inteligência. Mas enfim, por mais leves que sejam as nuanças sociais (e ao ponto que, quando um pintor verídico feito Sainte-Beuve quer assinalar sucessivamente as nuanças existentes entre os salões da Sra. Geoffrin, da Sra. Récamier e dá Sra. de Boigne, eles surgem todos tão semelhantes que a principal verdade que, contra a vontade do autor, ressalta de seus estudos, é a nulidade da vida de salão), entretanto, em virtude do mesmo motivo que em relação a Berma, quando os Guermantes se me tornaram indiferentes, e a gotinha dá sua originalidade não mais foi vaporizada pela minha imaginação, pude recolhê-la, por imponderável que fosse.
     Não tendo a duquesa me falado do marido, na recepção em casa de sua tia, eu me indagava se, com os rumores de divórcio que corriam ele compareceria ao jantar.
     Mas logo me inteirei completamente, pois, entre os lacaios que se mantinham de pé na antecâmara e que (visto que então deviam considerar-me um pouco feito os filhos do ebanista, isto é, talvez com mais simpatia do que a seu patrão, mas como incapaz de ser recebido em casa dele) deviam especular sobre as causas dessa revolução, vi deslizar o Sr. de Guermantes, que vigiava a minha chegada para me receber à porta e me tirar ele próprio o meu sobretudo. 

- A Sra. de Guermantes vai ficar satisfeitíssima - disse-me num tom habilmente persuasivo. Permita-me que o livre de seus trastes (achava a um tempo bonachão e cômico falar a linguagem do povo). Minha mulher temia um pouco uma deserção de sua parte, embora o senhor nos tivesse reservado o dia. Desde hoje de manhã dizíamos um ao outro: "Verá como ele não vem." Devo dizer que a Sra. de Guermantes estava mais certa do que eu. Não é fácil contar com o senhor, e eu estava convencido de que nos faltaria com a palavra.

     O duque era tão mau marido, tão brutal até, conforme diziam, que a gente lhe era grato, como se é grato aos malvados por sua doçura, por essas palavras "Senhora de Guermantes", com as quais dava a impressão de estender sobre a duquesa uma asa protetora para que formasse um todo só com ele. Entrementes, tomando-me familiarmente pela mão, assumiu o dever de me guiar e introduzir nos salões. Essa ou aquela expressão corrente pode agradar na boca de um camponês, caso mostre a sobrevivência de uma tradição local, o vestígio de um acontecimento histórico, talvez ignorados daquele que lhes faz alusão; da mesma forma, aquela cortesia do Sr. de Guermantes, e que ele iria me testemunhar durante toda a reunião, encantou me como um resto de hábitos várias vezes seculares, hábitos em especial do século XVII. As pessoas dos tempos antigos nos parecem infinitamente longe de nós. Não nos animamos a supor lhes intenções profundas além do que expressam formalmente; ficamos espantados quando encontramos um sentimento mais ou menos idêntico ao que experimentamos em um herói de Homero ou numa engenhosa e fingida tática de Aníbal durante a batalha de Canas, quando ele deixou seu flanco ser invadido para envolver o adversário de surpresa; dir-se-ia que nos representamos o poeta épico e o general tão afastados de nós como um animal visto no jardim zoológico. O mesmo se dá com certos personagens da corte de Luís XIV, quando encontramos sinais de cortesia nas cartas escritas por eles a algum homem de categoria inferior e que não lhes pode ser útil em nada; tais cartas nos deixam surpresos, pois nos revelam de súbito, entre os grãos-senhores, todo um universo de crenças que eles jamais exprimiam diretamente, ruas que os governavam, e em especial a crença de que é preciso, por delicadeza, fingir certos sentimentos e exercer com o maior escrúpulo determinadas funções de amabilidade.
     Este afastamento imaginário do passado é talvez um dos motivos que permitem compreender que até mesmo grandes escritores tenham achado uma beleza genial nas obras de medíocres mistificadores como Ossiaçu. Sentimo-nos tão espantados de que bardos longínquos possam ter ideias modernas, que nos maravilhamos se, no que julgamos ser um velho canto gaélico, encontramos uma ideia que só teríamos considerado engenhosa num contemporâneo. Um tradutor talentoso não tem mais que acrescentar a um autor antigo que ele reconstitui com maior ou menor fidelidade, exceto que, assinados por um nome contemporâneo e publicados à parte, pareceriam apenas agradáveis: e logo atribui uma comovedora grandeza ao seu poeta que, desse modo, dedilha o teclado de vários séculos. Esse tradutor só seria capaz de escrever um livro medíocre, se tal livro fosse publicado como um original seu. Dado como sendo tradução, parece uma obra-prior. O passado não só não é fugaz como também permanece parado. Só meses após o começo de uma guerra é que as leis votadas sem pressa podem agir eficazmente sobre ela; é apenas uns quinze anos depois de um crime, que permanecia obscuro, que um magistrado pode ainda encontrar elementos que servirão para esclarecê-lo; depois de séculos e séculos, o sábio que estuda, numa região longínqua, a toponímia e os costumes dos habitantes poderá ainda colher entre eles uma determinada lenda, anterior ao cristianismo e já incompreendida, se não mesmo esquecida, nos tempos de Heródoto e que, no apelativo dado a uma rocha, num rito religioso, permanece no meio do presente como uma emanação mais densa, estável, imemorial. Também havia uma emanação da vida da corte, bem menos antiga, se não nas maneiras frequentemente vulgares do Sr. de Guermantes pelo menos no espírito que as dirigia. Eu deveria apreciá-la ainda, como um aroma antigo, quando o encontrei um pouco mais tarde no salão, pois nos fora até lá de imediato. Deixando o vestíbulo, eu dissera ao Sr. de Guermantes que desejava muito ver os seus Elstirs. 

- Estou às suas ordens. Então, o Sr. Elstir é um de seus amigos? Estou muito penalizado, pois conheço-o um pouco, é um homem amável, o que os nossos pais chamavam um bom homem; eu deveria ter-lhe pedido que me fizesse a fineza de vir e convidá-lo para jantar. Ele certamente ficaria muito lisonjeado por passar a noite em sua companhia. -

     Muito pouco ancien régime, quando assim se esforçava por sê-lo; o duque voltava a sê-lo em seguida, sem querer. Tendo indagado se desejava que me mostrasse esses quadros, conduziu-me afastando-se graciosamente diante de cada porta, desculpando-se quando, para me mostrar o outro, era obrigado a passar adiante, pequena encenação que, desde os tempos em que Saint-Simon narra que um antepassado dos Guermantes, deu as honras do palácio com os mesmos escrúpulos no cumprimento dos deveres frívolos do gentil-homem devia, antes de chegar até nós, ter sido representada por muitos outros Guermantes para muitas outras visitas. E, como eu dissera ao duque preferir ficar a sós diante dos quadros por um momento, ele se afastou discretamente dizendo que o encontrasse mais tarde no salão.

continua na página 187...
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