quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Segunda Parte (5a) - Já era um pouco tarde

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Segunda Parte

5.

     Já era um pouco tarde, quase duas e meia, o príncipe não encontrou mais o general em casa. Deixou o seu quarto e resolveu ir ao Hotel da Balança perguntar por Kólia e, caso este não estivesse, deixar-lhe um bilhete. No Hotel da Balança lhe foi dito que Nikolái Ardaliónovitch saíra de manhã deixando o seguinte recado, que se alguém o procurasse dissessem que voltaria às três horas; mas que se às três e meia ainda não tivesse voltado era sinal de que fora de trem a Pávlovsk jantar na casa da Generala Epantchiná. O príncipe sentou-se, decidido a esperar. E como já estava ali, resolveu jantar.
     Kólia não apareceu às três e meia, e nem mesmo às quatro. O príncipe então saiu e se pôs a andar maquinalmente. No começo do verão em Petersburgo há, muitas vezes, dias admiráveis, claros e já quentes. Por sorte, esse era um dia assim. Durante certo tempo o príncipe errou sem destino. Conhecia muito mal a cidade. Perambulou por praças e pontes, esteve parado em esquinas admirando a fachada dos prédios. Entrou em uma confeitaria a fim de descansar um pouco. 
     Tornou a sair. 
     De quando em quando dava para prestar atenção nos transeuntes, com muito interesse; depois esqueceu essa gente das calçadas, seguiu a esmo. Sentia-se constrangido e aflito, ansiando ao mesmo tempo por solidão. Desejava estar sozinho, entregar-se de todo a esse estado de ânimo, sem relutância alguma. Reagiu à ideia de prestar atenção às questões que surgiam do seu coração e do seu espírito, murmurando para si mesmo, confusamente: “Que culpa tenho eu de tudo isso em que me baralhei?”
     Lá para as seis e meia se encontrou diante da estação da linha de Tsárskoie Seló. A solidão já se lhe tornara intolerável. Empolgou-o um impulso novo e ardente, e, por um momento, as trevas que haviam baixado em sua alma foram aclaradas por um raio de luz. Comprou um bilhete para Pávlovsk e ficou impaciente por seguir. Mas alguma coisa decerto o perseguia, e essa alguma coisa era uma realidade e não uma fantasia como estava talvez inclinado a supor. Já ia se sentar no seu vagão quando de repente atirou o bilhete na plataforma e abandonou a estação, confuso e pensativo.  
     Poucos minutos depois, já na rua, se recordou subitamente de qualquer coisa. Foi como se tivesse enfim agarrado uma preocupação angustiosa e que desde muito o molestava. E então percebeu que viera até ali imerso em qualquer preocupação que já durava tempo, muito embora somente agora tivesse verificado isso. Durante horas e horas antes, mesmo no Hotel da Balança e até mesmo antes de ir lá, estivera a procurar não sabia o quê; às vezes se esquecia dessa preocupação mas daí a meia hora, se tanto, ela voltava transformada ora em angústia, ora em apreensão. Mal acabara exatamente agora de verificar este mórbido e até então inconsciente impulso de busca, de angústia, de cuidado por qualquer coisa difusa, quando lhe surgiu uma recordação que o interessou sobremodo. Lembrou-se com a maior segurança de que justamente no momento em que percebera que andava à procura de qualquer coisa urgente, havia parado na calçada defronte de uma vitrina, examinando com muita atenção os artigos ali expostos. Resolveu já agora ir verificar se deveras tinha estado diante de tal loja cinco minutos antes, talvez; ou se não teria sido sonho; ou se se teria enganado.
     Existiria realmente a tal loja com os tais artigos expostos na tal vitrina? Ah! Sem dúvida não estava se sentindo bem, hoje, a bem dizer se achando quase no estado em que outrora se sentia quando estava para vir um dos ataques da sua antiga moléstia. Sabia que em tais ocasiões costumava pouco antes se sentir excepcionalmente “ausente” de tudo, e que então confundia coisas e pessoas, caso não se esforçasse por prestar bastante atenção nelas. E havia ainda um outro motivo especial para fazer com que desejasse realmente descobrir se antes tinha estado mesmo diante da tal loja. Entre os artigos expostos na vitrina havia um que ele admirara de modo particular, havendo até calculado que devia valer uns sessenta copeques de prata. Lembrava-se dessa particularidade, não obstante a agitação e seu estado mental. Portanto, se tal loja existisse, se tal artigo lá estivesse mesmo na vitrina, isso confirmava que de fato parara acolá, atraído simplesmente por aquele tal artigo. E por conseguinte tal artigo deveria interessá-lo muito, já que o atraíra mesmo estando ele como estava, aborrecidíssimo e confuso por ter saído do trem e abandonado a estação. Enveredou para a direita, olhando para as lojas e eis que, quando mais batia seu coração tomado de impaciência, deu de súbito com a loja! Encontrara-a finalmente!
     Estava a quinhentos passos dela, ainda agora, quando lhe veio a vontade irreprimível de voltar. E lá estava o artigo que devia valer uns sessenta copeques. Olhava-o e repetia: “Deve valer uns sessenta copeques, não mais”, e riu. Mas sua risada era histérica.
     Sentiu-se indisposto, infeliz, zonzo. Lembrou-se claramente, então, de que quando ali estivera antes, ainda agora mesmo, repentinamente se tinha voltado da vitrina para a rua, como fizera aquela manhã ao descer do trem quando, já na rua, surpreendera os olhos de Rogójin sobre ele. Dando como certo que não se tinha enganado (muito embora antes soubesse que era verdade mesmo), afastou-se da loja e estugou o passo. Urgia dar tudo por acabado.
     Agora estava mais que ciente de que nem mesmo na estação aquilo fora imaginação sua. Algo de verídico se passara com ele, ligado à sua inquietação anterior. Mas o subjugou uma intolerável repugnância; resolveu não pensar mais nessas coisas, e conseguiu dar um curso completamente outro às suas cogitações. Lembrou-se, por exemplo, de que sempre um minuto antes do ataque epilético (quando lhe vinha ao estar acordado) lhe iluminava o cérebro, em meio à tristeza, ao abatimento e à treva espiritual, um jorro de luz e logo, com extraordinário ímpeto, todas as suas forças vitais se punham a trabalhar em altíssima tensão. A sensação de vivência, a consciência do eu decuplicavam naquele momento, que era como um relâmpago de fulguração. O seu espírito e o seu coração se inundavam com uma extraordinária luz. Todas as suas inquietações, todas as suas dúvidas, todas as suas ansiedades ficavam desagravadas imediatamente. Tudo imergia em uma calma suave. cheia de terna e harmoniosa alegria e esperança. Tal momento, tal relâmpago, era apenas o prelúdio desse único segundo (não era mais do que um segundo) com que o ataque começava. Esse segundo era naturalmente insuportável.
     Ao pensar depois naquele momento, quando outra vez bom, muitas vezes dissera a si próprio que aqueles relâmpagos e fulgores, lhe dando a mais alta percepção de autoconsciência e, por conseguinte, também de vida em sua mais alta forma. Não passavam de doença, isto é, de mera interrupção de uma condição normal. Portanto, não eram absolutamente a mais alta forma de existir e de ser, devendo muito ao contrário ser contada como a mais baixa. E acabava chegando, por último, a uma conclusão paradoxal. Que tem que seja doença? Que mal faz que seja uma intensidade anormal, se o resultado desse fragmento de segundo, recordado e analisado depois, na hora da saúde, assume o valor de síntese da harmonia e da beleza, visto proporcionar uma sensação desconhecida e não adivinhada antes? Um estado de ápice, de reconciliação, de inteireza e de êxtase devocional, fazendo a criatura ascender à mais alta escala da vivência?
     Estas expressões assim vagas pareciam-lhe muito compreensíveis, embora fracas demais. Que aquilo realmente era “beleza e adoração”, que era realmente a mais alta escala da vivência, não podia haver sequer possibilidade de dúvida. Era como se em tal fração de momento contemplasse visões irreais e deslumbrantes como as despertadas pelo haxixe, pelo ópio ou pelo vinho ao destruírem a razão e distorcerem a alma. Era capaz de julgá-las inteiramente quando o ataque cessava. Tais frações de momento, para defini-las em uma palavra, caracterizavam-se por uma fulguração da consciência e por uma suprema exaltação da emotividade subjetiva. Se, nesse segundo, ou melhor, bem no último momento consciente anterior ao ataque, ele tivesse tempo para dizer a si mesmo, clara e lucidamente “Sim, por este só momento se daria toda a vida!”, então esse momento, sem dúvida, valia realmente por toda a vida. Não insistia na parte dialética do seu argumento, ainda assim. Estupefação, treva espiritual e idiotismo, lá estavam e lá ficavam, diante e dentro dele, conspicuamente como a consequência desses “mais altos momentos”. Lá isso era irrefutável. A sua conclusão, ou melhor, a sua avaliação desse momento encerrava indubitavelmente um erro. Ainda assim, a realidade da sensação o deixava perplexo. E que poderia haver de mais real do que um fato? Ora, aquela sensação era um fato real, talvez a única realidade desejada. Tanto que ele chegara a dizer que tal fração de segundo, só pela felicidade infinita em que o arremessava, valia por toda a vida. “Nesse momento”, conforme dissera a Rogójin um dia, em Moscou em um de seus encontros, “eu como que compreendo a extraordinária expressão do apóstolo: ‘Não haverá mais tempo!”‘ E acrescentara com um sorriso: “Sem dúvida era este mesmo que aludia Maomé, durante o qual o profeta epilético visitava as mansões todas de Alá em menos tempo do que o necessário para virar no chão a água de um cântaro.”
     Sim, encontrara-se muitas vezes com Rogójin em Moscou e não fora apenas sobre essas coisas que conversara com ele. “Rogójin ainda agora acabou de dizer que naquela ocasião fui para ele um verdadeiro irmão. Disse isso pela primeira vez, hoje”, pensou o Príncipe. Assim pensava, sentando-se em um banco debaixo de uma árvore no Jardim de Estio. Eram cerca de sete horas. O jardim estava quase vazio. Uma sombra passou pelo sol poente no crepúsculo abafadiço, e havia no ar como que um pressentimento de tempestade distante. A sua disposição contemplativa oferecia-lhe certo encanto. O espírito e a memória pareciam prendê-lo aos objetos visíveis à sua volta; e sentia prazer nisso. Esforçava-se, ainda assim, por esquecer alguma coisa atual, verdadeira, decerto grave; e ao primeiro olhar para dentro de si mesmo, se deu Conta imediatamente do seu sinistro pensamento aquele pensamento ao qual desde muito estava querendo fugir.
     Lembrou-se de que conversara com o garçom, durante o jantar na taverna, sobre um assassinato sensacional que despertara muitos comentários. Mal, porém, se recordava disso, quando algo estranho veio se interpor. Um extraordinário e insubjugável desejo, quase uma tentação, paralisou repentinamente sua Vontade. Levantou-se do banco. E do jardim se dirigiu diretamente para a Petersbúrgskaia. Pouco antes, havia pedido a um transeunte, nas margens do Neva, que lhe apontasse por sobre o rio, Petersbúrgskaia. O homem lhe tinha mostrado; mas não fora até lá, naquela ocasião. Em todo caso, agora isso lhe serviu.
     Desde muito guardava certo endereço. Facilmente, encontraria a residência da parenta de Liébediev; mas lhe ocorria quase a certeza de que não estivesse em casa. “Certamente foi para Pávlovsk. Do contrário Kólia teria deixado ao menos uma palavra no Hotel da Balança, conforme combinara”. Se, pois. Se dirigiu para lá, não foi com a intenção de vê-la. O que o atraía agora era uma sinistra e atormentadora curiosidade de ordem muito diversa. Uma ideia nova lhe viera ao espírito. Mas já era para ele suficiente estar andando e saber aonde ia. muito embora um minuto mais tarde estivesse caminhando de novo quase inconscientemente, alheio ao que o rodeava. Uma ulterior consideração sobre a sua “inesperada ideia” se lhe tornou imediatamente insípida, para não dizer impossível.
     Fixava com angustiosa e intensa atenção qualquer coisa que o seu olhar descobrisse: contemplava o céu, contemplava o Neva. Falou a um garoto que encontrou. Talvez a sua condição de epilético estivesse piorando, e da maneira mais aguda.
     A tempestade armava-se, embora vagarosamente. Começava a trovejar, ao longe. A atmosfera tornara-se muito abafada...
     Sem saber por que (como uma pessoa perseguida por uma frase musical que acorda em seus ouvidos e não o larga, insiste, volta e irrita), perseguia-o agora com uma insistência incômoda a imagem do sobrinho de Liébediev, que conhecera nessa manhã. E o mais absurdo é que o continuava vendo como o assassino de que Liébediev falara quando o apresentara. Sim, de fato ele, Míchkin, tinha lido qualquer coisa a tal respeito. Desde que chegara à Rússia lia nos jornais e ouvia em conversas muitos casos desses, e acompanhava tais descrições. Ainda esta tarde, por exemplo, se interessara bastante pela conversa do garçom a respeito do assassinato da família Jemárin - o tal assassinato comentado por Liébediev. Recordava-se de que o garçom concordara com seus pontos de vista. Relembrava-se perfeitamente dos modos, das palavras desse garçom. Indivíduo arguto, atencioso e grave, muito embora “só Deus saiba realmente como ele é deveras, visto me ser difícil conhecer gente que nunca vi em um país onde mal acabo de chegar...”
     Todavia a alma russa começava a inspirar-lhe uma fé apaixonada.
     Oh! Naqueles seis meses tinha visto muita, muitíssima coisa que para ele era novidade absoluta, inesperada e inconjeturável. Se a alma alheia é por si só uma região sombria, a alma russa, essa então é uma gruta escura, por muitas e muitas razões. Contava já com alguns amigos. Um deles, por exemplo, era Rogójin. Certos episódios não o haviam tornado a ele, Míchkin, e Parfión amigos mesmo, quase irmãos? Mas, apesar disso tudo, poderia dizer deveras que conhecia direito Rogójin? Não era essa criatura um caos? Quanta coisa absurda e hedionda não existe na alma humana! Que sujeito repulsivo e convencido não era aquele sobrinho de Liébediev... “Mas em que e em quem estou eu a pensar?” (O príncipe continuava como dentro de um sonho...). “Teria ele assassinado aquelas criaturas, aquelas seis pessoas? Que embrulhada estou fazendo!... Que coisa mais absurda... Estarei delirando... E que rosto encantador, suave, o da filha maiorzinha de Liébediev! Aquela que estava com um irmãozinho no colo! Que expressão cândida, ainda infantil! Que sorriso beatífico...”
     E o mais estranho era que se esquecera dos traços verídicos daquele rosto. Se o baralhava, como era então que não podia esquecê-lo? Liébediev, que batia com o pé no chão para assustar a filharada, com certeza adorava todos eles. E também adorava o sobrinho, tão certo como dois mais dois serem quatro! Mas como podia ele, Míchkin, se aventurar a analisá-los tão categoricamente, se tinha acabado de chegar naquele dia mesmo? Como podia fazer tais julgamentos? De mais a mais, esse próprio Liébediev, por exemplo, não fora um enigma para ele? Esperara acaso encontrar um Liébediev tão diferente? O Liébediev que se apresentara hoje era o mesmo da outra vez? O Liébediev e a Du Barry ! Ó Céus! Se Rogójín viesse a cometer um assassinato não seria coisa de espantar, compreender-se-ia. Era homem de uma natureza bem outra. Afinal, uma aquisição de arma com o intuito de matar e o assassinato de seis pessoas perpetrado em completo delírio eram coisas completamente diferentes! Mas a essa altura o príncipe se sobressaltou. Adquirira Rogójin uma arma para determinada finalidade? “Não é um ato vil e criminoso da minha parte fazer uma suposição desta ordem, assim com tão cínica frieza?” E uma onda de pejo se lhe espraiou pela cara. Ficou aterrado.
     Chegou a parar na rua, ofegando. Várias lembranças se alternaram na sua memória: a estação ferroviária de Tsárskoie Seló, onde estivera de tarde; a outra estação por onde chegara a Petersburgo, aquela manhã mesmo; a pergunta feita cara a cara por Parfión: Uns olhos? Quais? De quem?”; a cruz que ele lhe dera; a bênção da velha Rogójin, em cujos cômodos estivera; aquele último abraço, convulso; a renúncia de Rogójin, lá naquela escada... E após tudo isso estar ele, Míchkin, naquela espécie de delírio ambulatório em busca sabia lá de quê!... Ah! Aquela loja! Aquele objeto exposto naquela vitrina... Quanta vilania! E apesar de tudo, ainda caminhava agora com um “propósito especial”, guiado por uma “ideia súbita”! Toda a sua alma ficou dominada pelo desespero e pelo sofrimento. E o príncipe desejou retroceder, voltar para o hotel. Virou, com esse intento; mas um minuto depois refletiu, virou outra vez teimando em prosseguir no rumo de antes.
     Sim, já estava agora na Petersbúrgskaia; e bem perto da tal casa. E isso não tinha mais nada de ver com aquele especial propósito nem com aquela ideia súbita. Mas como podia ser isso, então? Sim. é que a sua moléstia estava voltando. Não havia a menor dúvida. Talvez até viesse a ter um ataque ainda hoje mesmo.

O Idiota: Segunda Parte (5a) - Já era um pouco tarde
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