Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
Quarta Parte
11.
continuando...
. Saíram da alcova e
se sentaram nas mesmas cadeiras, novamente um defronte do outro. Tremendo
com uma violência cada vez mais incontida, Míchkín não tirava os olhos
indagadores do rosto de Rogójin.
- Noto que estás tremendo, Liév Nikoláievitch, muito mais do que quando
estiveste doente. Lembras-te, em Moscou? Tal qual como antes de te vir o acesso,
aquela vez!... Fica bem calmo, senão, que vou fazer contigo agora?
O príncipe
escutou, fez todo o esforço para ficar em condições de compreender; mas os
seus olhos não paravam de perguntar que é que fora aquilo...
- Quem foi? Foi você? - conseguiu dizer, por fim, mostrando a cortina.
- Fui eu. - Rogójin ciciou; e não pôde erguer os olhos.
Mantiveram-se calados cinco
minutos. Cinco minutos...
- Escuta aqui - recomeçou Rogójin, como se não
tivesse interrompido a sua confissão -, como és doente e tens ataques e
convulsões, não vá alguém ouvir do pátio, ou da rua.., e descobrir, assim, que há
gente aqui nos meus aposentos. Se descobrirem... começarão a bater e entrarão..,
pois todos estão convencidos de que não estou em casa. Já foi por isso que não
acendi luz... podiam perceber da área ou da calçada... Quando saio, levo,
sempre, a chave.., e ninguém entra aqui, nem para a limpeza, enquanto dura a
minha ausência. Dois.., as vezes três dias... É hábito meu. Tomei bastante cuidado
para que não percebessem que estamos aqui...
- Pode continuar... - disse o príncipe. - Eu perguntei, tanto ao porteiro como à
empregada, se Nastássia Filíppovna não tinha passado a noite aqui. Portanto... isto
é...
- Eu sei que perguntaste. Mas eu disse à Pafnútievna que Nastássia Filíppovna
estivera aqui ontem apenas uns dez minutos e que já havia
regressado para Pávlovsk. Ninguém sabe que ela ficou aqui, de noite. Entrei,
ontem, com ela, às escondidas, tal como nós dois fizemos ainda agora. Quando
vínhamos para cá eu pensei que ela não tomaria cuidado para entrar em segredo.
Mas qual o quê! Entrou na ponta dos pés, suspendeu e dobrou a cauda do vestido
em volta do corpo, segurando a ponta na mão, para que a seda não rugisse; e
quando falou, foi sempre ciciando... Chegou a me balançar o dedo, escadas
acima - era de ti que ela tinha medo! No trem, se visses, estava louca de terror!
E foi ela quem quis passar a noite aqui. Porque eu, eu tinha pensado em levá-la
ao apartamento dela, na casa da viúva; mas, qual o quê! “Mal o dia raie, ele me
achará lá!” Foi o que ela disse. Mas você (referia-se a mim) vai me esconder
hoje, e amanhã de manhã, cedinho, partiremos para Moscou”. Depois, já não
era para Moscou que queria ir... Qualquer outra cidade... Oriól, por exemplo...
Até mesmo já deitada, me dizia, de lá, que tínhamos de ir para Oriól...
- Escute,
Parfión! Que é que você vai fazer, agora? Que é que pensa fazer?
- Mas para de
tremer! Eu fico espantado, por tua causa! Nós vamos ficar aqui, toda a noite. A
cama é aquela só... Mas acho que podemos pegar as almofadas e os coxins dos
dois sofás, e fazer uma espécie de cama para mim e para ti, do lado de cá da
cortina... Para ficarmos juntos. Pois se eles vierem para cá e começarem a
pesquisar, a indagar, e entrarem, darão logo com ela e a levarão. E... me
achando.., me perguntarão... eu direi que fui eu e me levarão imediatamente.
Assim, pois, se ficares, é melhor, não é? Ela agora fica conosco, ao nosso lado,
junto de ti... e junto de mim...
- Sim, sim! - concordou o príncipe vivamente.
Quando vierem.., nós não confessaremos não, e não deixaremos que a levem!
- É sim! Não deixaremos não, de forma alguma, custe o que custar. Isso
mesmo... - decidiu o príncipe.
- Foi o que eu decidi também, rapaz, não a entregar de forma alguma. A
ninguém! Ficaremos quietos aqui; a noite inteira. Hoje só saí, de manhã, por
menos de uma hora. Não contando esse tempo, estive sempre com ela. E depois
só saí para te ir buscar, de noite já. Mas uma outra coisa.., de que estou com
medo: está muito quente e talvez comece a cheirar mal... Tu estás sentindo
algum cheiro?... Eu...
- Talvez esteja... Nem sei... Mas... de madrugada, certamente...
- Eu a cobri com um oleado americano! Um bom oleado. Estendi o lençol
por cima e coloquei em volta, embaixo, rente à cama, quatro botijas de
desinfetante Jdánov. Desarrolhei... Ainda estão lá... Devem servir...
- Ah! Sim,
como leu que fizeram aquela vez em Moscou!?... - Por causa do cheiro, irmão!
Viste como ela está... deitadinha... De manhã quando houver luz é que deves ir
olhá-la... Que é isso? Não te podes erguer? - perguntou Rogójin, com espanto,
vendo, todo apreensivo, que Míchkin estava tremendo de maneira tão absurda
que, apesar do esforço para ir ver outra vez Nastássia Filíppovna, não conseguia
se pôr em pé...
- As minhas pernas não.., obedecem - explicou baixinho o
príncipe - e creio que é... terror! Mas quando isto passar, me levantarei para ir...
vê-la.
- Sossega; vou arranjar uma cama para nós. Deitando, ficarás logo melhor.
Eu deitarei também... E ficaremos escutando... Pois é, rapaz, não compreendo
ainda, não compreendo como tudo isso foi... Bem que te avisei, que te preveni, de
antemão.., de modo a que ficasses sabendo...
Sussurrando essas palavras
ininteligíveis, Rogójin começou a fazer as camas no chão. Era evidente que só
essa noite é que lhe tinha vindo à cabeça improvisar essa cama no chão. A outra
noite, ficara no sofá. Mas não havia agora lugar para dois, no sofá estreito, e
Rogójin resolveu e combinou que deviam deitar juntos. Eis por que, com muito
esforço, ele agora arrastava os vários Coxins do sofá e os depunha ao rés da
cortina. Fez a cama de qualquer modo. Aproximou-se do Príncipe afavelmente
e, com certo entusiasmo macabro, o conduziu pelo braço. Mas o príncipe achou
que podia ir, e se desvencilhou pensando que o tremor já havia passado. Rogójin
fez o príncipe estirar-se nos coxins, à esquerda, e depois, sem se despir se
arrojou, pesadamente.
Cruzou as mãos debaixo da cabeça e começou a balbuciar:
- Está quente, sim,
está quente, irmão! E, como sabes, vai começar a cheirar. Acho que não
devemos abrir as janelas... Minha mãe tem sempre jarros com flores... Uma
porção de flores... E que perfume delicioso que elas têm! Cheguei a pensar em
trazer.., mas Pafnútievna podia desconfiar.., ela repara em tudo...
- É reparadeira, sim,.. - concordou o príncipe, aparvalhadamente.
- Achas que
devíamos comprar punhados e mais punhados de flores para rodeá-la toda?
Mas.., pensando bem, amigo, vê-la rodeada de flores nos causaria tamanha
tristeza!
- Escute - disse o príncipe, de modo incerto, como se estivesse procurando
o que ia dizer, já esquecido outra vez do que era - Escute. Como foi que fez isso?
Com uma faca? Com aquela mesma?
- Com aquela!
- Outra coisa, ainda. Quero perguntar-lhe outra coisa, Parfión. Quero fazer- lhe
uma porção de perguntas. Quero que me conte tudo... Mas, para começar, será
melhor me dizer, primeiro, para eu entender bem... Você pensava em matá-la
antes do nosso casamento com uma faca, à entrada da igreja?
- Não sei se
pensei, ou não - respondeu Rogójin, secamente, parecendo até surpreendido com
a pergunta, ou não a compreendendo.
- Você chegou a levar consigo a faca para
Pávlovsk?
- Não, nunca! Tudo quanto te posso dizer a respeito da faca é que eu a
tirei de uma gaveta esta madrugada... pois tudo aconteceu de madrugada, mais
ou menos às quatro horas... A faca esteve enfiada dentro de um livro, sempre,
aqui, em casa. E... e... coisa estranha. Afundou três ou quatro polegadas, bem
debaixo do seio esquerdo. Não saiu mais do que uma quantidade assim.., de uma
meia colher de sopa... de sangue... que se espalhou pela camisola. Nem tanto!...
- Isso.., isso.., isso eu sei, já li a respeito, é o que eles chamam de hemorragia
interna – esclareceu sinistramente o príncipe, em grande agitação. - Às vezes, não
dá uma gota... Quando a punhalada vai certeira ao coração e encrava...
- Para! Não estás ouvindo? - Rogójin interrompeu-o imediatamente, sentando-se,
apavorado, sobre o coxin. - Escuta só!
- Não ouço nada - respondeu Míchkin tão
rápido quanto apavorado.
- Passos! Ouves? Na sala de visitas... - puseram-se
ambos a escutar.
- Ouço - disse o príncipe, sem a menor hesitação.
- Passos de
gente!
- Sim.
- Convém, ou não, fechar a porta?
- Feche.
Foram fechar a porta e vieram deitar outra vez. Ficaram calados uma porção de
tempo.
- Ah! É mesmo! - começou inesperadamente o príncipe, com um sussurro
farfalhante, como retomando um pensamento e querendo falar depressa antes de
o esquecer de novo; sentou-se no chão. - É mesmo! Eu queria aquele baralho de
cartas!... As cartas... Elas me disseram que você jogava com ela!
- Jogava, sim - confirmou Rogójin, depois de curto silêncio.
- Onde estão... as cartas?
- Estão aqui - disse Rogójin. depois de uma pausa maior - Aqui.
Tirou do bolso
um baralho de cartas enrolado em papel e deu a Míchkin, que o tomou com uma
espécie de marasmo. Um sentimento novo, de desesperadora tristeza, pesava em
seu coração. Compreendeu, subitamente, que nesse momento e durante muito
tempo, antes, não estivera a dizer o que desejava; e que isso não era direito;
estava fazendo uma coisa má. E compreendeu, também, que nessas cartas que
segurava agora, e que, só de as ver, lhe davam tanto conforto, não eram de ajuda
nenhuma, absolutamente não serviam para coisa alguma, agora... Levantou-se,
comprimindo o baralho na mão fechada. Rogójin continuava deitado e não
parecia ouvir nada, nem nada ver dos gestos do príncipe; mas os seus olhos
cintilavam na treva, e estavam muito arregalados, com uma expressão fixa. O
príncipe foi sentar-se na cadeira, começando a olhá-lo de lá, com terror.
Passou meia hora.
E então Rogójin se pôs a falar alto, e a rir, como se tivesse esquecido que deviam
falar somente ciciando.
- Aquele oficial, aquele!... Tu te lembras como ela chicoteou aquele oficial, perto
do coreto da música? Ah! Ah! Ah! E havia um cadete.,, um cadete.., um cadete
também que interveio...
O príncipe pulou da cadeira, com redobrado pavor. Nisto, Rogójin ficou quieto (e
foi subitamente que se calou) e o príncipe se curvou docilmente sobre ele, depois
se sentou ao lado e, com o coração batendo violentamente e a respiração aos
arrancos, começou a fitá-lo. Rogójin nem virou a cabeça para ele, como se o
tivesse esquecido. O príncipe olhava e esperava. O tempo foi passando.
Começou
a clarear.
De vez em quando, Rogójin recomeçava a murmurar coisas, com voz
rígida, incoerentemente; ria e soltava exclamações. Então o príncipe estendia a
mão trêmula até ele e mansamente lhe tocava a cabeça, os cabelos, acariciando
os, ou lhe afagava as faces.., pois não podia fazer mais nada!
Começou a tremer,
outra vez. E as pernas, de novo, pareceram nem existir.
Uma sensação nova lhe
corroía o coração com infinita angústia. No entanto, tinha clareado
completamente. Em dado instante ele se estirou sobre as almofadas, como que
absolutamente inerme, sem esperança e sem solução. Juntou o seu rosto ao rosto
petrificado de Rogójin, as suas lágrimas escorrendo para as dele, ambos, decerto,
nem as percebendo nem se importando com elas.
Fosse como fosse, quando, depois de muitas horas, as portas foram
arrombadas e pessoas estranhas entraram, deram com o assassino
completamente inconsciente, a delirar. Míchkin estava sentado no assoalho, sem
se mover dali, ao lado dele. E sempre que o homem que se achava delirando
desandava a dar gritos e a tartamudear, ele se apressava em lhe passar a mão
trémula, suavemente, sobre os cabelos e sobre as faces, como o acariciando e
acalmando, mas nem por isso conseguiu compreender nenhuma pergunta que
lhe foi feita e nem reconheceu as pessoas que o rodeavam. Se Schneider, em
pessoa, viesse da Suíça para olhar o seu antigo pupilo e paciente, ligando a cena
de agora à recordação do estado em que o príncipe, às vezes, ficava naqueles
seus primeiros anos de estada no estrangeiro, teria erguido as mãos para o ar,
desesperançado, e diria, como dizia naquele tempo: “Um idiota!”
continua página 551...
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O Idiota: Quarta Parte (11c) - Saíram da alcova e se sentaram
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