terça-feira, 5 de agosto de 2025

Hannah Arendt - Origens do Totalitarismo: Parte II Imperialismo (1.1 - A Expansão e o Estado-Nação)

Origens do Totalitarismo

Hannah Arendt

Parte II 
IMPERIALISMO

Se eu pudesse, anexaria os planetas. 
Cecil Rhodes 

1. A Emancipação Política da Burguesia

     1.1 - A Expansão e o Estado-Nação
          "A expansão é tudo", disse Cecil Rhodes, deprimido ao ver no céu "essas estrelas (...) esses vastos mundos que nunca poderemos atingir. Se eu pudesse, anexaria os planetas".[2] Em menos de duas décadas, as possessões coloniais britânicas cresceram em 11,5 milhões de km2 e 66 milhões de habitantes, a França ganhou 9 milhões de km2e 26 milhões de pessoas, os alemães formaram um novo império com 13 milhões de nativos, e a Bélgica adquiriu 2,5 milhões de km2 com uma população de 8,5 milhões [3]. No entanto, num rasgo de sabedoria, Rhodes reconhecia ao mesmo tempo a inerente loucura dessa época e a sua contradição com a natureza humana. Naturalmente, nem essa sabedoria nem a tristeza dela decorrente alteraram o seu modo de agir. A ele pouco importavam esses rasgos de clarividência que o levavam muito além da capacidade normal de um comerciante ambicioso com fortes tendências de megalomania.  
     "A política mundial é para uma nação o que a megalomania é para um indivíduo",[4] disse no mesmo momento Eugen Richter, líder do Partido Progressista alemão. Mas a sua oposição no Reichstag à proposta de Bismarck de ajudar as companhias particulares a instalarem entrepostos marítimos e de comércio no ultramar demonstrou claramente que ele não conhecia as necessidades econômicas de uma nação burguesa daquela época. Parecia que aqueles que se opunham ou ignoravam o imperialismo — como Eugen Richter na Alemanha, Gladstone na Inglaterra, ou Clemenceau na França — haviam perdido contato com a realidade e não compreendiam que o comércio e a economia haviam envolvido todas as nações, atrelando-as à política mundial. O princípio nacionalista conduzia à ignorância provinciana, e a luta contra a loucura estava perdida.
     A oposição dos estadistas à expansão imperialista gerava, ao lado da moderação, a confusão política. Em 1871 Bismarck rejeitou a oferta de possessões francesas na África em troca da Alsácia-Lorena, e vinte anos mais tarde adquiriu da Grã-Bretanha a pequena ilha de Heligoland, em troca de Uganda, Zanzibar e Vitu — dois reinos por um banho de mar, como os imperialistas alemães lhe disseram, não sem razão. E foi assim que, na década de 80 do século XIX, Clemenceau se opôs aos imperialistas da França quando quiseram enviar uma força expedicionária contra os ingleses no Egito, e trinta anos mais tarde cedeu à Inglaterra os campos de petróleo do Mossul em troca da aliança anglo-francesa. E foi por atitudes parecidas que Gladstone foi denunciado por Cromer como "um homem a quem os destinos do Império Britânico não podem ser confiados com segurança".
     Não era sem motivo que os estadistas — homens que pensavam primariamente em termos do território nacional estabelecido — desconfiavam do imperialismo, mas este superava o que eles chamavam simploriamente de "aventuras de ultramar". Sabiam, mais por instinto que por discernimento, que esse movimento de expansão, no qual "o patriotismo (...) se mede mais pelos lucros" (Huebbe-Schleiden) e a bandeira nacional é um "trunfo econômico" (Rhodes), só podia destruir o corpo político do Estado-nação. A conquista de novas terras e a fundação de um império eram alvos que haviam perdido a respeitabilidade por motivos muito sólidos. Foram realizadas com êxito por governos que, como o da República Romana, eram primariamente baseados na lei, de modo que a conquista podia levar à integração de povos heterogêneos graças à imposição de uma lei comum. Contudo, baseado no ativo consentimento (le plebiscite de tous lesjours [5]) dado ao governo pela população homogênea o Estado-nação ignorava esse princípio unificador e, em caso de conquista, teria de assimilar e não integrar, impor o consentimento e não a justiça, degenerando assim em tirania. Já Robespierre sabia disso muito bem quando exclamou: Périssent les colonies si elles nous coutent 1'honneur, Ia liberte. [Morram as colônias se elas nos custam a honra e a liberdade.]
     A expansão como objetivo permanente e supremo da política é a ideia central do imperialismo. Não implica a pilhagem temporária nem a assimilação duradoura, características da conquista. Parecia um conceito inteiramente novo na longa história do pensamento e ação políticos, embora na realidade não fosse um conceito político, mas econômico, já que a expansão visa ao permanente crescimento da produção industrial e das transações comerciais, alvos supremos do século XIX. Na esfera econômica, a expansão correspondia ao crescimento industrial — realidade desejada e exequível, porquanto a expansão significava o aumento da produção de bens a serem consumidos. O processo de produção é tão ilimitado quanto a capacidade do homem de organizar, produzir, fornecer e consumir. Quando se reduzem a produção e o crescimento econômico, as causas são mais políticas do que econômicas, já que a produção depende de muitos povos diferentes, organizados em corpos políticos diversos que produzem e consomem de maneira incontrolavelmente desigual.
     O imperialismo surgiu quando a classe detentora da produção capitalista rejeitou as fronteiras nacionais como barreira à expansão econômica. A burguesia ingressou na política por necessidade econômica: como não desejava abandonar o sistema capitalista, cuja lei básica é o constante crescimento econômico, a burguesia tinha de impor essa lei aos governos, para que a expansão se tornasse o objetivo final da política externa.
     Com o lema "expansão por amor à expansão", a burguesia tentou — e parcialmente conseguiu — persuadir os governos nacionais a enveredarem pelo caminho da política mundial. Durante algum tempo, a política proposta parecia ter limites e equilíbrios decorrentes da simultaneidade da competição expansionista entre as nações. Em sua fase inicial, o imperialismo podia ainda ser descrito como uma luta de "impérios em concorrência", diferente "da ideia de império no mundo antigo e medieval, [que] era a de federação de Estados, sob uma hegemonia, cobrindo (...) todo o mundo conhecido". [6] Mas, de acordo com o princípio nacional ainda em voga, a humanidade constituía uma família de nações que disputavam a primazia e entre as quais a competição estabilizaria automaticamente seus limites antes que um competidor se impusesse sobre os demais. Esse feliz equilíbrio, no entanto, certamente não correspondia ao inevitável resultado de misteriosas leis econômicas; antes, dependia de instituições políticas e, ainda mais, de instituições policiais que não permitiam aos concorrentes o uso de revólveres. Dificilmente se pode compreender como a concorrência entre empresas comerciais — impérios — armadas até os dentes terminasse de outro modo que não a vitória para uma e morte para as outras. Em outras palavras, a concorrência — como a expansão — não é um princípio político: ambas se baseiam em força política.
     Contrariamente à estrutura econômica, a estrutura política não pode expandir-se infinitamente, porque não se baseia na produtividade do homem, que é de certo modo ilimitada, pelo menos teoricamente. De todas as formas de governo e organização de povos, o Estado-nação é a que menos se presta ao crescimento ilimitado, porque a sua base, que é o consentimento genuíno da nação, não pode ser distendida além do próprio grupo nacional, dificilmente conseguindo o apoio dos povos conquistados. Nenhum Estado-nação pode, em sã consciência, tentar conquistar povos estrangeiros, a não ser que essa consciência advenha da convicção que a nação conquistadora tem de estar impondo uma lei superior —• a sua — a um povo de bárbaros. [7] A nação, porém, concebe as leis como produto da sua substância nacional que é única, e não é válida além dos limites do seu próprio território, não correspondendo aos valores e anseios dos outros povos.
     Sempre que o Estado-nação surgia como conquistador, despertava a consciência nacional e o desejo de soberania no povo conquistado, criando com esse ato um obstáculo para a execução da sua tentativa de construir um império. Assim foi que os franceses incorporaram a Argélia como província da nação-mãe, sem jamais conseguirem impor suas leis a um povo diferente. Ao contrário, acabaram respeitando a lei muçulmana e concedendo status especial aos cidadãos árabes nominalmente franceses, o que produzia a híbrida insensatez de um território juridicamente francês, que por lei era tão parte da França quanto o Département de la Seine, mas cujos habitantes, supostamente cidadãos franceses, não eram cidadãos franceses, pois adquiriram a consciência da sua diferenciação nacional quando a perderam legalmente, por imposição.
     Os antigos "fundadores de impérios" britânicos, confiando na conquista como método permanente de domínio, jamais conseguiram incorporar à vasta estrutura do Império Britânico ou da Comunidade Britânica de Nações os seus vizinhos mais próximos, os irlandeses. Essa mais antiga "possessão" denunciou unilateralmente sua condição de domínio (em 1937) e rompeu todos os laços com a nação inglesa quando se recusou a participar da guerra. A conquista permanente — o fato de a Inglaterra ter "simplesmente deixado de destruir" a Irlanda (Chesterton) — despertou muito menos "o gênio do imperialismo" [8] nos ingleses do que havia despertado nos irlandeses o espírito de resistência nacional.
     A estrutura nacional do Reino Unido tornara impossível a pronta assimilação e incorporação dos povos conquistados; a Comunidade Britânica nunca foi — apesar do nome — uma "Comunidade de Nações", mas sim um herdeiro multiterritorial do Reino Unido, em que os ingleses quiseram ver uma só nação espalhada pelo mundo. A dispersão e a colonização transplantavam, sem expandi-la, a estrutura política. Os ingleses visavam ligar por meio de leis comuns as nações membros do novo corpo federado ao seu país natal. Mas o exemplo irlandês mostra quão despreparado estava o Reino Unido para criar uma estrutura imperial na qual muitos povos diferentes pudessem viver juntos a contento. [9] A nação britânica revelou desconhecer a arte romana de criar um império, embora cultivasse o modelo grego de colonização. Em lugar de conquistar povos estrangeiros impondo lhes a sua lei, os colonizadores ingleses estabeleciam-se nos territórios recém-conquistados mas, onde quer que estivessem, nos quatro cantos do mundo, permaneciam membros da mesma nação britânica. [10] A estrutura federativa da Comunidade, admiravelmente baseada — em teoria — na realidade de uma nação espalhada sobre a terra, não foi suficientemente adequada para aceitar povos permanentemente não-britânicos como "sócios da empresa", igualmente habilitados para geri-la. A condição de Domínio da índia, absolutamente rejeitada pelos nacionalistas indianos ainda durante a Segunda Guerra Mundial, foi considerada apenas uma solução temporária e transitória. [11]
     A inerente contradição entre o corpo político da nação e a conquista como mecanismo político tornou-se óbvia desde o fracasso do sonho napoleônico. Foi devido a essa experiência, e não por motivos humanitários, que a conquista foi desde então condenada como método de ação do Estado-nação, passando a ter importância insignificante mesmo no ajuste de conflitos fronteiriços. O fracasso de Napoleão na tentativa de unir a Europa sob a bandeira francesa indicou que a conquista leva o povo conquistado ao despertar da sua consciência nacional e à consequente rebelião contra o conquistador ou à tirania deste. E, embora a tirania, por não necessitar de consentimento, possa dominar com sucesso povos estrangeiros, só pode permanecer como forma de poder se destruir, antes de mais nada, as instituições nacionais do seu próprio povo.
     Os franceses, em contraste com os britânicos e todas as outras nações da Europa, chegaram a tentar, ainda antes da Segunda Guerra Mundial, uma combinação de ius com imperium, para fundar um império no velho sentido romano. Procuraram transformar a estrutura política da nação numa estrutura política imperial, e acreditavam que "a nação francesa [estivesse] marchando (...) para disseminar os benefícios da civilização francesa''. Queriam incorporar à estrutura nacional as possessões ultramarinas, tratando os povos conquistados como "irmãos e súditos — irmãos na fraternidade da civilização francesa comum, e súditos no sentido de serem discípulos da luz francesa e seguidores da liderança francesa". [12] Em parte, isso foi realizado quando representantes de populações africanas sentaram-se no Parlamento francês e quando a Argélia foi declarada departamento da França. Mas o resultado desse empreendimento foi uma exploração particularmente brutal das possessões de ultramar em benefício da nação. A despeito de todas as teorias em contrário, o Império Francês era realmente avaliado do ponto de vista da defesa nacional, [13] e as colônias eram consideradas terras de soldados, capazes de produzir uma force noire que protegesse os habitantes da França contra os seus inimigos naturais. A famosa frase de Poincaré de 1923 — "a França não é um país de 40 milhões; é um país de 100 milhões" — indicava simplesmente a descoberta de uma ' 'forma econômica de dispor de carne para canhão''. [14]
     Quando Clemenceau insistiu, na mesa de conferência de paz em 1918, em que nada lhe importava senão "o direito ilimitado de recrutar tropas para ajudar a defesa do território francês na Europa, se a França viesse a ser atacada no futuro pela Alemanha", [15] não salvou a nação francesa da agressão alemã, embora o seu plano fosse posto em prática pelo Estado-Maior, mas assestou um golpe mortal na possibilidade ainda hipotética de um Império Francês. [16] Em comparação com esse nacionalismo cego e desesperado, os imperialistas britânicos, aceitando o sistema de mandatos, pareciam guardiões da autodeterminação dos povos, apesar do fato de terem abusado do sistema através dos "governos indiretos", um método que permite ao administrador governar um povo "não diretamente, mas através das autoridades tribais e locais". [17] 
     Os britânicos procuraram criar o império abandonando os povos conquistados aos mecanismos de sua própria cultura, religião e lei, mantendo-se afastados e evitando disseminar a lei e a cultura britânicas. Isso não impediu que os nativos desenvolvessem o sentimento de consciência nacional e clamassem por soberania e independência, embora possa ter retardado o processo. Agindo assim, os britânicos fortaleciam o conceito imperialista baseado em superioridade fundamental de "elementos elevados" sobre os "inferiores". Por sua vez, tal conceito exacerbava a luta pela liberdade entre os povos dominados, e os impedia de aceitarem os indiscutíveis benefícios do domínio britânico. A atitude dos administradores que, "embora respeitassem os nativos como povo e em alguns casos sentissem até amor por eles (...) quase unanimemente descriam que eles fossem ou jamais viessem a ser capazes de se governarem sem supervisão", [18]  levava os "nativos" a concluírem que o colonizador os excluía e separava para sempre do resto da humanidade.  
     Imperialismo não é construção de impérios, e expansão não é conquista. Os conquistadores britânicos, os velhos "infratores da lei na índia" (Burke), tinham pouco em comum com os exportadores de dinheiro britânico ou com os administradores dos povos indianos. Se esses últimos elaborassem leis em vez de baixar decretos, poderiam ter-se tornado construtores de um império. O fato, contudo, é que a nação inglesa não estava interessada nisso, e dificilmente tê-los-ia apoiado. O que aconteceu é que os negociantes de mentalidade imperialista foram seguidos por funcionários desejosos de deixar "o africano permanecer africano", enquanto um bom número de outros, apegados ainda ao que Harold Nicolson chamou certa vez de "ideais de infância", [19] "queriam ajudá-lo a "tornar-se um africano melhor" [20]  — seja lá o que isso pudesse significar, mas de nenhum modo estavam "dispostos a aplicar o sistema administrador e político do seu país para governar as populações atrasadas" [21] e realmente unir as vastas possessões da Coroa Britânica à nação inglesa.
     Contrariamente às verdadeiras estruturas imperiais, em que as instituições da nação-mãe se integram de várias maneiras às do império que criam, é característico do imperialismo permanecerem as instituições nacionais separadas da administração colonial, embora se lhes permita exercer controle. O verdadeiro motivo dessa separação estava na curiosa mistura de arrogância e respeito — a arrogância dos administradores que sabiam lidar com "populações atrasadas" ou "raças inferiores", contrabalançada pelo respeito dos estadistas antiquados no país de origem, que acalentavam as ideias de que nenhuma nação tinha o direito de impor sua lei sobre um povo estrangeiro. A arrogância yeio a ser um meio de domínio, enquanto o respeito idealista, tornado negativo, não produziu nenhuma nova forma de convívio entre os povos, mal conseguindo conservar dentro de certos limites as autoridades imperialistas que governavam por decretos. Mas os serviços coloniais nunca cessaram de protestar contra a interferência da "maioria inexperiente" — isto é, a nação — que tentava forçar a "minoria experiente" — os administradores imperialistas — "na direção da imitação", [22] ou seja, na linha do governo norteado pelos padrões gerais de justiça e liberdade, válidos apenas no país de origem.
     O surgimento de um movimento de expansão em Estados-nações que, mais que qualquer outro corpo político, eram definidos por fronteiras e pelas limitações de possíveis conquistas é um exemplo das disparidades aparentemente absurdas entre causa e efeito que assinalam a história moderna. A terrível confusão da terminologia histórica moderna é apenas um subproduto dessas disparidades. Fazendo comparações com os impérios antigos, os historiadores modernos confundem expansão com conquista, desprezam a diferença entre Comunidade e Império (como os historiadores pré-imperialistas confundiam a diferença entre plantações e possessões, ou colônias e dependências, ou, mais tarde, colonialismo e imperialismo [23]) e ignoram, em outras palavras, a diversificação essencial existente entre a exportação de gente (britânica) e a exportação de dinheiro (britânico). [24]
     Os historiadores contemporâneos, diante do espetáculo proporcionado pelos capitalistas engajados em buscas predatórias empreendidas em todo o mundo por novas possibilidades de investimentos, atribuem ao imperialismo a antiga grandeza de Roma e de Alexandre, grandeza que tornaria as consequências do imperialismo mais toleráveis do ponto de vista humano. A única grandeza do imperialismo está na batalha que a nação trava — e perde — contra ele. A tragédia dessa oposição hesitante não está apenas no fato de muitos representantes nacionais terem sido comprados pelos novos comerciantes imperialistas, pois pior do que a corrupção era a convicção dos incorruptos de que o imperialismo era a única maneira de conduzir a política mundial. Uma vez que os entrepostos marítimos e o acesso às matérias-primas eram realmente necessários a todas as nações, eles passaram a acreditar que a anexação e a expansão contribuíam para salvar o país. Foram os primeiros a confundir a diferença fundamental entre o estabelecimento de entrepostos marítimos e mercantis para fins de comércio e a nova política de expansão. Acreditaram em Cecil Rhodes quando ele lhes aconselhou que "acordassem para o fato de que não podiam viver sem o comércio mundial", "que seu comércio é o mundo, e sua vida é o mundo — e não a Inglaterra", e que, portanto, deviam "cuidar dás questões de expansão e de retenção do mundo". [25] Sem querer, e às vezes mesmo sem o saber, tornavam-se não apenas cúmplices da política imperialista, mas também os primeiros a serem culpados e condenados por seu "imperialismo". Foi este o caso de Clemenceau, que, por preocupar-se desesperadamente com o futuro da nação francesa, virou "imperialista" na esperança de que a mão-de-obra colonial protegesse os cidadãos franceses contra a agressão.
     A consciência da nação, representada pelo Parlamento e pela imprensa livre, funcionou e foi sentida pelos administradores coloniais em todos os países europeus colonizadores. Na Inglaterra, para diferenciar entre o governo imperialista, sediado em Londres e controlado pelo Parlamento, e os administradores coloniais, essa influência foi chamada de "fator imperial". Assim, creditaram-se ao imperialismo os méritos e o remanescente da justiça que ele tão ansiosamente buscava eliminar. [26] O "fator imperial" era expresso politicamente no conceito de que os nativos eram não apenas protegidos mas, de certa forma, representados pelo Parlamento britânico, o "Parlamento Imperial". [27] Com esse conceito, os ingleses se aproximaram da experiência imperial francesa, embora nunca tivessem chegado a outorgar representação real aos povos conquistados. Contudo, esperavam que a nação como um todo soubesse agir como espécie de curador em relação ao povos dominados,, e é verdade que sempre fizeram o possível para evitar o pior.
     O conflito entre os representantes do "fator imperial" (que seria melhor chamar de fator nacional) e os administradores coloniais marca indelevelmente toda a história do imperialismo britânico. A "prece" que Cromer dirigiu a lorde Salisbury durante sua administração do Egito em 1896 — "Deus me livre dos Departamentos Ingleses" [28] — foi repetidamente ouvida, até que, na década dos 20 do século XX, a nação e tudo o que ela representava foram abertamente responsabilizados pelos imperialistas pela futura perda da índia que já se esboçava. Os imperialistas nunca se haviam conformado com o fato de o governo colonial da índia ter de "justificar sua existência e sua política perante a opinião pública da Inglaterra"; esse controle impossibilitava lançar mão daquelas medidas de "massacres administrativos" [29] que, imediatamente após a Primeira Guerra Mundial, haviam sido ocasionalmente experimentadas em toda parte como meio radical de pacificação, [30] e que realmente poderiam ter impedido a independência da Índia.
     Hostilidade semelhante prevaleceu na Alemanha entre os representantes nacionais e os administradores coloniais da África. Em 1897, Carl Peters foi removido do seu posto no Sudeste Africano Alemão e teve de se demitir do serviço público devido a atrocidades ali cometidas contra os nativos. O mesmo sucedeu ao governador Zimmerer. E em 1905 os chefes tribais dirigiram suas queixas pela primeira vez ao Reichstag, de forma que, quando os administradores coloniais os aprisionaram, o governo alemão interveio. [31]
     O mesmo ocorreu com o domínio francês. Os governadores-gerais nomeados pelo governo estavam sujeitos a fortes pressões dos colonos franceses, como na Argélia, ou simplesmente se recusavam a realizar reformas no tratamento dos nativos, inspiradas, segundo eles, nos "frágeis princípios democráticos de [seu] governo". [32] Em toda parte, os administradores imperialistas achavam que o controle da nação-mãe constituía uma carga insuportável e uma ameaça à dominação.
     E estavam absolutamente certos. Conheciam bem as maneiras de subjugar os povos, melhor do que aqueles que, de um lado, protestavam contra o governo por meio de decretos e contra a burocracia arbitrária e, do outro, esperavam conservar para sempre suas possessões para a glória maior do país. Os imperialistas sabiam, melhor que os nacionalistas, que a estrutura política da nação era capaz de construir impérios. Sabiam perfeitamente que a marcha da nação e a conquista de outros povos, se seguissem o seu curso natural, terminariam com os povos conquistados constituindo-se em nações e derrotando o conquistador. Os métodos franceses, portanto, que sempre buscavam combinar as aspirações nacionais com o estabelecimento de um império, tiveram muito menos sucesso que os métodos ingleses, os quais, após a década de 80, eram abertamente imperialistas, embora refreados por uma nação-mãe que conservava suas instituições democráticas nacionais.

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[2] S. Gertrude Millin, Rhodes, Londres, 1933, p. 138.
[3] Esses algarismos, citados por Cartton H. H. Hayes, A generation ofmaterialism, Nova York, 1941, p. 237, referem-se ao período de 1871 a 1900. Ver também Hobson, op. cit., p. 19.
[4] Ernst Hasse, Deutsche Weltpolitik [Política mundial alemã], Flugschriften des All-deutschen Verbandes [Folhas da Liga Pangermânica], n? 5, 1897, p. 1.
[5] Ernest Renan, em seu clássico ensaio Qu 'est-ce quune nation?, Paris, 1882, acentuava que "o real consentimento, o desejo de viver em comum, a vontade de preservar dignamente a herança indivisível que foi legada" eram os principais elementos que mantêm juntos os membros de um povo de modo a que eles constituam uma nação.
[6] Hobson, op. cit.
[7] Essa má-consciência, florescendo da crença no consenso enquanto fundamento de toda organização política, é bem descrita por Harold Nicolson, Curzon: the last phase 1919-1925, Boston-Nova York, 1934, na discussão da política britânica no Egito: "A justificação de nossa presença no Egito permanece baseada, não no defensável direito de conquista, ou na força, mas na nossa própria crença no elemento do consenso. Esse elemento, em 1919, não existia em nenhuma forma articulada. Ele foi dramaticamente desafiado pela explosão egípcia de março de 1919".
[8] Como lorde Salisbury colocou a questão, regozijando-se com a derrota do primeiro Home Rule Bill de Gladstone. Durante os vinte anos seguintes de governo conservador e, àquela época (1885-1905), imperialista, o conflito anglo-irlandês não apenas não se resolveu, mas também tornou-se muito mais agudo. Ver também Gilbert K. Chesterton, The crimes of England, 1915, pp. 57 ss.
[9] É difícil entender por que, durante a fase inicial de desenvolvimento nacional inglês dos Tudor, a Irlanda não foi incorporada à Grã-Bretanha como os Valois haviam conseguido incorporar a Bretanha e a Borgonha à França. Pode ser, no entanto, que um processo semelhante tenha sido brutalmente interrompido pelo regime de Cromwell, que tratou a Irlanda como se fosse um simples despojo de guerra, a ser dividido entre os seus seguidores. De qualquer forma, após a Revolução de Cromwell, que foi tão crucial para a formação da nação britânica como a Revolução Francesa foi para os franceses, o Reino Unido já havia atingido aquele estágio de maturidade que é sempre seguido da perda de poder de assimilação e integração, que o corpo político da nação possui somente em seus estágios iniciais. O que se seguiu depois foi, realmente, uma longa e triste história de "coação imposta não para que o povo pudesse viver em paz, mas para que o povo pudesse morrer em paz" (Chesterton, op. cit., p. 60). Para um estudo histórico da questão irlandesa, ver o excelente e imparcial Britam and Ireland, de NicholasMansergh, LongmansPamphletson theBritish Commonwealth, Londres, 1942.
[10] Muito característica é a seguinte declaração de J. A. Froude, feita pouco antes do início da era imperialista: "Que fique estabelecido de uma vez que um inglês que emigrou para o Canadá, ou para o Cabo, ou para a Austrália, ou para a Nova Zelândia, não renunciou à sua nacionalidade, mas permaneceu em solo inglês como se estivesse em Devonshire ou Yorkshire, e permanecerá inglês enquanto durar o Império Britânico; e que, se gastássemos um quarto do dinheiro que foi atolado nos pântanos de Balaclava para enviar e estabelecer dois milhões de ingleses nessas colônias, isso contribuiria mais para a força do nosso país do que todas as guerras em que nos metemos, de Agincourt a Waterloo". Citado por Robert Livingston Schuyler, The fali of the old colonial system, Nova York, 1945, pp. 280-1.
[11] O eminente escritor sul-africano, Jan Disselboom, expressou com bastante crueza a atitude dos povos da Comunidade a esse respeito: "A Grã-Bretanha é meramente um sócio da firma (constituída de) descendentes da mesma estirpe. (...) As partes do Império não habitadas pelas raças a que isso se aplica, nunca foram sócias da firma. Eram a propriedade privada do sócio importante. (...) Pode-se ter o domínio branco, ou pode-se ter o Domínio da Índia, mas não a ambos". (Citado por A. Carthill, The lost dominion, 1924.)
[12] Ernest Baker, Ideas and ideais ofthe British Empire, Cambridge, 1941, p. 4. Ver também as observações introdutórias sobre os fundamentos do Império Francês em The French Colonial Empire, Information Department Papers, n? 25, publicados pelo Royal Instirute of International Affairs, Londres, 1941, pp. 9 ss. "O objetivo é assimilar ao povo francês os povos coloniais ou, quando isso não for possível nas comunidades mais primitivas, associá-los, de modo que cada vez mais a diferença entre Ia France metrópole e Ia France d'outremer seja geográfica e não fundamental."
[13] Ver G. Hanotaux, "Le General Mangin", em Revue des Deux Mondes (1925), t. 27.
[14] W. P. Crozier, "France and her "black empire'", em New Republic, 23 de janeiro de 1924.
[15] David Lloyd George, Memoirs ofthe Peace Conference, New Haven, 1939, I, 362 ss. [A presença das tropas africanas na Europa provocou uma veemente reação de Hitler, que, em Mein Kampf, acusa a França de "conspurcar" assim a pureza da raça branca na Europa. (N.E.)]
[16] Uma tentativa semelhante de exploração das possessões de ultramar em favor da nação foi feita pela Holanda nas índias Orientais Holandesas, depois que a derrota de Napoleão devolveu as colônias holandesas à mãe-pátria muito empobrecida. Os nativos foram reduzidos à escravidão em benefício do governo da Holanda.
O Max Havelaar de Multatuli, publicado pela primeira vez nos anos 60 do século passado, destinava-se ao governo na metrópole, e não aos serviços no exterior. (Ver De Kat Angelino, Colo-nialpolicy, vol. II, The Dutch Eastíndia, Chicago, 1931, p. 45.) Esse sistema foi logo abandonado, e as Índias Holandesas, durante algum tempo, mereceram "a admiração de todas as nações colonizadoras" (Sir Hesketh Bell, ex-governador da Uganda, da Nigéria do Norte etc, em Foreign colonial administration in the Far East, 1928, parte I). Os métodos holandeses assemelham-se aos dos franceses: a outorga de status de europeus aos nativos que o "mereciam", introdução de um sistema escolar europeu, e de outros meios de assimilação. Com isso, os holandeses conseguiram o mesmo resultado: um forte movimento de independência nacional entre o povo dominado.
No presente estudo, deixamos de lado o imperialismo holandês e o belga. O primeiro é uma mistura curiosa e mutável de métodos franceses e ingleses; o segundo não é a história da expansão da nação belga, nem mesmo da burguesia belga, mas da expansão do rei belga, pessoalmente, irrefreada por qualquer instituição. Tanto o imperialismo holandês como o belga são atípicos. A Holanda não se expandiu durante os anos 80, mas apenas consolidou e modernizou suas antigas possessões. Por outro lado, as atrocidades sem paralelo cometidas no Congo Belga pela companhia colonizadora pertencente ao rei não espelham o que estava acontecendo de modo geral nas demais possessões europeias de ultramar.
[17] Ernest Barker, op. cit., p. 69.
[18] Selwyn James, South of the Congo, Nova York, 1943, p. 326.
[19] Acerca desses "ideais de infância" e do papel que tiveram no imperialismo britânico, ver o capítulo 7. O modo como surgiram e foram cultivados é descrito em Rudyard Kipling, Stalky and Company.
[20] Ernest Barker, op. cit., p. 150.
[21] Lorde Cromer, "The government of subject races", em Edinburgh Review, janeiro de 1908.
[22] Ibid.
[23] O primeiro erudito a usar o termo "imperialismo" para distinguir claramente entre o "Império" e a Comunidade foi J. A. Hobson. Mas a diferença essencial sempre foi bem conhecida. O princípio da "liberdade colonial", por exemplo, acalentado por todos os estadistas liberais ingleses depois da Revolução Americana, só seria válido se a colônia fosse "constituída de cidadãos britânicos ou (...) misturas da população britânica, que tornassem segura a introdução de instituições representativas". Ver Robert Livingston Schuyler, op. cit., pp. 236 ss. No século XIX existiam três tipos de presença ultramarina britânica dentro do Império: as povoações (ou plantações, ou colônias), como a Austrália; os entrepostos comerciais e possessões, como a índia; e os postos marítimos e militares, como o Cabo da Boa Esperança, mantidos para garantia dos primeiros.
[24] Ernest Barker, op. cit.
[25] Millin, op. cit., p. 175.
[26] A origem dessa denominação imprópria está provavelmente na história do domínio inglês na África do Sul e data dos tempos em que os governadores locais, Cecil Rhodes e Jameson, envolveram o "Governo Imperial" de Londres, contra as intenções deste último, na guerra contra os bôeres. De fato, Rhodes, ou melhor, Jameson, era o senhor absoluto de um território três vezes maior que a Inglaterra, que podia ser administrado "sem ter de esperar pelo relutante consentimento ou pela educada censura do alto-comissário", que era o representante de um Governo Imperial, detentor apenas de "controle nominal". (Reginald Ivan Lovell, The strugglefor South África, 1875-1899, Nova York, 1934, p. 194.) E o que aconteceu com os territórios nos quais o governo britânico entregou sua jurisdição à população europeia local, desprovida dos freios tradicionais e constitucionais dos Estados-nações, pode ser visto na trágica história da União da África do Sul desde a sua independência, isto é, desde quando o governo Imperial" deixou de ter o direito de interferência.
[27] mento ou pela educada censura do alto-comissário", que era o representante de um Governo Imperial, detentor apenas de "controle nominal". (Reginald Ivan Lovell, The strugglefor South África, 1875-1899, Nova York, 1934, p. 194.) E o que aconteceu com os territórios nos quais o governo britânico entregou sua jurisdição à população europeia local, desprovida dos freios tradicionais e constitucionais dos Estados-nações, pode ser visto na trágica história da União da África do Sul desde a sua independência, isto é, desde quando o governo Imperial" deixou de ter o direito de interferência.
[28] LawrenceJ. Zetland, Lord Cromer, 1923, p. 224.
[29] A. Carthill, Thelost dominion, 1924, pp. 41-2, 93.
[30] Um exemplo de "pacificação" no Oriente Próximo foi descrito detalhadamente por T. E. Lawrence num artigo, "France, Britain and the Arabs", escrito para The Observer (1920): "Diante do sucesso preliminar dos árabes, os reforços britânicos são enviados em missão punitiva. O objetivo é bombardeado pela artilharia, aviões ou canhoneiras. Finalmente, incendeia-se uma aldeia e o distrito é pacificado, É estranho que não usemos gases venenosos nessas oportunidades. Bombardear as casas é um modo inadequado de matar as mulheres e as crianças. (...) Se atacássemos com gás, toda a população de distritos delinquentes poderia ser eliminada completamente; e, como método de governo, não seria menos imoral que o sistema atual". Ver suas Letters, editadas por David Garnett, Nova York, 1939, pp. 311 ss.
[31] Por outro lado, em 1910, o secretário das Colônias Dernburg teve de renunciar ao cargo porque havia antagonizado os plantadores coloniais protegendo os nativos. Ver Bary E. Townsend, Rise and fali of Germany's colonial Empire, Nova York, 1930, e P. Leutwein, Kàmpfe um Afrika [Lutas pela África], Luebeck, 1936.
[32] Como disse Léon Cayla, ex-governador-geral de Madagascar e amigo de Pétain.

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