segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Marcel Proust - No Caminho de Swann (Combray, Outrora - f)

em busca do tempo perdido

volume I
No Caminho de Swann


ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust



combray


II(f) 

continuando...

     De modo que eu não mais entrava no gabinete de repouso, agora fechado, de meu tio Adolphe, e, depois de me demorar pelas imediações da despensa, quando Françoise me dizia, aparecendo à entrada: “Vou deixar que a criada de cozinha sirva o café e suba a água quente, pois tenho de ir já para o quarto da sua tia”, decidia-me a entrar e subia diretamente ao meu quarto para ler. A criada de cozinha era uma pessoa moral, uma instituição permanente a quem atribuições invariáveis asseguravam uma espécie de continuidade e de identidade, através da sucessão de formas passageiras em que se encarnava: pois nunca tivemos a mesma dois anos seguidos. No ano em que comemos tantos aspargos, a criada de cozinha habitualmente encarregada de os “pelar” era uma pobre criatura doentia, já em adiantado estado de gravidez quando chegamos pela Páscoa, e até espantava que Françoise a deixasse andar e trabalhar tanto, pois ela começava a carregar com dificuldade adiante de si o misterioso cesto, cada dia mais cheio, de que se adivinhava a magnífica forma sob suas vastas blusas. Lembravam estas as opalandas que vestem certas figuras simbólicas de Giotto, de que o sr. Swann me dera fotografias. Fora ele mesmo quem nos fizera observar tal coisa e, sempre que pedia notícias da criada de cozinha, era com estas palavras: “E como vai a Caridade de Giotto?”.[1] Aliás ela própria, a pobre rapariga, gorda, com a gravidez, até o rosto, até as faces que tombavam retas e quadradas, muito se assemelhava com efeito àquelas virgens, fortes e varonis, ou antes matronas, que na Arena personificam as virtudes. E reconheço agora que ainda se lhe assemelhavam de outra maneira essas Virtudes e Vícios de Pádua. Da mesma forma que a imagem daquela rapariga era acrescida pelo símbolo adicional que ela carregava adiante do ventre sem parecer compreender-lhe o sentido e sem que nada em seu rosto lhe traduzisse a beleza e o espírito, como se fora tão-somente um simples e pesado fardo, é assim, sem o suspeitar, que a possante comadre que está representada na Arena debaixo do nome de “Cantas” (e cuja reprodução se achava pendurada à parede de minha sala de estudos em Combray) encarna a referida virtude sem que nenhum pensamento de caridade haja alguma vez passado por seu rosto enérgico e vulgar. Por uma bela invenção do pintor, ela calca aos pés os tesouros da terra, mas exatamente como se pisasse uvas em um lagar, ou antes, como se tivesse subido em cima de uns sacos para elevar-se mais; e estende a Deus seu coração inflamado, digamos melhor, ela o “passa” a Ele, como uma cozinheira passa um saca-rolhas, pelo respiradouro de seu subsolo, a alguém que lhe pede da janela do andar térreo. A Inveja, essa, já tinha mais expressão de inveja. Mas também nesse afresco o símbolo ocupa tanto espaço e é representado como tão real, tão grossa é a serpente que silva nos lábios da Inveja, tão completamente lhe enche a boca escancarada que os músculos de seu rosto estão distendidos pelo esforço de contê-la, como os de uma criança a soprar um balão, e a atenção da Inveja, e a nossa igualmente, concentrada de todo na ação de seus lábios, quase que não tem tempo de entregar-se a pensamentos invejosos.
     Apesar de toda a admiração do sr. Swann por essas figuras de Giotto, por muito tempo não senti nenhum prazer em contemplar em nossa sala de estudo, onde haviam pendurado as cópias que ele me trouxera, aquela Caridade sem caridade, aquela Inveja que mais parecia uma ilustração de livro de medicina para mostrar a compressão da glote ou da campainha por um tumor da língua ou pela introdução do instrumento operatório, uma Justiça cujo rosto comum e mesquinhamente regular era aquele mesmo que, em Combray, caracterizava certas boas burguesas devotas e secas que eu via na igreja e várias das quais já estavam engajadas na milícia de reserva da Injustiça. Mais tarde, porém, compreendi que a estranheza impressionante, a beleza especial daqueles afrescos, provinha do considerável lugar que ali ocupava o símbolo, e o fato de estar ele representado não como um símbolo, pois o pensamento simbolizado não se achava expresso, mas sim como real, como efetivamente sofrido ou materialmente manejado, dava à significação da obra qualquer coisa de mais literal e preciso, e a seu ensinamento qualquer coisa de mais concreto e incisivo. Com a pobre criada de cozinha, também, não era a atenção incessante atraída para seu ventre, pelo peso que o distendia? E assim também, muitas vezes o pensamento dos agonizantes é desviado para o lado efetivo, doloroso, obscuro, visceral, para esse avesso da morte que é justamente o lado que ela lhes apresenta, que lhes faz rudemente sentir e que muito mais se parece com um fardo que os esmaga, com uma dificuldade de respirar, com uma necessidade de beber, do que com aquilo a que chamamos ideia de morte.
     Aqueles Vícios e Virtudes de Pádua deviam ter mesmo muita realidade, visto que me apareciam tão vivos como a criada grávida; e ela própria não se me afigurava menos alegórica. E talvez essa não participação (pelo menos aparente) da alma de um ser na virtude que age por seu intermediário tenha também, independentemente de seu valor estético, uma realidade se não psicológica, ao menos fisiognomônica, como se diz. Quando tive mais tarde ocasião de encontrar, no curso da vida, em conventos por exemplo, encarnações verdadeiramente santas da caridade ativa, tinham geralmente um ar alegre, positivo, indiferente e brusco de cirurgião apressado, essa fisionomia em que não se lê nenhuma comiseração, nenhum enternecimento diante da dor humana, nenhum temor de feri-la, e que é a fisionomia sem doçura, a fisionomia antipática e sublime da verdadeira bondade.
     Enquanto a criada de cozinha — fazendo brilhar involuntariamente a superioridade de Françoise, como o Erro, pelo contraste, torna mais retumbante o triunfo da Verdade — servia café que, segundo mamãe, não passava de água quente, e levava depois a nossos quartos água quente que era apenas morna, eu me estendera no leito, com um livro na mão, em meu quarto, que protegia, tremendo, sua frescura transparente e frágil contra o sol da tarde, por detrás de seus postigos quase fechados, por onde um reflexo de luz havia no entanto conseguido passar suas asas amarelas, permanecendo imóvel em um canto, entre a madeira e a vidraça, como uma borboleta em repouso. A claridade do quarto era o quanto bastava para ler, e a sensação do esplendor da luz apenas me era dada pelas batidas vibradas por Camus na rua da Paróquia (avisado que fora por Françoise de que minha tia “não estava repousando” e se podia fazer barulho) contra caixões poeirentos, batidas que, retinindo na atmosfera sonora, própria dos climas quentes, pareciam fazer voar ao longe astros escarlates; e também pelas moscas que executavam diante de mim um pequeno concerto, como que a música de câmara do estio: não o evoca à maneira de uma ária de música humana que, ouvida por acaso nessa estação, nos faz lembrá-la em seguida; está unida ao verão por um elo mais necessário: nascida dos belos dias, só renascendo com eles, contendo um pouco de sua essência, não lhes desperta apenas a imagem em nossa memória, mas certifica-lhes a volta, a presença efetiva, ambiente, imediatamente acessível.
     Aquele umbroso frescor de meu quarto estava para a luz plena da rua como a sombra está para o raio de sol, quer dizer, tão luminoso como ele, e oferecia a minha imaginação o espetáculo total do estio, que meus sentidos, se eu estivesse em passeio, só poderiam gozar fragmentariamente; e assim se adaptava bem ao meu repouso que (graças às aventuras contadas em meus livros e que acabavam de o agitar) suportava, semelhante ao repouso de uma mão imóvel no meio de uma correnteza, o choque e a animação de uma torrente de atividade.
     Mas, mesmo que o tempo se alterasse e tivesse vindo uma tormenta ou um simples chuvisco, minha avó ia rogar-me que saísse. E como eu não queria interromper a leitura, ia ao menos continuá-la no jardim, debaixo do castanheiro, em uma espécie de guarida de esparto e lona, ao fundo da qual me assentava, julgando-me oculto aos olhos das pessoas que acaso viessem de visita a meus pais.
     E acaso não era também meu pensamento um refúgio em cujo fundo me sentia oculto, até mesmo para olhar o que se passava fora? Quando via um objeto exterior, a consciência de que o estava vendo permanecia entre mim e ele, debruava-o de uma tênue orla espiritual que me impedia de jamais tocar diretamente sua matéria; esta como que se volatilizava antes que eu estabelecesse contato com ela, da mesma forma que um corpo incandescente, ao aproximar-se de um objeto molhado, não toca sua umidade, porque se faz sempre preceder de uma zona de evaporação. Na espécie de tela colorida de diferentes estados, que minha consciência ia desenrolando simultaneamente enquanto eu lia e que iam desde as aspirações mais profundamente ocultas em mim mesmo até a visão puramente exterior do horizonte que tinha ante os olhos, o que havia de principal, de mais íntimo em mim, o leme em incessante movimento que governava o resto, era minha crença na riqueza filosófica, na beleza do livro que estava lendo, qualquer que fosse esse livro. Pois, ainda que o houvesse comprado em Combray, ao vê-lo na loja de Borange (muito longe de casa para que Françoise pudesse ir buscá-lo como no Camus, mas melhor sortida em artigos de papelaria e livraria) sustido por atilhos em meio do mosaico das brochuras e fascículos que coloriam as duas folhas de sua porta, mais misteriosa, mais semeada de pensamentos que uma porta de catedral, é porque me lembrara de o ter ouvido citar como uma obra notável pelo professor ou camarada que me parecia possuir naquela época o segredo da verdade e da beleza, meio pressentidas, meio incompreensíveis, e cuja posse era a finalidade vaga mas permanente de meu pensamento.
     Depois dessa crença central que, durante a leitura, executava incessantes movimentos de dentro para fora, em busca da verdade, vinham as emoções que proporcionavam a ação em que eu tomava parte, pois aquelas tardes eram mais povoadas de acontecimentos dramáticos do que, muitas vezes, uma vida inteira. Esses acontecimentos eram os que sucediam no livro que eu lia; na verdade, as personagens a quem afetavam não eram “reais”, como dizia Françoise. Mas todos os sentimentos que nos fazem experimentar a alegria ou o infortúnio de uma personagem real só se produzem em nós por intermédio de uma imagem dessa alegria ou desse infortúnio; todo o engenho do primeiro romancista consistiu em compreender que, sendo a imagem o único elemento essencial na estrutura de nossas emoções, a simplificação que consistisse em suprimir pura e simplesmente as personagens reais seria um aperfeiçoamento decisivo. Um ser real, por mais profundamente que simpatizemos com ele, percebemo-lo em grande parte por meio de nossos sentidos, isto é, continua opaco para nós, oferece um peso morto que nossa sensibilidade não pode levantar. Se lhe sucede uma desgraça, esta só nos pode comover em uma pequena parte da noção total que temos dele, e ainda mais, só em uma pequena parte da noção total que ele tem de si mesmo é que sua própria desgraça o poderá comover. O achado do romancista consistiu na ideia de substituir essas partes impenetráveis à alma por uma quantidade igual de partes imateriais, isto é, que nossa alma pode assimilar. Desde esse momento, já não importa que as ações e emoções desses indivíduos de uma nova espécie nos apareçam como verdadeiras, visto que as fizemos nossas, que é em nós que elas se realizam e mantêm sob seu domínio, enquanto viramos febrilmente as páginas, o ritmo de nossa respiração e a intensidade de nosso olhar. E uma vez que o romancista nos pôs nesse estado, no qual, como em todos os estados puramente interiores, cada emoção é duplicada, e em que seu livro vai nos agitar como um sonho, mas um sonho mais claro do que aqueles que sonhamos a dormir e cuja lembrança vai durar mais tempo, eis que então ele desencadeia em nós, durante uma hora, todas as venturas e todas as desgraças possíveis, algumas das quais levaríamos anos para conhecer na vida, e outras, as mais intensas dentre elas, jamais nos seriam reveladas, pois a lentidão com que se processam nos impede de as perceber (assim muda nosso coração, na vida, e esta é a mais amarga das dores; mas é uma dor que só conhecemos pela leitura, em imaginação; porque na realidade o coração se nos transforma do mesmo modo por que se produzem certos fenômenos da natureza, isto é, com tamanho vagar que, embora possamos ver cada um de seus diferentes estados sucessivos, por outro lado escapa-nos a própria sensação da mudança).
     Já menos interior a meu corpo que essa vida das personagens, vinha em seguida, vagamente projetada diante de mim, a paisagem onde se desenrolava a ação e que exercia em meus pensamentos muito mais influência que a outra, aquela que eu tinha à vista quando erguia os olhos do livro. Foi assim que senti durante dois verões, no calor do jardim de Combray, por causa de um livro que estava lendo, a nostalgia de um país montanhoso e fluvial, onde eu veria muitas serrarias e onde, no fundo da água transparente, apodreciam pedaços de madeira sob tufos de agrião; e não longe dali, subiam ao longo de muros baixos umas flores violáceas e avermelhadas. E como sempre me estivesse presente ao espírito o sonho de uma mulher que deveria amar-me, este sonho, naqueles verões, todo se impregnou do frescor das águas correntes e, qualquer que fosse a mulher evocada, umas trepadeiras de flores avermelhadas e violáceas logo se erguiam de cada lado seu, como cores complementares.

continua na página 69...
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Leia também:

Volume 1
No Caminho de Swann (Combray, Outrora - f)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
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[1] Giotto pintou, entre os anos de 1305 e 1310, na capela de Arena, em Pádua, afrescos representando a história da Virgem Maria e de Cristo, e, embaixo, catorze figuras alegóricas, sete de Vícios e sete de Virtudes. [n. e.]

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