Sobre fotografia
Ensaios
Susan Sontag
BREVE ANTOLOGIA DE CITAÇÕES
[HOMENAGEM A W. B.]
Desejei reter toda a beleza que surgia à minha frente, e por fim o desejo foi satisfeito.
Desejo ter uma lembrança de todos os seres que me são caros no mundo. Não é apenas a semelhança que é preciosa, nesses casos — mas a associação e a sensação de proximidade implicada na coisa [...] o fato de a própria sombra da pessoa que está ali ter sido fixada para sempre! É a própria santificação dos retratos, eu creio — e não é de modo algum monstruoso da minha parte dizer, por mais que meus irmãos protestem de forma tão veemente, que eu preferiria ter um tal monumento de uma pessoa que amei afetuosamente a ter mais nobre obra de um artista jamais produzida.
Nossa fotografia é um registro de nossa vida, para qualquer pessoa que veja, de fato. Podemos ver e ser afetados pelas maneiras de outras pessoas, podemos até usá-las para encontrar nossa própria maneira mas no final sempre teremos de nos libertar delas. É isso o que Nietzsche queria dizer quando declarou: “Acabei de ler Schopenhauer, agora tenho de me livrar dele”. Ele sabia como as maneiras dos outros podem ser insidiosas, sobretudo aquelas que têm a eficácia da experiência profunda, se deixarmos que elas se interponham entre nós e a nossa visão.
A suposição de que o homem exterior seja um retrato do interior, e o rosto uma expressão e uma revelação de todo o caráter, é bastante plausível em si mesma e, por conseguinte, bastante segura para a levarmos adiante; nascida, como é, do fato de as pessoas estarem sempre ansiosas para ver alguém que se tornou famoso. [...] A fotografia [...] oferece a satisfação mais completa de nossa curiosidade.
Experimentar algo como belo significa: experimentá-lo de forma necessariamente equivocada.
Agora, em troca de uma quantia absurdamente pequena, podemos nos familiarizar não só com cada localidade famosa no mundo mas também com quase todos os homens notáveis da Europa. A ubiquidade do fotógrafo é algo maravilhoso. Todos nós vimos os Alpes e conhecemos Chamonix e Mer de Glace de cor, embora nunca tenhamos enfrentado os horrores do Canal. [...] Cruzamos os Andes, subimos até Tenerife, adentramos o Japão, “fizemos” o Niágara e as Mil Ilhas, provamos o prazer de uma batalha com nossos pares (diante de vitrines), tomamos assento nas assembleias dos poderosos, ficamos íntimos de reis, de imperadores e de rainhas, de primadonas, dos astros do balé e de “atores talentosos”. Vimos fantasmas e não trememos; ficamos de pé diante de realezas sem tirar o chapéu; em suma, olhamos através de uma lente de sete centímetros e meio para toda e qualquer pompa e vaidade deste mundo cruel mas belo.
Com muita justiça se disse a respeito de Atget que ele fotografou [ruas desertas de Paris] como se fossem cenários de um crime. O cenário de um crime é também deserto; é fotografado com o propósito de estabelecer um indício. Em Atget, fotos se tornam indícios legais para acontecimentos históricos e adquirem um significado político oculto.
Se eu pudesse contar a história em palavras, não precisaria carregar uma câmera.
Fui a Marseille. Um pequeno subsídio me permitia sobreviver, e trabalhei com prazer. Acabara de descobrir a Leica. Ela se tornou uma extensão de meu olho e, desde que a descobri, jamais me separei dela. Vagava pelas ruas o dia inteiro, sentindo-me muito alerta, pronto a dar um bote, determinado a “capturar” a vida — a preservar a vida no ato de viver. Acima de tudo, eu ansiava captar, no âmbito de uma só foto, toda a essência de uma situação que estivesse em processo de desdobramento diante dos meus olhos.
Eu fotografo o que não desejo pintar e pinto o que não posso fotografar.
Só com esforço se pode obrigar a câmera a mentir: é essencialmente um veículo honesto: o fotógrafo está muito mais apto a se aproximar da natureza com um espírito de indagação, de comunhão, do que com a arrogância insolente de autodenominados “artistas”. E a visão contemporânea, a vida nova, baseia-se numa abordagem honesta de todos os problemas, sejam morais ou da arte. Falsas fachadas de prédios, falsos critérios na moral, subterfúgios e pantomimas de todo tipo devem ser e serão jogados no lixo.
Tento, por meio de boa parte do meu trabalho, animar todas as coisas
— mesmo os chamados objetos “inanimados”
— com o espírito do homem. Pouco a pouco, cheguei a compreender que essa projeção extremamente animista provém, em última instância, de meu profundo receio e de minha profunda inquietude acerca da acelerada mecanização da vida humana; e as consequentes tentativas de imprimir uma individualidade em todas as esferas da atividade humana
— processo que, em seu todo, constitui uma das expressões predominantes de nossa sociedade industrial-militar. [...] O fotógrafo criativo libera o conteúdo humano dos objetos; e dá a conhecer a humanidade para o mundo inumano à sua volta.
Agora se pode fotografar tudo.
Sempre prefiro trabalhar em estúdio. Ele isola as pessoas de seu ambiente. Em certo sentido, elas se tornam [...] símbolos de si mesmas. Muitas vezes tenho a sensação de que as pessoas vêm a mim para ser fotografadas, assim como procurariam um médico ou um vidente — para saber como estão. Portanto, são dependentes de mim. Tenho de cativá-las. Do contrário, nada há para fotografar. A concentração tem de vir de mim e envolvê-las. Por vezes, sua força cresce de tal modo que não se ouvem mais os sons no estúdio. O tempo para. Partilhamos uma intimidade breve e intensa. Mas é gratuita. Não tem passado [...] nem futuro. E quando o trabalho do modelo termina — quando a foto está feita — nada resta senão a foto [...] a foto e um tipo de constrangimento. Elas vão embora [...] e eu não as conheço. Mal ouvi o que disseram. Se eu as encontrar uma semana depois em algum lugar, torço para que não me reconheçam. Porque tenho a sensação de não ter de fato estado lá. Pelo menos, a parte de mim que esteve lá [...] agora se encontra na foto. E as fotos têm, para mim, uma realidade que as pessoas não têm. É por meio de fotos que eu as conheço. Talvez isso pertença à natureza de ser fotógrafo. Nunca estou de fato envolvido. Não preciso ter nenhum conhecimento real. É tudo uma questão de reconhecimentos.
O daguerreótipo não é apenas um instrumento que serve para retratar a natureza [...] dá a ela a capacidade de reproduzir-se.
As criações do homem ou da natureza nunca têm mais magnificência do que numa foto de Ansel Adams, e sua imagem pode apoderar-se do espectador com mais força do que o objeto natural a partir do qual foi feita.
A maioria de minhas fotos é compassiva, bondosa e pessoal. Elas tendem a deixar o espectador ver por si mesmo. Tendem a não fazer pregações. E tendem a não fazer pose de arte.
Novas formas de arte são criadas pela canonização de formas periféricas.
[...] surgiu uma nova indústria que contribui não pouco para confirmar a fé que a estupidez tem em si mesma e para arruinar o que porventura houver restado de divino no gênio francês. A multidão idólatra postula um ideal digno dela mesma e adequado a sua natureza — isso é perfeitamente compreensível. No tocante à pintura e à escultura, a crença vigente do público sofisticado, sobretudo na França [...] é esta: “Creio na Natureza e creio apenas na Natureza (há boas razões para tal). Creio que a Arte é e não pode ser senão a exata reprodução da Natureza. [...] Assim, uma indústria que nos pudesse dar um produto idêntico à Natureza seria a arte absoluta”. Um Deus vingativo garantiu a satisfação do desejo dessa multidão. Daguerre foi o seu Messias. E agora o público diz para si mesmo: “Uma vez que a fotografia nos dá toda garantia de exatidão que poderíamos desejar (eles de fato acreditam nisso, os idiotas!), então a fotografia e a Arte são a mesma coisa”. A partir desse momento, nossa esquálida sociedade precipitou-se, cada homem transformado em um Narciso, para olhar sua própria imagem trivial numa lasca de metal. [...] Um escritor democrático poderia ver nisso um método barato de disseminar uma aversão pela história e pela pintura entre o povo.
A vida em si não é a realidade. Somos nós que pomos vida em pedras e seixos.
O jovem artista registrou, pedra por pedra, as catedrais de Estrasburgo e de Rheims em mais de cem cópias diversas. Graças a ele, galgamos todos os campanários [...] que jamais teríamos descoberto através de nossos olhos, ele viu por nós [...] pode-se imaginar que os artistas religiosos da Idade Média previram o daguerreótipo ao colocar suas estátuas e entalhaduras de pedra no alto, onde só os pássaros que circundam as agulhas dos campanários podiam encantar-se com seus detalhes e sua perfeição. [...] A catedral inteira é reconstruída, camada por camada, em maravilhosos efeitos de luz, de sombras e de chuva. M. Le Secq também construiu seu monumento.
A necessidade de trazer as coisas para “mais perto”, em termos espaciais e humanos, é hoje quase uma obsessão, como o é a tendência de negar a qualidade única ou efêmera de um dado evento reproduzindo-o fotograficamente. Existe uma compulsão crescente para reproduzir fotograficamente o objeto, em close. [...]
Não é por acaso que o fotógrafo se torna um fotógrafo, assim como o domador de leões se torna um domador de leões.
Se eu fosse apenas curiosa, seria muito difícil dizer a alguém “quero ir à sua casa, estimular você a falar e ouvir você me contar a história de sua vida”. As pessoas me responderiam: “Você está maluca”. Além do mais, ficariam muito precavidas. Mas a câmera é uma espécie de licença. Muita gente quer que prestemos a elas muita atenção e esse é um tipo razoável de atenção para se prestar.
[...] De repente, um menino pequeno caiu no chão perto de mim. Percebi que a polícia não estava disparando apenas tiros de advertência. Estava atirando na multidão. Mais crianças caíram. [...] Comecei a tirar fotos do menino que morria a meu lado. O sangue escorria de sua boca e algumas crianças se ajoelharam perto dele e tentaram deter o fluxo de sangue. Em seguida, algumas crianças gritaram que iam me matar. [...] Implorei que me deixassem em paz. Disse que era um repórter e estava ali para registrar o que acontecia. Uma menina bateu na minha cabeça com uma pedra. Fiquei tonto, mas ainda de pé. Então eles voltaram à razão e me mandaram ir embora. Durante todo o tempo, helicópteros circundavam no alto e ouvia-se o som de tiros. Era como um sonho. Um sonho que nunca esquecerei.
A fotografia é a única “linguagem” entendida em toda parte do mundo e que, ao interligar todas as nações e culturas, une a família humana. Independente da influência política — onde as pessoas forem livres —, ela reflete fielmente a vida e os fatos, permite-nos compartilhar as esperanças e o desespero dos outros e esclarece as condições políticas e sociais. Tornamo-nos testemunhas oculares da humanidade e da desumanidade da espécie humana [...]
A fotografia é um sistema de edição visual. No fundo, é uma questão de cercar com uma moldura uma parcela do cone de visão de uma pessoa, quando se está no lugar e no momento propícios. Como no xadrez, ou na escrita, é uma questão de escolher entre as possibilidades dadas, mas no caso da fotografia o número de possibilidades não é infinito, e sim finito.
Às vezes eu preparava a câmera num canto do cômodo, sentava-me a certa distância dela com um controle remoto na mão e observava nossas pessoas, enquanto o sr. Caldwell conversava com elas. Podia passar uma hora antes que seus rostos e seus gestos nos oferecessem o que estávamos tentando expressar, mas, no instante em que isso ocorria, a cena era capturada numa chapa de filme, antes que elas soubessem o que havia acontecido.
A foto do prefeito de Nova York William Gaynor, no momento em que é assassinado com um tiro, em 1910. O prefeito estava prestes a embarcar num navio para passar férias na Europa quando chegou o fotógrafo de um jornal americano. Ele pediu ao prefeito para posar para um retrato e, assim que levantou a câmera, dois tiros foram disparados do meio da multidão. Na confusão, o fotógrafo permaneceu calmo e a foto do prefeito ensanguentado tombando nos braços de um auxiliar tornou-se parte da história fotográfica.
Fotografei nosso banheiro, esse receptáculo lustroso e esmaltado, de beleza extraordinária. [...] Ali estavam todas as curvas sensuais da “divina figura humana”, exceto as imperfeições. Jamais os gregos alcançaram uma consumação tão significativa de sua cultura e, de algum modo, isso me fez lembrar a Vitória de Samotrácia, em seu movimento atrevido de contornos que avançam com beleza.
Bom gosto, neste tempo, numa democracia tecnológica, termina por ser nada mais do que um preconceito de gosto. Se tudo o que a arte faz é criar o bom gosto e o mau gosto, então ela fracassou completamente. Na questão da análise de gosto, é igualmente fácil exprimir bom ou mau gosto no modelo da geladeira, do tapete ou da poltrona que se tem em casa. Bons artistas da câmera, agora, tentam erguer a arte acima do nível do mero gosto. A arte da câmera deve ser totalmente destituída de lógica. O vazio lógico deve estar presente de sorte que o espectador aplique a ele sua própria lógica e a obra, a rigor, se forme diante dos olhos do espectador. Assim ela se torna um reflexo direto da consciência, da lógica, da moral, da ética e do gosto do espectador. A obra deveria atuar como um mecanismo de realimentação para o espectador compor a maquete de si mesmo.
Mulheres e homens — eis um tema impossível, pois não há respostas possíveis. Só podemos encontrar fragmentos de pistas. E este pequeno portifólio é apenas um esboço muito tosco da questão em pauta. Hoje talvez estejamos plantando as sementes de relações mais honestas entre mulheres e homens.
— Por que as pessoas guardam fotos?
— Por quê? Só Deus sabe! Afinal, por que as pessoas guardam coisas, tralha, lixo, montes de quinquilharias? Guardam, e é só o que interessa!
— Até certo ponto concordo com você. Algumas pessoas guardam coisas. Outras jogam tudo fora quando estão fartas dessas coisas. Sim, é uma questão de temperamento. Mas agora me refiro especialmente a fotos. Por que as pessoas guardam, especialmente, fotos?
— Como eu disse, porque não jogam as coisas fora. Ou porque elas lhes fazem lembrar... Poirot tomou para si as palavras dele.
— Exatamente. Elas lhes fazem lembrar. Agora, de novo, pergunto: por quê? Por que uma mulher guarda uma foto de si mesma quando jovem? Digo que a primeira razão é, essencialmente, a vaidade. Foi uma bela moça e guarda a própria foto para recordar-se de como foi uma bela moça. Isso a anima quando o espelho lhe diz coisas pouco palatáveis. Talvez ela diga a uma amiga: “Esta era eu aos dezoito anos...”. E dê um suspiro... Concorda?
— Sim, sim, creio que é bem verdadeiro.
— Portanto este é o motivo número um. Vaidade. Agora, o motivo número dois. O sentimento.
— Não é a mesma coisa?
— Não, não, é bem diferente. Pois leva a pessoa a conservar não só a própria foto mas a de um outro... Uma foto da filha casada, quando era criança, sentada num tapete em frente à lareira, envolta em tule... Muito constrangedor, às vezes, para a pessoa fotografada, mas as mães adoram. E os filhos e as filhas muitas vezes guardam fotos da mãe, em especial, digamos, se a mãe morreu jovem. “Esta era minha mãe, quando moça.”
— Começo a perceber aonde você quer chegar, Poirot.
— E, provavelmente, existe uma terceira categoria. Não a vaidade, não o sentimento, não o amor: talvez o ódio. O que acha?
— O ódio?
— Sim. Manter vivo um desejo de vingança. Alguém feriu você. Você pode guardar uma foto para recordar, não pode?
Antes, no amanhecer daquele dia, uma comissão adrede escolhida descobrira o cadáver de Antônio Conselheiro. Jazia num dos casebres anexos à latada, e foi encontrado graças à indicação de um prisioneiro. Removida a breve camada de terra, apareceu no triste sudário de um lençol imundo, em que mãos piedosas haviam desparzido algumas flores murchas, e repousando sobre uma esteira velha, de tábua, o corpo do “famigerado e bárbaro agitador”. [...] Desenterraram-no cuidadosamente. Dádiva preciosa — único prêmio, únicos despojos opimos de tal guerra! — faziam-se mister os máximos resguardos para que não se desarticulasse ou deformasse [...]. Fotografaram-no depois. E lavrou-se uma ata rigorosa firmando a sua identidade: importava que o país se convencesse bem de que estava, afinal, extinto aquele terribilíssimo antagonista.
Homens ainda se matam mutuamente, ainda não entenderam como vivem, por que vivem; os políticos não percebem que a Terra é um todo, no entanto inventou-se a televisão (Telehor): o “espectador à distância” — amanhã, poderemos olhar o interior do coração de nosso semelhante, poderemos estar em toda parte e ainda assim estarmos sós; imprimem-se livros ilustrados, jornais, revistas — aos milhões. A falta de ambiguidade do real, a verdade na situação cotidiana está ali, para todas as classes. A “HIGIENE DO ÓPTICO”, A SAÚDE DO VISÍVEL ESTÁ LENTAMENTE SE INFILTRANDO.
À medida que meu projeto avançava, tornou-se óbvio que na verdade não importava o local que eu escolhesse para fotografar. O lugar específico apenas fornecia um pretexto para produzir uma obra. [...] só podemos ver aquilo que estamos aptos a ver — aquilo que espelha nossa mente num momento específico.
Fotografo para descobrir como algo ficará quando fotografado.
As viagens patrocinadas pela Guggenheim eram como cuidadosas caçadas ao tesouro, com pistas falsas misturadas com verdadeiras. Sempre éramos encaminhados por amigos para suas paisagens, panoramas ou formações prediletas. Às vezes, esses palpites rendiam verdadeiros prêmios Weston; outras vezes, a peça recomendada revelava-se uma bobagem [...] e percorríamos milhas sem nenhuma recompensa. Nessa ocasião, eu chegara ao ponto de não ter nenhum prazer com cenários que não desafiassem a câmera de Weston, e assim ele não corria grande risco quando se recostava no assento do carro e dizia: “Não estou dormindo, só descansando os olhos”; sabia que meus olhos estavam a seu serviço e que, assim que algo com um aspecto de “Weston” surgisse, eu pararia o carro e o acordaria.
— a uma velocidade de até 1,5 segundo!
— enquanto busca ângulos novos ou tira cópias no próprio local. A SX-70 se torna uma parte de você, porque desliza pela vida sem nenhum esforço...
[...] olhamos a foto, a imagem em nossa parede, como o próprio objeto (o homem, a paisagem e assim por diante) ali retratado. Isso não precisaria ser assim. Poderíamos facilmente imaginar pessoas que não tinham essa relação com tais fotos. Pessoas que, por exemplo, sentiriam repulsa por fotos, porque um rosto sem cor e até, talvez, um rosto em dimensões reduzidas os chocaria como algo desumano.
SERÁ UM RETRATO INSTANTÂNEO DE...
o teste destrutivo de um eixo?a proliferação de um vírus?um dispensável efeito de laboratório?o cenário do crime?o olho de uma tartaruga marinha?um gráfico de vendas dividido por seções?aberrações cromossômicas?a página 173 da Anatomia, de Gray?um eletrocardiograma descartado?um efeito de luz na arte do sombreamento?o trimilionésino selo de Eisenhower de oito centavos?uma fratura na quarta vértebra da espessura de um fio de cabelo?uma cópia daquele insubstituível diapositivo de 35 mm?o seu novo díodo, ampliado treze vezes?uma metalografia de aço de vanádio?um diagrama reduzido para mecânicos?um nódulo de linfa ampliado?o resultado da eletroforese?a pior aclusão do mundo?a aclusão mais bem corrigida do mundo?
Um objeto que revela a perda, a destruição, o desaparecimento de objetos. Não fala de si mesmo. Fala de outros. Incluirá os outros?
Belfast, Irlanda do Norte — O povo de Belfast está comprando, às centenas, cartões-postais com fotos dos tormentos padecidos pela cidade. O mais popular mostra um menino jogando uma pedra contra um carro blindado britânico. [...] outros cartões mostram casas incendiadas, tropas em posição de combate nas ruas da cidade e crianças que brincam no meio de detritos fumegantes. Cada cartão custa aproximadamente 25 centavos nas três lojas Gardener.
“Mesmo por esse preço, as pessoas os adquirem em maços de cinco ou seis de uma só vez”, disse Rose Lehane, gerente da loja. A sra. Lehane disse que cerca de mil cartões foram vendidos em quatro dias.
Como Belfast tem poucos turistas, disse ela, a maioria dos compradores são pessoas do local, em geral homens jovens que querem os cartões como “suvenires”.
Neil Shawcross, um homem de Belfast, comprou duas coleções completas desses cartões, explicando: “Acho que são lembranças interessantes da época, e quero que meus dois filhos os tenham quando crescerem”.
“Os cartões são bons para as pessoas”, disse Alan Gardener, diretor da rede de lojas. “Muita gente em Belfast tenta enfrentar a situação fechando os olhos e fingindo que o problema não existe. Talvez algo assim os abale e os faça ver, de novo.”
“Perdemos muito dinheiro com os conflitos, nossas lojas foram bombardeadas e incendiadas”, acrescentou o sr. Gardener. “Se pudermos obter algum dinheiro em troca dos conflitos, será muito bom.”
A fotografia é um instrumento para lidar com coisas que todos sabem mas a que não prestam atenção. Minhas fotos tencionam representar algo que não se vê.
A câmera é um modo fluido de encontrar essa outra realidade.
Uelsmann Oswiecim, Polônia — Cerca de trinta anos após o fechamento do campo de concentração de Auschwitz, o horror subjacente ao local parece atenuado pelas barraquinhas de suvenires, pelas placas de Pepsi-Cola e pela atmosfera de atração turística.
Apesar da gélida chuva de outono, milhares de poloneses e alguns estrangeiros visitam Auschwitz todos os dias. A maioria usa roupas da moda e é obviamente jovem demais para se lembrar da Segunda Guerra Mundial.
Marcham junto aos antigos alojamentos de prisioneiros, câmaras de gás e crematórios, olham com interesse exposições horripilantes como uma enorme vitrine repleta de cabelo humano que os S S usavam para fazer tecidos. [...] Nas barraquinhas de suvenires, os visitantes podem comprar uma variedade de broches de lapela, em alemão e em polonês, ou cartões-postais que mostram câmaras de gás e crematórios, e até canetas esferográficas que são suvenires de Auschwitz e que, postas contra a luz, revelam imagens do mesmo tipo.
Os meios de comunicação tomaram o lugar do mundo antigo. Mesmo que quiséssemos recuperar esse mundo antigo, só poderíamos fazê-lo por meio de um estudo intensivo das maneiras como os meios de comunicação o engoliram.
[...] Muitos visitantes eram do campo e outros, sem familiaridade com os costumes da cidade, espalharam jornais sobre o asfalto no lado oposto do fosso do palácio, desembrulharam o lanche trazido de casa e seus pauzinhos de comer e lá ficaram sentados, comendo e conversando, enquanto a multidão vagava. A mania dos japoneses de tirar fotografias tornou-se uma febre sob o ímpeto do pano de fundo oferecido pelos jardins do palácio. A julgar pelo contínuo estalar dos obturadores, não só todas as pessoas presentes mas também todas as folhas de grama devem estar, agora, em todos os seus aspectos, registradas em filme fotográfico.
Estou sempre fotografando tudo mentalmente, como um exercício.
Os daguerreótipos de todas as coisas estão preservados [...] as estampas de tudo o que existe vivem, disseminadas nas várias regiões do espaço infinito.
Essas pessoas vivem de novo, em forma impressa, de modo tão intenso quanto no momento em que suas imagens foram capturadas nas antigas chapas secas de sessenta anos atrás. [...] Eu caminho nos seus becos, estou dentro dos seus quartos, de suas barracas e oficinas, olho através de suas janelas para dentro e para fora. E elas, em troca, parecem cientes de minha presença.
Assim, temos na câmera fotográfica a ajuda mais confiável para um começo de visão objetiva. Todos serão compelidos a ver que aquilo que é opticamente verdadeiro é explicável em seus próprios termos, é objetivo, antes que se possa chegar a qualquer posição subjetiva possível. Isso irá abolir aquele padrão de associação pictórica e imaginativa que permaneceu insuperado durante séculos e que foi impresso em nossa visão por grandes pintores.
Fomos — por cem anos de fotografia e duas décadas de filme — imensamente enriquecidos a esse respeito. PODEMOS DIZER QUE VEMOS O MUNDO COM OLHOS COMPLETAMENTE DIFERENTES. No entanto o resultado total até agora redunda em pouco mais do que um empreendimento enciclopédico visual. Isso não é o bastante. Queremos PRODUZIR sistematicamente, pois é importante para a vida que criemos novas relações.
Qualquer um que conheça o valor da afeição familiar nas classes sociais inferiores e tenha visto uma coleção de pequenos retratos pregados acima da lareira de um trabalhador [...] sentirá talvez comigo que, em contraposição às tendências sociais e industriais que todos os dias solapam as afeições familiares mais saudáveis, a foto de seis pence faz mais em favor dos pobres do que toda a filantropia do mundo.
Quem, na opinião dele, compraria uma câmera de filmar de revelação instantânea? Dr. Land vê na dona de casa uma boa cliente em potencial. “Ela só precisa mirar a câmera, pressionar o obturador e em minutos reviver o momento gracioso do seu filho, ou talvez a festa de aniversário. Além disso, há um grande número de pessoas que prefere imagens a equipamentos. Praticantes de golfe e tênis podem avaliar suas jogadas por meio de uma repetição imediata da cena; na indústria, na escola e em outros setores, a repetição imediata da cena, associada a um equipamento de fácil manuseio, seria de grande serventia. [...] As fronteiras da Polavision são tão amplas quanto a sua imaginação. Não há fim para os empregos que serão descobertos para esta e para as futuras câmeras Polavision.
A maioria dos reprodutores modernos da vida, incluindo a câmera, na verdade a repudiam. Engolimos o mal, engasgamos com o bem.
A guerra me atirou, como soldado, no centro de uma atmosfera mecânica. Ali, descobri a beleza do fragmento. Senti uma nova realidade no detalhe de uma máquina, no objeto comum. Tentei encontrar o valor plástico desses fragmentos de nossa vida moderna. Eu os redescobri na tela, em closes de objetos que me impressionaram e me influenciaram.
575,20 CAMPOS DE FOTOGRAFIA
aerofotografia, fotografia aéreaastrofotografiacinefotomicrografiacinematografiacistofotografiacromofotografiacronofotografiaescultografiaespectro-heliografiaespectrofotografiaesquiagrafiafonofotografiafotografia em miniaturafotografia em raio Xfotografia estroboscópicafotografia indiscretafotografia infravermelhafotogrametriafotomicrografiafotoespectro-heliografiafototipiafototipografiafototopografiaheliofotografiamacrofotografiamicrofotografiapirofotografiaradiofotografiaradiografiatelefotografiauranofotografia
O PESO DAS PALAVRAS. O IMPACTO DAS FOTOS.
4 de junho de 1875 — Vi hoje, no hotel Drouot, a primeira venda de fotos. Tudo está ficando preto neste século e a fotografia parece a roupa preta das coisas.
15 de novembro de 1861 — Às vezes acho que virá o dia em que todas as nações modernas adorarão uma espécie de deus americano, um deus que viveu como um ser humano e sobre o qual muita coisa se escreveu na imprensa popular: imagens desse deus serão erguidas nas igrejas, não como a imaginação de cada pintor individual possa inventá-lo, não a flutuar num manto de Verônica, mas fixadas de uma vez por todas pela fotografia. Sim, prevejo um deus fotografado, que usa óculos.
Na primavera de 1921, duas máquinas fotográficas automáticas, recentemente inventadas no exterior, foram instaladas em Praga e reproduziram seis ou sete exposições da mesma pessoa em uma mesma cópia. Quando levei uma dessas séries de fotos para Kafka, eu disse, alegre:
— Por umas poucas coroas, qualquer pessoa pode se fazer fotografar de todos os ângulos. O aparelho é um conhece-te a ti mesmo mecânico.
— Você quer dizer um engane-te a ti mesmo — retrucou Kafka, com um ligeiro sorriso. Protestei:
— Como assim? A câmera não pode mentir!
— Quem lhe disse? — Kafka inclinou a cabeça na direção do ombro. — A fotografia concentra o olho no superficial. Por isso obscurece a vida oculta que reluz de leve através do contorno das coisas, como um jogo de luz e sombra. Não se pode captar isso, mesmo com a mais nítida das lentes. É preciso tatear com o sentimento para alcançá-la. [...] Essa câmera automática não multiplica os olhos dos homens, apenas oferece a visão de um olho de mosca fantasticamente simplificada.
A vida sempre parece inteiramente presente na epiderme de seu corpo: vitalidade pronta para ser extraída por inteiro ao fixar o instante, ao registrar um sorriso breve e abatido, um estremecimento da mão, um fugaz raio de sol através das nuvens. E nenhum instrumeno, exceto a câmera, é capaz de registrar reações tão complexas e efêmeras e expressar toda a majestade do momento. Mão nenhuma pode expressá-lo, porque a mente não consegue reter a verdade imutável de um momento por tempo bastante para permitir que os dedos vagarosos anotem a vasta quantidade de detalhes relacionados. Os impressionistas tentaram em vão alcançar a notação. Pois, de forma consciente ou não, o que almejavam demonstrar com seus efeitos de luz era a verdade dos momentos; o impressionismo sempre procurou fixar a maravilha do aqui e do agora. Mas os efeitos momentâneos de iluminação escapavam a eles, enquanto se achavam ocupados em analisar; e sua “impressão” permanece, em geral, uma série de impressões sobrepostas umas às outras. Stieglitz era mais bem orientado. Ia direto ao instrumento fabricado para ele.
A câmera é meu instrumento. Através dela dou uma razão a tudo o que me rodeia.
Um duplo nivelamento por baixo, ou um método de nivelar por baixo que trai a si mesmo Com o daguerreótipo, todos poderão ter o seu próprio retrato — antes, eram só as pessoas proeminentes; e ao mesmo tempo tudo é feito para nos dar um aspecto exatamente igual — de sorte que só precisaremos de um retrato.
Fazer foto de um caleidoscópio.
Fim
Susan Sontag nasceu em Nova York em 1933, e morreu em 2004. Cursou filosofia na
Universidade de Chicago e pós-graduou-se em Harvard. Seus livros foram traduzidos
para mais de trinta línguas. Pela Companhia das Letras publicou A vontade radical,
Doença como metáfora/AIDS e suas metáforas, O amante do vulcão, Assim vivemos
agora, Na América, Diante da dor dos outros, Questão de ênfase, Ao mesmo tempo e
Diários (1947-1963). Em 1977, Sobre fotografia ganhou o National Book Critics Circle
Award.
Susan Sontag (16 de janeiro de 1933, Nova Iorque — 28 de dezembro de 2004) foi uma escritora, crítica de arte e ativista dos Estados Unidos.
Graduou-se na Universidade de Harvard e destacou-se por sua defesa dos direitos humanos. Publicou vários livros, entre eles Styles of Radical Will, The Way We Live Now, Against Interpretation e In America, pelo qual recebeu em 2000 um dos mais importantes prémios do seu país, o National Book Award.
Publicou artigos em revistas como The New Yorker e The New York Review of Books e no jornal The New York Times.
Num de seus últimos artigos, publicado em maio de 2004 no jornal The New York Times, Sontag afirmou que "a história recordará a Guerra do Iraque pelas fotografias e vídeos das torturas cometidas pelos soldados americanos na prisão de Abu Ghraib. Ela faleceu aos 71 anos de idade de síndrome mielodisplásica seguida de uma leucemia mielóide aguda em 28 de Dezembro de 2004.
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Nota de esclarecimento da LêLivros
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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
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Copyright © 1973, 1974, 1977 by Susan Sontag
Este livro foi publicado originalmente em 1977, nos Estados Unidos,
pela Farrar, Straus & Giroux
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,
que entrou em vigor no Brasil em 2009.
Título original
On photography
Capa
Angelo Venosa
Foto de capa
Fotógrafo americano anônimo (c. 1850). /
Coleção Virginia Cuthbert Elliot, Buffalo, Nova York
Preparação
Otacílio Nunes Jr.
Revisão
Denise Pessoa
Ana Maria Barbosa
Atualização ortográfica
Página Viva
ISBN 978-85-8086-579-0
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