segunda-feira, 18 de agosto de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Mário, Livro Primeiro - Paris estudado na sua mais tênue parcela / III - Como é agradável

Victor Hugo - Os Miseráveis

Terceira Parte - Mário

Livro Primeiro — Paris estudado na sua mais tênue parcela

III - Como é agradável
     
     À noite o homuncio, graças a alguns cobres que acha sempre maneira de arranjar, entra num teatro, e, apenas transpõe o limiar daquelas mágicas mansões, transfigura-se; de gaiato que era, torna-se titi. Os teatros são uma espécie de navios voltados com o porão para o ar, e é exatamente no porão que o gaiato toma lugar. O titi é para o gaiato o que a mariposa é para a larva: o mesmo ser, com asas. Basta que ele ali se encontre na ebriedade do seu prazer, no cúmulo do seu entusiasmo e alegria, com o seu bater de mãos, que mais parece um bater de asas, para que esse porão estreito, fétido, escuro, sórdido, insalubre, hediondo, abominável, se chame o Paraíso.
     Dai a um ente o inútil e tirai-lhe o necessário, e tereis o gaiato.
     O gaiato não é destituído de certa intuição literária. A sua tendência, porém, dizemo-lo suficientemente pesarosos, não se inclina para o gosto clássico. O gaiato é, por pendor natural, pouco acadêmico. Para darmos um exemplo, basta dizer que a popularidade de Mademoiselle Mars, entre este público de crianças tavaneses, era temperada com uma ponta de ironia. O gaiato denominava-a Mademoiselle Muche.
     Esta criatura berra, zombeteia, trava desordens, batalha, anda rota como uma criança, esfarrapada como um filiado, pesca nas enxurradas, caça nas latrinas, extrai a alegria da imundície, anima os becos com o seu entusiasmo, é sarcástico e maldizente, assobia e canta, aplaude e pateia, tempera a Aleluia com Matanturlurette! Salmodia todos os ritmos desde o De profundis até à Chieenlit; acha sem procurar, sabe o que ignora, é esparciata até às raias da ratonice, é louco até tocar os limites da prudência, lírico até à obscuridade, capaz de se pôr de cócoras no Olympo, chafurda na imundície e sai dela coberto de estrelas.
     O gaiato parisiense é Rabelais em miniatura.
     Se as calças que traz não têm bolso de relógio, não anda satisfeito.
     É pouco espantadiço, ainda menos timorato, faz cantigas às superstições, espreme os exageros, escarnece dos mistérios, deita a língua de fora às almas do outro mundo, despoetiza o que os outros encarecem, introduz a caricatura nas intumescências épicas. Não porque ele seja prosaico; longe disso; mas porque substitui a visão solene pela fantasmagoria bufona. Se Adamastor aparecesse ao gaiato, o gaiato diria: «Ai! O papão!»

continua na página 438...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Mário, Livro Primeiro - III - Como é agradável
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

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