domingo, 17 de agosto de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Quarta Parte - Epílogo

O Idiota

Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Quarta Parte

Epílogo

.     Precipitando-se para Pávlovsk a viúva do mestre-escola se dirigiu direta- mente a Dária Aleksiéievna que já estando assombrada com os acontecimentos da véspera, ainda ficou em um pânico maior, ante o que lhe foi contado. Resolveram as duas senhoras comunicarem-se imediatamente com Liébediev que, como era natural, estava preocupadíssimo com o seu inquilino e amigo.
     Contou-lhes Vera Liébedieva tudo quanto sabia.
     A conselho de Liébediev decidiram seguir os três para Petersburgo com o fim de o mais depressa possível evitar o que pudesse estar para acontecer. E assim foi que, cerca das onze horas da manhã do dia seguinte, o apartamento de Rogójin foi arrombado na presença da polícia, das senhoras, de Liébediev e de um irmão de Rogójin, Semión Semiónovitch, que morava na outra ala - ato esse facilitado pela declaração do porteiro que, depondo, disse ter visto à noite Parfión Semiónovitch entrar pela porta da frente, com uma visita, mas, pelo que lhe pareceu, às escondidas.
     Durante dois meses esteve Rogójin prostrado, com inflamação cerebral, tendo sido julgado logo que se restabeleceu. Com muita exatidão deu provas irretorquíveis sobre cada ponto do libelo, em consequência do que absolutamente não foi trazido à baila o nome de Míchkin. Durante o julgamento, conquanto taciturno, não contradisse Rogójin o eloquente conselho judicial que provou, com clareza e lógica, ter o crime sido cometido em consequência da febre cerebral que acometera o réu muito antes da perpetração do crime que, assim, pois, mais não foi do que um resultado de suas perturbações. Não acrescentou Rogójin coisa alguma em contestação, mantendo com a mesma clareza exata o seu depoimento feito durante o inquérito relativamente às circunstâncias ligadas ao crime. Foi sentenciado, em vista das circunstâncias atenuantes, a somente quinze anos de servidão penal na Sibéria. Ouviu a sentença soturnamente calado e como que “sonhando”. Toda a sua enorme fortuna, de que só uma parte comparativamente pequena fora dilapidada nos primeiros meses de libertinagem, passou para o seu irmão, Semión Semiónovitch, com grande satisfação deste. Sua velha mãe ainda vive, e parece que, lá uma vez ou outra, se recorda de seu filho favorito, Parfión, decerto, porém, muito vagamente, Deus lhe tendo poupado o espírito e o coração do conhecimento do golpe desferido sobre o seu melancólico lar.
     Liébediev, Keller, Gánia, Ptítsin, e muitas outras pessoas desta história, continuam a viver, tendo mudado pouco, quase nada havendo a relatar sobre eles.
     Ippolít, quinze dias depois de Nastássia Filíppovna, morreu em terrível estado de excitação, e decerto mais cedo do que calculara.
     Kólia ficou profundamente marcado pelos acontecimentos, ligando-se mais intimamente do que nunca à sua mãe, Nina Aleksándrovna, que vive inquieta com esse seu filho demasiado pensativo para a idade. Mas de uma coisa ela não tem dúvida: ele tornar-se-á um homem útil e ativo; entre outras coisas, a acomodação do futuro de Míchkin foi, parcialmente, obra sua.
     Desde muito tendo notado que Evguénii Pávlovitch Radómskii era uma pessoa diferente das outras cujas amizades fora fazendo, o procurou para contar o caso do príncipe e sua consequente situação. Evguénii Pávlovitch não o decepcionou na estima com que era distinguido, pois tomou logo o maior interesse pela sorte do infortunado “idiota” que, devido a seus cuidados e diligências, foi reenviado ao Dr. Schneider, na Suíça.
     Considerando-se, francamente, um homem supérfluo na Rússia, Evguénii Pávlovitch seguiu para o estrangeiro, decidido a passar uma grande temporada na Europa, fazendo, então, várias visitas a seu amigo doente na instituição do Dr. Schneider. Visitava-o, no mínimo, de três em três meses. Mas Schneider franzia as sobrancelhas e meneava a cabeça, cada vez mais desanimado; pressentia, categoricamente, ser impossível uma remissão, de vez em quando se permitindo um ou outro vaticínio quanto a possibilidades ainda mais melancólicas. Isso afetou muito o coração de Evguénii Pávlovitch; e não é um coração qualquer, esse seu, como fica demonstrado ante o fato de Kólia lhe escrever cartas que recebem constantes respostas.
     Há ainda um outro fato que patenteia um traço bondoso do seu caráter, e aqui nos apressamos em mencionar qual seja: depois de cada visita sua ao Dr. Schneider, Evguénii Pávlovitch sempre remete uma carta a certa pessoa de Petersburgo, com as mais simpáticas e minuciosas informações sobre o estado da saúde do príncipe. Acompanhadas com as mais respeitosas expressões de devotamento, essas cartas invariavelmente (e cada vez com mais frequência) contêm um franco desenvolvimento de ideias, vistas e sentimentos, qualquer coisa que, em realidade, se aproxima de um sentimento fervoroso de amizade mal disfarçada através disso tudo. Essa pessoa, que se corresponde com ele (conquanto, deste lado, as cartas sejam menos frequentes) e que é assim merecedora de tanta atenção e respeito da sua parte, é Vera Liébedieva.
     Nunca nos foi dado nos certificarmos de como essas relações nasceram entre ambos; não resta dúvida, porém, terem começado ao tempo do colapso total do príncipe, quando Vera Liébedieva ficou tão aflita que até caiu doente. Mas, de um modo exato, qual o incidente que os levou a esse conhecimento e amizade, não sabemos informar.
     Aludimos a essas cartas principalmente porque contêm notícias sobre os Epantchín e, especialmente, sobre Agláia. Segundo uma carta de Paris, um pouco desconexa, Evguénii Pávlovitch contava que, após uma súbita e extraordinária atração por um conde polaco exilado, Agláia se casara logo, apesar da oposição dos pais que só tinham acabado dando consentimento por haver possibilidades de um terrível escândalo.
     Depois de seis meses de silêncio, chegou nova carta de Evguénii Pávlovitch, mandando à pessoa com quem se correspondia uma comprida e minuciosa descrição de como, em sua última visita à instituição do Dr. Schneider, se tinha encontrado lá com o Príncipe Chtch... e toda a família Epantchín (exceto, naturalmente, Iván Fiódorovitch, retido, pelos negócios, em Petersburgo). E que fora um estranho encontro, todos tendo demonstrado extraordinário contentamento, não cessando Adelaída e Aleksándra de se demonstrarem incalculavelmente gratas a ele. “por sua angélica bondade para com o desgraçado príncipe”.
     Lizavéta Prokófievna não parava de chorar amargamente, à vista da aflita e humilhada condição de Míchkin. Evidentemente tudo lhe fora perdoado. O Príncipe Chtch... fizera mesmo umas poucas observações justas e sinceras. Que lhe parecera a ele, Evguénii Pávlovitch, que Adelaída e o marido não estavam em muito perfeita harmonia, mas que, com certeza, no futuro, Adelaída ainda viria a permitir que o seu impetuoso temperamento fosse guiado pelo Príncipe Chtch... que tinha bom senso e experiência. E seria de esperar, de mais a mais, que as cruéis experiências que a família sofrera através, principalmente, da recente aventura de Agláia com o conde exilado, viessem a causar profunda impressão na irmã. Que tudo quanto a família receara ao negar Agláia ao conde polaco, se tinha, em menos de seis meses, confirmado, e até da pior maneira, com surpresa que eles nunca haviam sequer sonhado.
     Esclareceu-se que o conde nem conde era e que, se estava exilado como dizia, era isso devido a certa aventura sombria e duvidosa do seu passado. O tratante fascinara Agláia pela sua extraordinária “nobreza” de alma dilacerada em angústia patriótica. Fascinação essa que, mesmo depois de casada, subira a ponto de fazer que ela se tornasse sócia de um Comitê pela restauração da Polônia e desse em frequentar o confessionário de um célebre pregador católico, passando logo o seu espírito a lhe sofrer a influência.
     Quanto às vastas propriedades do conde polaco, e de que antes mostrara ao Príncipe Chtch... e a Lizavéta Prokófievna as mais incontestáveis provas, não passavam de um mito. E ainda mais: que seis meses após o casamento, o conde e o seu amigo, o célebre confessor, haviam conseguido indispor Agláia completamente com a família, de modo que desde meses nem sequer tinham notícias dela.
     Restava de fato ainda muita coisa a contar: mas Lizavéta Prokófievna, filha e genro estavam tão aborrecidos com esse “terrível caso” que relutaram em aludir a outros pontos durante essa conversa com Evguénii Pávlovitch, muito embora cientes de que ele já sabia a história da última peripécia de Agláia. Como Lizavéta Prokófievna se sentia ansiosa por voltar à Rússia! Segundo o relato de Evguénii Pávlovitch, ela agora se mostrava mais amarga e injusta do que nunca em suas críticas contra tudo da Europa.

-  Eles aqui nem sabem fazer um pão decente! No inverno ficam mais entanguidos do que camundongos em uma adega. Aqui só me foi dado o consolo de ao menos poder chorar lágrimas bem russas por este desgraçado. (Apontava para o príncipe que nem a tinha reconhecido.) Já chega de seguir as nossas venetas! Já é tempo de sermos sensatos. Tudo isto, toda esta vida aqui no estrangeiro, e toda esta Europa tão gabada, tudo, mas tudo, não passa de uma fantasia! E todos nós, no estrangeiro, somos fantasia e nada mais!... Guarde bem estas minhas palavras, pois irá me dar razão pessoalmente! - concluiu ela, de modo quase raivoso, ao se despedir de Evguénii Pávlovitch.

FIM

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Perfil biográfico: Fiodor Dostoiévski

A obra do romancista russo Dostoiévski foi uma das mais fluentes de seu tempo e a que mais fascínio despertou, quer pelos Conflitos de seus personagens quer por seus temas invulgarmente complexos e, sobretudo, pela intensidade passional da ação que se desenrola em seus enredos. Fiodor Mikhaílovitch Dostoiévski nasceu em Moscou em 11 de novembro (30 de outubro segundo o calendário juliano) de 1821. Mikhail Andreievitch, seu pai, era médico do Hospital dos Pobres, onde residia com a mulher, Maria Fiodorovna Netchaiev. O futuro escritor cresceu nesse ambiente. Em 1831 a família mudou-se para Tula, perto de Moscou, onde Fiodor e seus quatro irmãos desfrutaram de vida mais livre do autoritarismo paterno. Em 1834 Fiodor e Mikhail, o irmão mais velho, foram para o Liceu Tchermak de Moscou e, três anos mais tarde, perderam a mãe. Dostoiévski cursou em seguida a Escola de Engenharia Militar. Em 1839, seu pai foi assassinado por servos revoltados contra Sua conduta despótica: o fato causou forte comoção no jovem Fiodor.
Começava a projetar-se nos meios culturais e a frequentar um círculo de socialistas. Preso em abril de 1849, em dezembro se viu condenado ao fuzilamento. Já sob a tensão dos preparativos, recebeu a notícia da comutação da pena pelo czar. Lembranças angustiadas desse episódio doloroso povoariam toda sua obra posterior. A sentença foi transformada em exílio na Sibéria, com trabalhos forçados, e Dostoiévski ficou preso na fortaleza de Omsk por quatro anos. Sofreu então o primeiro ataque de epilepsia, doença que o perseguiu por muito tempo. Libertado em 1854, retomou a atividade literária e fundou, com o irmão Mikhail, a revista Vremia, suspensa depois pelo governo. Casou-se duas vezes: a primeira, em 1857, com Maria Dmitrievna Issaiev, e depois com Anna Grigorievna Snitkína, a quem, premido pelas dívidas acumuladas, ditaria, em 1866, o romance Igrok (O jogador), obra de fundo autobiográfico, escrita em apenas 26 dias para saldar dívidas com um editor. 
Em 1868 apareceu Idiot (O idiota), talvez o romance mais típico de Dostoiévski, que provocou perplexidade geral nos meios intelectuais. Mesmo um inimigo como o conde Saltikov (N. Chchedrin), parodiado na obra, não deixou de reconhecer o valor de muitas partes do romance, assim como Tolstói, que, embora reclamasse de sua construção “caótica”, se encantou com a obra. Em meio a paixões, crimes e baixezas de todo tipo, o príncipe Míchkin é uma espécie de Dom Quixote do cristianismo mais puro, um ideal daquilo pelo que o próprio Dostoiévski ansiava desesperadamente e que não conseguiu acreditar. Pois o cristianismo do escritor é radical, mas impuro e não sabe resistir às tentações da carne e da vontade demoníaca de destruir. Na época, porém, perguntava-se aonde queria chegar Dostoiévski com aquela atmosfera “de demência”, conforme um de seus críticos. O príncipe Míchkin é idealizado como uma antítese de Raskolnikov (estudante e homicida perseguido pela memória de seu crime quando paupérrimo, resolve matar uma miserável e inútil usurária, para salvar a si próprio e a sua família, em Crime e Castigo). Se este acha que pode tudo, o príncipe é a vítima de tudo que o circunda, mas uma vítima eleita, imagem simbólica do eslavismo cristão do autor, vencido pelas forças maléficas desencadeadas a seu redor.
     Na segunda década do século XX começou uma revisão crítica que abandonou clichês sobre o messianismo do autor, passou a valorizar os aspectos paródicos de sua obra e de sua capacidade de construção artística por trás do aparente “caos”. Por fim, com as ideias de Mikhail Bakhtin sobre o “romance polifônico”, ou seja, aquele em que se apresentaria uma multiplicidade de vozes, surgiu a ideia de um Dostoiévski menos rigidamente messiânico e ainda mais complexo. Dostoiévski morreu em São Petersburgo, em 9 de fevereiro (28 de janeiro, segundo o calendário juliano) de 1881. Sua influência sobre toda a literatura universal do século XX foi avassaladora. E sem Dostoiévski não teriam sido possíveis as pesquisas em profundidade de psicólogos como Nietzsche e Freud, além de um conhecimento por assim dizer íntimo dos motivos da alienação humana e dos caminhos para sua superação.
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O Idiota (Fiódor Dostoiévski) 
| Tatiana Feltrin




Terceira Parte
O Idiota: Quarta Parte - Epílogo
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