Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
Quarta Parte
Epílogo
. Precipitando-se para Pávlovsk a viúva do mestre-escola se dirigiu direta- mente a
Dária Aleksiéievna que já estando assombrada com os acontecimentos da
véspera, ainda ficou em um pânico maior, ante o que lhe foi contado.
Resolveram as duas senhoras comunicarem-se imediatamente com Liébediev
que, como era natural, estava preocupadíssimo com o seu inquilino e amigo.
Contou-lhes Vera Liébedieva tudo quanto sabia.
A conselho de Liébediev
decidiram seguir os três para Petersburgo com o fim de o mais depressa possível
evitar o que pudesse estar para acontecer. E assim foi que, cerca das onze horas
da manhã do dia seguinte, o apartamento de Rogójin foi arrombado na presença
da polícia, das senhoras, de Liébediev e de um irmão de Rogójin, Semión
Semiónovitch, que morava na outra ala - ato esse facilitado pela declaração do
porteiro que, depondo, disse ter visto à noite Parfión Semiónovitch entrar pela
porta da frente, com uma visita, mas, pelo que lhe pareceu, às escondidas.
Durante dois meses esteve Rogójin prostrado, com inflamação cerebral, tendo
sido julgado logo que se restabeleceu. Com muita exatidão deu provas
irretorquíveis sobre cada ponto do libelo, em consequência do que absolutamente
não foi trazido à baila o nome de Míchkin. Durante o julgamento, conquanto
taciturno, não contradisse Rogójin o eloquente conselho judicial que provou, com
clareza e lógica, ter o crime sido cometido em consequência da febre cerebral
que acometera o réu muito antes da perpetração do crime que, assim, pois, mais
não foi do que um resultado de suas perturbações. Não acrescentou Rogójin coisa
alguma em contestação, mantendo com a mesma clareza exata o seu
depoimento feito durante o inquérito relativamente às circunstâncias ligadas ao
crime. Foi sentenciado, em vista das circunstâncias atenuantes, a somente quinze
anos de servidão penal na Sibéria. Ouviu a sentença soturnamente calado e como
que “sonhando”. Toda a sua enorme fortuna, de que só uma parte
comparativamente pequena fora dilapidada nos primeiros meses de
libertinagem, passou para o seu irmão, Semión Semiónovitch, com grande
satisfação deste. Sua velha mãe ainda vive, e parece que, lá uma vez ou outra, se
recorda de seu filho favorito, Parfión,
decerto, porém, muito vagamente, Deus lhe tendo poupado o espírito e o
coração do conhecimento do golpe desferido sobre o seu melancólico lar.
Liébediev, Keller, Gánia, Ptítsin, e muitas outras pessoas desta história, continuam
a viver, tendo mudado pouco, quase nada havendo a relatar sobre eles.
Ippolít, quinze dias depois de Nastássia Filíppovna, morreu em terrível estado de
excitação, e decerto mais cedo do que calculara.
Kólia ficou profundamente
marcado pelos acontecimentos, ligando-se mais intimamente do que nunca à sua
mãe, Nina Aleksándrovna, que vive inquieta com esse seu filho demasiado
pensativo para a idade. Mas de uma coisa ela não tem dúvida: ele tornar-se-á um
homem útil e ativo; entre outras coisas, a acomodação do futuro de Míchkin foi,
parcialmente, obra sua.
Desde muito tendo notado que Evguénii Pávlovitch
Radómskii era uma pessoa diferente das outras cujas amizades fora fazendo, o
procurou para contar o caso do príncipe e sua consequente situação. Evguénii
Pávlovitch não o decepcionou na estima com que era distinguido, pois tomou logo
o maior interesse pela sorte do infortunado “idiota” que, devido a seus cuidados e
diligências, foi reenviado ao Dr. Schneider, na Suíça.
Considerando-se,
francamente, um homem supérfluo na Rússia, Evguénii Pávlovitch seguiu para o
estrangeiro, decidido a passar uma grande temporada na Europa, fazendo, então,
várias visitas a seu amigo doente na instituição do Dr. Schneider. Visitava-o, no
mínimo, de três em três meses. Mas Schneider franzia as sobrancelhas e
meneava a cabeça, cada vez mais desanimado; pressentia, categoricamente, ser
impossível uma remissão, de vez em quando se permitindo um ou outro vaticínio
quanto a possibilidades ainda mais melancólicas. Isso afetou muito o coração de
Evguénii Pávlovitch; e não é um coração qualquer, esse seu, como fica
demonstrado ante o fato de Kólia lhe escrever cartas que recebem constantes
respostas.
Há ainda um outro fato que patenteia um traço bondoso do seu caráter,
e aqui nos apressamos em mencionar qual seja: depois de cada visita sua ao Dr.
Schneider, Evguénii Pávlovitch sempre remete uma carta a certa pessoa de
Petersburgo, com as mais simpáticas e minuciosas informações sobre o estado
da saúde do príncipe. Acompanhadas com as mais respeitosas expressões de
devotamento, essas cartas invariavelmente (e cada vez com mais frequência)
contêm um franco desenvolvimento de ideias, vistas e sentimentos, qualquer
coisa que, em realidade, se aproxima de um sentimento fervoroso de amizade
mal disfarçada através disso tudo. Essa pessoa, que se corresponde com ele
(conquanto, deste lado, as cartas sejam menos frequentes) e que é assim
merecedora de tanta
atenção e respeito da sua parte, é Vera Liébedieva.
Nunca nos foi dado nos
certificarmos de como essas relações nasceram entre ambos; não resta dúvida,
porém, terem começado ao tempo do colapso total do príncipe, quando Vera
Liébedieva ficou tão aflita que até caiu doente. Mas, de um modo exato, qual o
incidente que os levou a esse conhecimento e amizade, não sabemos informar.
Aludimos a essas cartas principalmente porque contêm notícias sobre os
Epantchín e, especialmente, sobre Agláia. Segundo uma carta de Paris, um
pouco desconexa, Evguénii Pávlovitch contava que, após uma súbita e
extraordinária atração por um conde polaco exilado, Agláia se casara logo,
apesar da oposição dos pais que só tinham acabado dando consentimento por
haver possibilidades de um terrível escândalo.
Depois de seis meses de silêncio,
chegou nova carta de Evguénii Pávlovitch, mandando à pessoa com quem se
correspondia uma comprida e minuciosa descrição de como, em sua última
visita à instituição do Dr. Schneider, se tinha encontrado lá com o Príncipe
Chtch... e toda a família Epantchín (exceto, naturalmente, Iván Fiódorovitch,
retido, pelos negócios, em Petersburgo). E que fora um estranho encontro, todos
tendo demonstrado extraordinário contentamento, não cessando Adelaída e
Aleksándra de se demonstrarem incalculavelmente gratas a ele. “por sua
angélica bondade para com o desgraçado príncipe”.
Lizavéta Prokófievna não
parava de chorar amargamente, à vista da aflita e humilhada condição de
Míchkin. Evidentemente tudo lhe fora perdoado. O Príncipe Chtch... fizera
mesmo umas poucas observações justas e sinceras. Que lhe parecera a ele,
Evguénii Pávlovitch, que Adelaída e o marido não estavam em muito perfeita
harmonia, mas que, com certeza, no futuro, Adelaída ainda viria a permitir que o
seu impetuoso temperamento fosse guiado pelo Príncipe Chtch... que tinha bom
senso e experiência. E seria de esperar, de mais a mais, que as cruéis
experiências que a família sofrera através, principalmente, da recente aventura
de Agláia com o conde exilado, viessem a causar profunda impressão na irmã.
Que tudo quanto a família receara ao negar Agláia ao conde polaco, se tinha, em
menos de seis meses, confirmado, e até da pior maneira, com surpresa que eles
nunca haviam sequer sonhado.
Esclareceu-se que o conde nem conde era e que,
se estava exilado como dizia, era isso devido a certa aventura sombria e duvidosa
do seu passado. O tratante fascinara Agláia pela sua extraordinária “nobreza” de
alma dilacerada em angústia patriótica. Fascinação essa que, mesmo depois de
casada, subira a ponto de fazer que ela se tornasse sócia de um Comitê pela
restauração da Polônia e desse em frequentar o confessionário de um célebre
pregador católico, passando logo o seu espírito a lhe sofrer a
influência.
Quanto às vastas propriedades do conde polaco, e de que antes
mostrara ao Príncipe Chtch... e a Lizavéta Prokófievna as mais incontestáveis
provas, não passavam de um mito. E ainda mais: que seis meses após o
casamento, o conde e o seu amigo, o célebre confessor, haviam conseguido
indispor Agláia completamente com a família, de modo que desde meses nem
sequer tinham notícias dela.
Restava de fato ainda muita coisa a contar: mas
Lizavéta Prokófievna, filha e genro estavam tão aborrecidos com esse “terrível
caso” que relutaram em aludir a outros pontos durante essa conversa com
Evguénii Pávlovitch, muito embora cientes de que ele já sabia a história da
última peripécia de Agláia. Como Lizavéta Prokófievna se sentia ansiosa por
voltar à Rússia! Segundo o relato de Evguénii Pávlovitch, ela agora se mostrava
mais amarga e injusta do que nunca em suas críticas contra tudo da Europa.
-
Eles aqui nem sabem fazer um pão decente! No inverno ficam mais entanguidos
do que camundongos em uma adega. Aqui só me foi dado o consolo de ao menos
poder chorar lágrimas bem russas por este desgraçado. (Apontava para o
príncipe que nem a tinha reconhecido.) Já chega de seguir as nossas venetas! Já é
tempo de sermos sensatos. Tudo isto, toda esta vida aqui no estrangeiro, e toda
esta Europa tão gabada, tudo, mas tudo, não passa de uma fantasia! E todos nós,
no estrangeiro, somos fantasia e nada mais!... Guarde bem estas minhas
palavras, pois irá me dar razão pessoalmente! - concluiu ela, de modo quase
raivoso, ao se despedir de Evguénii Pávlovitch.
FIM
______________
A obra do romancista russo Dostoiévski foi uma das mais fluentes de seu tempo e
a que mais fascínio despertou, quer pelos Conflitos de seus personagens quer por
seus temas invulgarmente complexos e, sobretudo, pela intensidade passional da
ação que se desenrola em seus enredos. Fiodor Mikhaílovitch Dostoiévski nasceu
em Moscou em 11 de novembro (30 de outubro segundo o calendário juliano) de
1821. Mikhail Andreievitch, seu pai, era médico do Hospital dos Pobres, onde
residia com a mulher, Maria Fiodorovna Netchaiev. O futuro escritor cresceu
nesse ambiente. Em 1831 a família mudou-se para Tula, perto de Moscou, onde
Fiodor e seus quatro irmãos desfrutaram de vida mais livre do autoritarismo
paterno. Em 1834 Fiodor e Mikhail, o irmão mais velho, foram para o Liceu
Tchermak de Moscou e, três anos mais tarde, perderam a mãe. Dostoiévski
cursou em seguida a Escola de Engenharia Militar. Em 1839, seu pai foi
assassinado por servos revoltados contra Sua conduta despótica: o fato causou
forte comoção no jovem Fiodor.
Começava a projetar-se nos meios culturais e a frequentar um círculo de
socialistas.
Preso em abril de 1849, em dezembro se viu condenado ao fuzilamento. Já sob a
tensão dos preparativos, recebeu a notícia da comutação da pena pelo czar.
Lembranças angustiadas desse episódio doloroso povoariam toda sua obra
posterior. A sentença foi transformada em exílio na Sibéria, com trabalhos
forçados, e Dostoiévski ficou preso na fortaleza de Omsk por quatro anos. Sofreu
então o primeiro ataque de epilepsia, doença que o perseguiu por muito tempo.
Libertado em 1854, retomou a atividade literária e fundou, com o irmão Mikhail,
a revista Vremia, suspensa depois pelo governo. Casou-se duas vezes: a primeira,
em 1857, com Maria Dmitrievna Issaiev, e depois com Anna Grigorievna
Snitkína, a quem, premido pelas dívidas acumuladas, ditaria, em 1866, o romance
Igrok (O jogador), obra de fundo autobiográfico, escrita em apenas 26 dias para
saldar dívidas com um editor.
Em 1868 apareceu Idiot (O idiota), talvez o romance mais típico de Dostoiévski, que provocou perplexidade geral nos meios intelectuais. Mesmo um inimigo como o conde Saltikov (N. Chchedrin), parodiado na obra, não deixou de reconhecer o valor de muitas partes do romance, assim como Tolstói, que, embora reclamasse de sua construção “caótica”, se encantou com a obra. Em meio a paixões, crimes e baixezas de todo tipo, o príncipe Míchkin é uma espécie de Dom Quixote do cristianismo mais puro, um ideal daquilo pelo que o próprio Dostoiévski ansiava desesperadamente e que não conseguiu acreditar. Pois o cristianismo do escritor é radical, mas impuro e não sabe resistir às tentações da carne e da vontade demoníaca de destruir. Na época, porém, perguntava-se aonde queria chegar Dostoiévski com aquela atmosfera “de demência”, conforme um de seus críticos. O príncipe Míchkin é idealizado como uma antítese de Raskolnikov (estudante e homicida perseguido pela memória de seu crime quando paupérrimo, resolve matar uma miserável e inútil usurária, para salvar a si próprio e a sua família, em Crime e Castigo). Se este acha que pode tudo, o príncipe é a vítima de tudo que o circunda, mas uma vítima eleita, imagem simbólica do eslavismo cristão do autor, vencido pelas forças maléficas desencadeadas a seu redor. Na segunda década do século XX começou uma revisão crítica que
abandonou clichês sobre o messianismo do autor, passou a valorizar os aspectos
paródicos de sua obra e de sua capacidade de construção artística por trás do
aparente “caos”. Por fim, com as ideias de Mikhail Bakhtin sobre o “romance
polifônico”, ou seja, aquele em que se apresentaria uma multiplicidade de vozes,
surgiu a ideia de um Dostoiévski menos rigidamente messiânico e ainda mais
complexo. Dostoiévski morreu em São Petersburgo, em 9 de fevereiro (28 de
janeiro, segundo o calendário juliano) de 1881. Sua influência sobre toda a
literatura universal do século XX foi avassaladora. E sem Dostoiévski não teriam
sido possíveis as pesquisas em profundidade de psicólogos como Nietzsche e
Freud, além de um conhecimento por assim dizer íntimo dos motivos da
alienação humana e dos caminhos para sua superação.
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| Tatiana Feltrin
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