em busca do tempo perdido
volume I
No Caminho de Swann
ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust
um amor de swann
III(h)
Como tudo o que cercava Odette e que não era de certo modo senão o meio pelo qual podia vê-la e conversar com ela, Swann gostava da casa dos Verdurin. Ali, como no fundo de todas as diversões, jantares, música, jogos, ceias de fantasia, dias de campo, noites de teatro, até nas raras “grandes festas” em honra dos “maçantes”, estava presente Odette, via Odette, falava com Odette, dom inestimável que os Verdurin faziam a Swann ao convidá-lo, e achava-se melhor do que em qualquer outra parte no pequeno grupo, ao qual procurava atribuir méritos reais, pois imaginava assim que o frequentaria por gosto a vida inteira. E como não se atrevia a confessar, por medo de não o crer, que sempre amaria Odette, procurando ao menos supor que frequentaria sempre os Verdurin (proposição que a priori erguia menos objeções de princípio da parte de sua inteligência), via-se, no futuro, a encontrar-se todas as noites com Odette; isso talvez não quisesse dizer que a amaria sempre, mas de momento, enquanto a amava, já lhe era bastante crer que não passaria um dia sem vê-la. “Que ambiente encantador”, pensava ele. “Como é verdadeira, no fundo, a vida que ali se leva! Como se é ali mais inteligente, mais artista que na alta sociedade! Que amor sincero à pintura e à música tem a senhora Verdurin, apesar de pequenos exageros um tanto ridículos! Que paixão pelas obras, que desejo de agradar aos artistas! Ela tem uma ideia inexata da gente da sociedade; mas, com tudo isso, a sociedade tem uma ideia ainda mais falsa dos meios artísticos. Talvez eu não tenha grandes necessidades intelectuais a satisfazer na conversação, mas me dou perfeitamente bem com Cottard, apesar dos seus trocadilhos idiotas. E quanto ao pintor, se é desagradável sua pretensão quando procura causar efeito, em compensação é uma das mais belas inteligências que já conheci. E antes de tudo, lá nos sentimos livres, pode a gente fazer o que quer sem constrangimento nem cerimônia. Que dispêndio de bom humor se faz por dia naquele salão! Decididamente, salvo algumas raras exceções, daqui por diante só frequentarei aquele meio. É lá que formarei meus hábitos e minha vida.”
ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust
um amor de swann
Como tudo o que cercava Odette e que não era de certo modo senão o meio pelo qual podia vê-la e conversar com ela, Swann gostava da casa dos Verdurin. Ali, como no fundo de todas as diversões, jantares, música, jogos, ceias de fantasia, dias de campo, noites de teatro, até nas raras “grandes festas” em honra dos “maçantes”, estava presente Odette, via Odette, falava com Odette, dom inestimável que os Verdurin faziam a Swann ao convidá-lo, e achava-se melhor do que em qualquer outra parte no pequeno grupo, ao qual procurava atribuir méritos reais, pois imaginava assim que o frequentaria por gosto a vida inteira. E como não se atrevia a confessar, por medo de não o crer, que sempre amaria Odette, procurando ao menos supor que frequentaria sempre os Verdurin (proposição que a priori erguia menos objeções de princípio da parte de sua inteligência), via-se, no futuro, a encontrar-se todas as noites com Odette; isso talvez não quisesse dizer que a amaria sempre, mas de momento, enquanto a amava, já lhe era bastante crer que não passaria um dia sem vê-la. “Que ambiente encantador”, pensava ele. “Como é verdadeira, no fundo, a vida que ali se leva! Como se é ali mais inteligente, mais artista que na alta sociedade! Que amor sincero à pintura e à música tem a senhora Verdurin, apesar de pequenos exageros um tanto ridículos! Que paixão pelas obras, que desejo de agradar aos artistas! Ela tem uma ideia inexata da gente da sociedade; mas, com tudo isso, a sociedade tem uma ideia ainda mais falsa dos meios artísticos. Talvez eu não tenha grandes necessidades intelectuais a satisfazer na conversação, mas me dou perfeitamente bem com Cottard, apesar dos seus trocadilhos idiotas. E quanto ao pintor, se é desagradável sua pretensão quando procura causar efeito, em compensação é uma das mais belas inteligências que já conheci. E antes de tudo, lá nos sentimos livres, pode a gente fazer o que quer sem constrangimento nem cerimônia. Que dispêndio de bom humor se faz por dia naquele salão! Decididamente, salvo algumas raras exceções, daqui por diante só frequentarei aquele meio. É lá que formarei meus hábitos e minha vida.”
E como as qualidades que supunha intrínsecas aos Verdurin não eram mais que o
reflexo que projetavam sobre as suas pessoas os prazeres que desfrutava naquela casa
em seus amores com Odette, aquelas qualidades se tornavam mais sérias, mais
profundas, mais vitais, quando esses prazeres também o eram. Quantas vezes não lhe
proporcionara a sra. Verdurin o que para ele constituía toda a felicidade? Como naquela
noite em que se sentia angustiado porque Odette conversara mais com um convidado do
que com qualquer outro, e em que, irritado com ela, não queria tomar a iniciativa de lhe
perguntar se voltariam juntos para casa, a sra. Verdurin lhe trouxera a paz e a alegria,
indagando espontaneamente: “Odette, você vai levar o senhor Swann, não é?”. Assim,
na véspera daquela temporada de veraneio, receoso de que Odette fosse sozinha e não
mais pudesse vê-la diariamente, a sra. Verdurin os convidara a ambos para a sua casa de
campo. Deixando, pois, sem querer, que a gratidão e o interesse se infiltrassem na sua
inteligência e influíssem em suas ideias, Swann chegava a ponto de proclamar que a sra.
Verdurin era uma grande alma. Se algum de seus antigos camaradas da Escola do
Louvre lhe falava de pessoas atraentes ou ilustres: “Eu prefiro mil vezes os Verdurin”,
respondia ele. E, com uma solenidade que era nova em seu modo de ser:
“São criaturas magnânimas, e a magnanimidade, afinal, é a única coisa que importa e
nos distingue neste mundo. Sabes? Só há duas classes de criaturas: as magnânimas e as
outras; e cheguei a uma idade em que é preciso tomar partido, decidir de uma vez por
todas a quem se quer amar e a quem se quer desdenhar, apegar-se àqueles a quem a
gente ama e não mais deixá-los até a morte, para resgatar o tempo perdido com os
outros. Pois bem — acrescentava ele com essa leve emoção que experimentamos
quando, mesmo sem o notar, dizemos uma coisa não porque seja verdadeira, mas
porque sentimos prazer em dizê-la e a escutamos através de nossa própria voz como se
não viesse de nós mesmos —, a sorte está lançada, resolvi amar apenas aos corações
magnânimos e só viver na magnanimidade. Tu me perguntas se a senhora Verdurin é
deveras inteligente. Asseguro-te que ela nos deu provas de uma nobreza de coração, de
uma elevação de alma a que não se atinge sem igual elevação de pensamento. Possui sem
dúvida uma profunda compreensão das artes. Mas não é talvez nisso que ela se mostra
mais admirável; e essa ou aquela pequena ação engenhosamente, delicadamente boa que
ela fez por mim, num gesto seu familiarmente sublime, revelam mais profunda
compreensão da vida que todos os tratados de filosofia.”
Poderia no entanto convir em que havia velhos amigos de seus pais tão simples
como os Verdurin, companheiros de juventude igualmente afeiçoados à arte, outros
conhecidos seus de grande coração e que, todavia, não mais tornara a ver; desde que
optara pela simplicidade, as artes e a magnanimidade. Mas esses não conheciam Odette e,
se a conhecessem, não se preocupariam em aproximá-la dele.
De modo que não havia decerto, em toda a sociedade dos Verdurin, um único fiel
que os estimasse ou julgasse estimá-los tanto como Swann. E contudo, quando o sr.
Verdurin dissera que não ia com Swann, não só havia expressado o seu próprio
pensamento como também adivinhara o da mulher. Por certo Swann dedicava a Odette
uma afeição demasiado particular e da qual negligenciara tomar a sra. Verdurin como
confidente cotidiana; por certo a própria discrição com que se utilizava da hospitalidade
dos Verdurin, abstendo-se muitas vezes de comparecer a um jantar por um motivo que
eles não suspeitavam e em vez do qual adivinhavam o desejo de não faltar a um convite
dos “maçantes”; por certo também a progressiva descoberta que iam fazendo da sua
brilhante situação mundana, apesar de todas as preocupações que ele tomava para ocultá-la, tudo isso contribuía para sua irritação contra Swann. Mas a razão profunda era outra.
E que desde logo haviam pressentido em Swann um espaço reservado e impenetrável,
onde ele continuava a professar silenciosamente para si mesmo que a princesa de Sagan
não era grotesca e que os gracejos de Cottard não eram engraçados, enfim, embora ele
jamais saísse da sua amabilidade e nunca se revoltasse contra os seus dogmas, a
impossibilidade de lhos impor, de o converter inteiramente, como jamais haviam
encontrado coisa igual em outra pessoa. Ter-lhe-iam perdoado que frequentasse os
maçantes (a quem aliás, no fundo do coração, Swann preferia mil vezes os Verdurin e
todo o pequeno núcleo) se ele consentisse, como bom exemplo, em renegá-los na
presença dos fiéis. Mas era essa uma abjuração que bem compreendiam não lhe poder
arrancar.
Que diferença com um “novo” que Odette lhes pedira para convidar, embora só o
houvesse encontrado umas poucas vezes, e sobre o qual fundavam muitas esperanças, o
conde de Forcheville! (Aconteceu que vinha a ser justamente cunhado de Saniette, o que
encheu de espanto aos fiéis: o velho arquivista era tão humilde de maneiras que sempre
o haviam julgado de posição social inferior à sua e não esperavam vir a saber que ele
pertencia a uma sociedade abastada e relativamente aristocrática.) Na verdade, Forcheville
era grosseiramente esnobe, ao passo que Swann não o era; na verdade, estava longe de
colocar, como Swann, a sociedade dos Verdurin acima de todas as outras. Mas não tinha
aquela delicadeza de gênio que impedia Swann de associar-se às críticas evidentemente
falsas que dirigia a sra. Verdurin contra pessoas que ele conhecia. Quanto às tiradas
pretensiosas e vulgares que o pintor lançava certos dias, às piadas de caixeiro-viajante
que Cottard arriscava, e para as quais Swann, que estimava a ambos, facilmente achava
escusas, mas não tinha a coragem e a hipocrisia de aplaudir, Forcheville era pelo
contrário de um nível intelectual que lhe permitia pasmar e maravilhar-se de umas, sem
aliás as compreender, e deleitar-se com as outras. E justamente o primeiro jantar dos
Verdurin a que Forcheville compareceu pôs em foco todas essas diferenças, fez ressaltar
as suas qualidades e precipitou o desvalimento de Swann.
Havia naquele jantar, além dos convivas habituais, um professor da Sorbonne,
Brichot, que conhecera o casal Verdurin na estação balneária e que, se as funções
universitárias e os trabalhos de erudição não lhe tornassem muito raros os momentos de
liberdade, de bom grado compareceria mais seguidamente. Pois tinha ele essa
curiosidade, essa superstição da vida que, em qualquer profissão, ligada a certo
ceticismo quanto ao objeto de seus estudos, dá a certos homens inteligentes, médicos que
não acreditam na medicina, professores de liceu que não acreditam em temas latinos, a
reputação de espíritos largos, brilhantes, e até superiores. Na casa dos Verdurin, quando
falava de filosofia e história, afetava buscar suas comparações no que havia de mais
atual, primeiro porque julgava que tais matérias não são mais que uma preparação para a
vida e imaginava encontrar em ação naquele meio o que até então só conhecera pelos
livros, e depois talvez porque, como outrora lhe haviam inculcado grande respeito a
certos assuntos, respeito que conservava sem saber, julgava despojar-se da sua
personalidade de universitário, tomando com esses temas liberdades que lhe pareciam
tais unicamente porque continuava tão universitário como antes.
Logo que sentaram à mesa, como o sr. de Forcheville, colocado à direita da sra.
Verdurin, que em atenção ao “novato” muito se esmerara no vestir, lhe dissesse:
“Original essa toalete branca”, o doutor, que não cessara de observá-lo, tão curioso
estava de saber como era o que ele chamava um “de”, e que procurava ensejo de atrair-lhe a atenção e entrar mais em contato com o conde, apanhou no ar a palavra “branca” e,
sem erguer o nariz do prato, disse: “Branca? Branca de Castela?”; depois, sem mover a
cabeça, lançou furtivamente à direita e à esquerda olhares incertos e sorridentes. Ao
passo que Swann, com o inútil e doloroso esforço que fez para sorrir, demonstrou que
julgava estúpido esse trocadilho, Forcheville testemunhara ao mesmo tempo que lhe
apreciava a finura e que sabia viver, contendo nos justos limites uma alegria cuja
franqueza encantara a sra. Verdurin.
— Que me diz de um sábio assim? — perguntou ela a Forcheville. — Não há meio
de conversar dois minutos a sério com ele. Será que o senhor sai com essas no hospital?
— acrescentou, voltando-se para o doutor. — Então não deve ser muito aborrecido por
lá. Vejo que terei de pedir que me internem.
— Creio que o doutor se referia àquela megera da Branca de Castela, se assim me
atrevo a expressar-me. Não é verdade, minha senhora? — perguntou Brichot à sra.
Verdurin que, sem respiração, com os olhos fechados, precipitou o rosto nas mãos, de
onde se escaparam gritos abafados.
— Meu Deus, minha senhora, eu não desejaria escandalizar as almas reverentes, se
as há em torno desta mesa, sub rosa… Reconheço aliás que a nossa inefável república
ateniense — ó se, e quanto! — poderia honrar naquela Capeto obscurantista o primeiro
dos chefes de polícia de pulso. É verdade, meu caro anfitrião, é verdade, é verdade —
continuou, com a sua voz bem timbrada que destacava cada sílaba, em resposta a uma
objeção do sr. Verdurin. — A Crônica de são Dinis, cuja segurança de informação não se
pode contestar, não deixa nenhuma dúvida a esse respeito. Nenhuma outra poderia ser
tão bem escolhida como patrona de um proletariado laicizante como essa mãe de um
santo, a quem aliás fez passar maus quartos de hora, como diz Suger e outros são
Bernardos, pois com ela cada qual tinha o seu.[1]
— Quem é esse senhor? — perguntou Forcheville à sra. Verdurin. — Parece de
primeira.
— Como!, não conhece o famoso Brichot? É célebre em toda a Europa.
— Ah!, com que então é Bréchot? — exclamou Forcheville, que não ouvira direito.
— Que me diz a senhora! — acrescentou, pregando no homem célebre os olhos
arregalados. — É sempre interessante jantar com um homem em evidência. Mas só
convidam gente assim? Pelo visto, ninguém se aborrece nesta casa.
— Oh! O que acontece — disse modestamente a sra. Verdurin — é que eles aqui se
sentem à vontade. Falam do que querem e a conversa se torna verdadeiramente
esfuziante. E Brichot, hoje, não está para que se diga, eu já o vi deslumbrante, de a gente
cair de joelhos. Pois bem! Na casa dos outros, não é mais o mesmo homem, não tem
mais espírito, é preciso arrancar-lhe as palavras, torna-se até aborrecido.
— É curioso! — disse Forcheville espantado.
Um gênero de espírito como o de Brichot seria tido por pura estupidez no meio em
que Swann passara a mocidade, embora não seja incompatível com uma inteligência
verdadeira. E a do professor, vigorosa e bem alimentada, poderia causar inveja a muitos
mundanos que Swann achava espirituosos. Mas de tal modo lhe haviam estes inculcado
os seus gostos e antipatias, ao menos no tocante à vida mundana, e até naquela das suas
partes anexas que mais pertence ao domínio da inteligência, isto é, a conversação, que
Swann só podia achar os gracejos de Brichot pedantes, vulgares e insuportavelmente
grosseiros. E depois, sentia-se chocado, no hábito que tinha das boas maneiras, com o
tom rude e militar que afetava para com todos o fogoso universitário. Enfim, talvez
perdesse ele muito da sua indulgência naquela noite ao ver as amabilidades da sra.
Verdurin com aquele Forcheville que Odette tivera a ideia de trazer. Um pouco confusa
perante Swann, perguntara-lhe ela ao chegar:
— E então? Que acha de meu convidado?
E ele, notando pela primeira vez que Forcheville, a quem de há muito conhecia, bem
poderia agradar a uma mulher e era um belo homem, respondera: “Imundo!”. Por certo
não tinha a mínima veleidade de ciúmes, mas não se sentia tão feliz como habitualmente e
quando Brichot, começando a contar a história da mãe de Branca de Castela “que
estivera durante anos com Henrique Plantageneta antes de casar com ele”,[2] quis que
Swann corroborasse, dizendo-lhe “Não é, senhor Swann?” no tom marcial que se adota
para pôr-se ao alcance de um campônio ou para dar ânimo a um soldado, Swann cortou
o efeito de Brichot, com grande furor da dona da casa, respondendo que o
desculpassem de se interessar tão pouco por Branca de Castela, mas que tinha uma
pergunta a fazer ao pintor. Este, com efeito, fora visitar naquela tarde a exposição de um
artista recém-falecido, amigo da sra. Verdurin, e Swann queria saber por ele (pois
apreciava o seu gosto) se na verdade havia naquelas últimas obras algo mais do que a
assombrosa virtuosidade das precedentes.
— Desse ponto de vista, era extraordinário, mas não me parecia, como se diz, de
uma arte muito “elevada” — disse Swann, sorrindo.
— Elevada… ao pináculo da fama — interrompeu Cottard, erguendo os braços
com simulada gravidade.
Toda a mesa rebentou numa gargalhada.
— Não lhe dizia que não se pode guardar o sério com ele? — disse a sra. Verdurin
a Forcheville. — Quando menos se espera, sai com uma das suas.
Mas notou que Swann era o único que não havia rido. De resto, não lhe agradava
que Cottard gracejasse à sua custa diante de Forcheville. Mas o pintor, em vez de
responder devidamente a Swann, o que provavelmente teria feito se estivesse a sós,
preferiu fazer-se admirado dos convivas, com uma tirada sobre a habilidade do mestre
desaparecido.
— Aproximei-me daquilo — dizia ele — e meti o nariz para ver como era feito.
Qual! Não se poderia dizer se era feito com cola, com rubis, com sabão, com bronze,
com sol, ou com caca!
— Onze e um, doze! — exclamou demasiado tarde o doutor, cuja interrupção
ninguém pôde compreender.
— Parece que não é nada — tornou o pintor —, mas é impossível descobrir o
truque, como também acontece com a Ronda e os Regentes, e é ainda mais forte do que
Rembrandt e Hals. Juro que ali há de tudo.
E como os cantores que, chegando à nota mais alta que podem dar continuam em
voz de falsete, piano, contentou-se em murmurar, rindo, como se com efeito aquela
pintura fosse irrisória à força de beleza:
— Aquilo cheira, tonteia, afoga, comicha, e não há jeito de saber como saiu, é
bruxaria, é velhacada, é milagre (rindo francamente): é desonesto. — E estacando,
erguendo gravemente a cabeça, tomando um tom de baixo profundo que procurou
tornar harmonioso, acrescentou: — E é tão leal!
Exceto no instante em que dissera “Mais forte que a Ronda”, blasfêmia que
provocara um protesto da sra. Verdurin, que tinha a Ronda como a maior obra-prima do
universo juntamente com a Nona e a Samotrácia, e no “feito com caca”, que fizera
Forcheville lançar uma olhadela circular pela mesa, para ver se o termo passava e em
seguida esboçou um sorriso indulgente e conciliador, todos os convivas, menos Swann,
tinham fixado no pintor um olhar fascinado de admiração.
— Como ele me diverte quando se embala assim! — exclamou, quando o pintor parou de falar, a sra Verdurin, encantada de que a mesa estivesse tão interessante justamente no dia em que o sr. de Forcheville vinha pela primeira vez. — E tu, que tens de ficar aí de boca aberta como um bobo? — disse ela ao marido. — Já sabes que ele fala muito bem; até parece que é a primeira vez que o escutas. Se o senhor o tivesse visto enquanto estava falando: ele bebia as suas palavras. E amanhã nos recitará tudo o que o senhor disse, sem saltar uma vírgula.
— Mas não, não é blague — disse o pintor, encantado com seu sucesso. — Parece
que julga que eu me estou exibindo, por chiquê; vou levá-la para que o veja, e diga se
exagerei alguma coisa; aposto o meu ingresso como voltará mais embalada do que eu!
— Mas nós não pensamos que seja exagero, queremos apenas que o senhor coma, e
que o meu marido também coma; sirva outra vez linguado ao senhor, bem vê que o seu
prato já esfriou. Não estamos com tanta pressa, você serve como se houvesse incêndio
em casa. Espere um pouco para trazer a salada.
continua na página 171...
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Leia também:
Volume 1
No Caminho de Swann (III - um amor de swann, Como tudo o que cercava Odette - h)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
______________[1] A expressão latina sub rosa significa “durante a refeição” ou “confidencialmente”.
Brichot mistura em uma única fala uma expressão latina, cujo significado está além do
sentido literal, uma citação de Juliette Adam e a referência erudita a um livro de história
da França, entre os séculos XII e XV. Mas Brichot acaba se confundindo com as datas:
Suger (1498-1515) foi abade de Saint-Denis a partir de 1122. Branca de Castela (1188-
1252), regente da França durante a minoridade de seu filho Luís IX, não pode assim ter
conhecido nem Suger nem são Bernardo, que morreu em 1153. [n. e.]
[2] Henrique ii Plantageneta casou-se com Eleanor de Aquitânia em 1152, mesmo ano
da anulação do casamento dela com Luís vii. Eleanor de Aquitânia não era mãe, mas sim
avó de Branca de Castela. [n. e.]
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