volume I
No Caminho de Swann
ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust
combray
II(f) ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust
combray
continuando...
De modo que eu não mais entrava no gabinete de repouso, agora fechado, de meu tio Adolphe, e, depois de me demorar pelas imediações da despensa, quando Françoise me dizia, aparecendo à entrada: “Vou deixar que a criada de cozinha sirva o café e suba a água quente, pois tenho de ir já para o quarto da sua tia”, decidia-me a entrar e subia diretamente ao meu quarto para ler. A criada de cozinha era uma pessoa moral, uma instituição permanente a quem atribuições invariáveis asseguravam uma espécie de continuidade e de identidade, através da sucessão de formas passageiras em que se encarnava: pois nunca tivemos a mesma dois anos seguidos. No ano em que comemos tantos aspargos, a criada de cozinha habitualmente encarregada de os “pelar” era uma pobre criatura doentia, já em adiantado estado de gravidez quando chegamos pela Páscoa, e até espantava que Françoise a deixasse andar e trabalhar tanto, pois ela começava a carregar com dificuldade adiante de si o misterioso cesto, cada dia mais cheio, de que se adivinhava a magnífica forma sob suas vastas blusas. Lembravam estas as opalandas que vestem certas figuras simbólicas de Giotto, de que o sr. Swann me dera fotografias. Fora ele mesmo quem nos fizera observar tal coisa e, sempre que pedia notícias da criada de cozinha, era com estas palavras: “E como vai a Caridade de Giotto?”.[1] Aliás ela própria, a pobre rapariga, gorda, com a gravidez, até o rosto, até as faces que tombavam retas e quadradas, muito se assemelhava com efeito àquelas virgens, fortes e varonis, ou antes matronas, que na Arena personificam as virtudes. E reconheço agora que ainda se lhe assemelhavam de outra maneira essas Virtudes e Vícios de Pádua. Da mesma forma que a imagem daquela rapariga era acrescida pelo símbolo adicional que ela carregava adiante do ventre sem parecer compreender-lhe o sentido e sem que nada em seu rosto lhe traduzisse a beleza e o espírito, como se fora tão-somente um simples e pesado fardo, é assim, sem o suspeitar, que a possante comadre que está representada na Arena debaixo do nome de “Cantas” (e cuja reprodução se achava pendurada à parede de minha sala de estudos em Combray) encarna a referida virtude sem que nenhum pensamento de caridade haja alguma vez passado por seu rosto enérgico e vulgar. Por uma bela invenção do pintor, ela calca aos pés os tesouros da terra, mas exatamente como se pisasse uvas em um lagar, ou antes, como se tivesse subido em cima de uns sacos para elevar-se mais; e estende a Deus seu coração inflamado, digamos melhor, ela o “passa” a Ele, como uma cozinheira passa um saca-rolhas, pelo respiradouro de seu subsolo, a alguém que lhe pede da janela do andar térreo. A Inveja, essa, já tinha mais expressão de inveja. Mas também nesse afresco o símbolo ocupa tanto espaço e é representado como tão real, tão grossa é a serpente que silva nos lábios da Inveja, tão completamente lhe enche a boca escancarada que os músculos de seu rosto estão distendidos pelo esforço de contê-la, como os de uma criança a soprar um balão, e a atenção da Inveja, e a nossa igualmente, concentrada de todo na ação de seus lábios, quase que não tem tempo de entregar-se a pensamentos invejosos.
Apesar de toda a admiração do sr. Swann por essas figuras de Giotto, por muito
tempo não senti nenhum prazer em contemplar em nossa sala de estudo, onde haviam
pendurado as cópias que ele me trouxera, aquela Caridade sem caridade, aquela Inveja
que mais parecia uma ilustração de livro de medicina para mostrar a compressão da glote
ou da campainha por um tumor da língua ou pela introdução do instrumento
operatório, uma Justiça cujo rosto comum e mesquinhamente regular era aquele mesmo
que, em Combray, caracterizava certas boas burguesas devotas e secas que eu via na
igreja e várias das quais já estavam engajadas na milícia de reserva da Injustiça. Mais
tarde, porém, compreendi que a estranheza impressionante, a beleza especial daqueles
afrescos, provinha do considerável lugar que ali ocupava o símbolo, e o fato de estar ele
representado não como um símbolo, pois o pensamento simbolizado não se achava
expresso, mas sim como real, como efetivamente sofrido ou materialmente manejado,
dava à significação da obra qualquer coisa de mais literal e preciso, e a seu ensinamento
qualquer coisa de mais concreto e incisivo. Com a pobre criada de cozinha, também, não
era a atenção incessante atraída para seu ventre, pelo peso que o distendia? E assim
também, muitas vezes o pensamento dos agonizantes é desviado para o lado efetivo,
doloroso, obscuro, visceral, para esse avesso da morte que é justamente o lado que ela
lhes apresenta, que lhes faz rudemente sentir e que muito mais se parece com um fardo
que os esmaga, com uma dificuldade de respirar, com uma necessidade de beber, do que
com aquilo a que chamamos ideia de morte.
Aqueles Vícios e Virtudes de Pádua deviam ter mesmo muita realidade, visto que me
apareciam tão vivos como a criada grávida; e ela própria não se me afigurava menos
alegórica. E talvez essa não participação (pelo menos aparente) da alma de um ser na
virtude que age por seu intermediário tenha também, independentemente de seu valor
estético, uma realidade se não psicológica, ao menos fisiognomônica, como se diz.
Quando tive mais tarde ocasião de encontrar, no curso da vida, em conventos por
exemplo, encarnações verdadeiramente santas da caridade ativa, tinham geralmente um ar
alegre, positivo, indiferente e brusco de cirurgião apressado, essa fisionomia em que
não se lê nenhuma comiseração, nenhum enternecimento diante da dor humana, nenhum
temor de feri-la, e que é a fisionomia sem doçura, a fisionomia antipática e sublime da
verdadeira bondade.
Enquanto a criada de cozinha — fazendo brilhar involuntariamente a superioridade
de Françoise, como o Erro, pelo contraste, torna mais retumbante o triunfo da Verdade
— servia café que, segundo mamãe, não passava de água quente, e levava depois a
nossos quartos água quente que era apenas morna, eu me estendera no leito, com um
livro na mão, em meu quarto, que protegia, tremendo, sua frescura transparente e frágil
contra o sol da tarde, por detrás de seus postigos quase fechados, por onde um reflexo
de luz havia no entanto conseguido passar suas asas amarelas, permanecendo imóvel em
um canto, entre a madeira e a vidraça, como uma borboleta em repouso. A claridade do
quarto era o quanto bastava para ler, e a sensação do esplendor da luz apenas me era
dada pelas batidas vibradas por Camus na rua da Paróquia (avisado que fora por
Françoise de que minha tia “não estava repousando” e se podia fazer barulho) contra
caixões poeirentos, batidas que, retinindo na atmosfera sonora, própria dos climas
quentes, pareciam fazer voar ao longe astros escarlates; e também pelas moscas que
executavam diante de mim um pequeno concerto, como que a música de câmara do estio:
não o evoca à maneira de uma ária de música humana que, ouvida por acaso nessa
estação, nos faz lembrá-la em seguida; está unida ao verão por um elo mais necessário:
nascida dos belos dias, só renascendo com eles, contendo um pouco de sua essência, não
lhes desperta apenas a imagem em nossa memória, mas certifica-lhes a volta, a presença
efetiva, ambiente, imediatamente acessível.
Aquele umbroso frescor de meu quarto estava para a luz plena da rua como a
sombra está para o raio de sol, quer dizer, tão luminoso como ele, e oferecia a minha
imaginação o espetáculo total do estio, que meus sentidos, se eu estivesse em passeio, só
poderiam gozar fragmentariamente; e assim se adaptava bem ao meu repouso que
(graças às aventuras contadas em meus livros e que acabavam de o agitar) suportava,
semelhante ao repouso de uma mão imóvel no meio de uma correnteza, o choque e a
animação de uma torrente de atividade.
Mas, mesmo que o tempo se alterasse e tivesse vindo uma tormenta ou um simples
chuvisco, minha avó ia rogar-me que saísse. E como eu não queria interromper a
leitura, ia ao menos continuá-la no jardim, debaixo do castanheiro, em uma espécie de
guarida de esparto e lona, ao fundo da qual me assentava, julgando-me oculto aos olhos
das pessoas que acaso viessem de visita a meus pais.
E acaso não era também meu pensamento um refúgio em cujo fundo me sentia
oculto, até mesmo para olhar o que se passava fora? Quando via um objeto exterior, a
consciência de que o estava vendo permanecia entre mim e ele, debruava-o de uma tênue
orla espiritual que me impedia de jamais tocar diretamente sua matéria; esta como que se
volatilizava antes que eu estabelecesse contato com ela, da mesma forma que um corpo
incandescente, ao aproximar-se de um objeto molhado, não toca sua umidade, porque se
faz sempre preceder de uma zona de evaporação. Na espécie de tela colorida de
diferentes estados, que minha consciência ia desenrolando simultaneamente enquanto eu
lia e que iam desde as aspirações mais profundamente ocultas em mim mesmo até a visão
puramente exterior do horizonte que tinha ante os olhos, o que havia de principal, de
mais íntimo em mim, o leme em incessante movimento que governava o resto, era
minha crença na riqueza filosófica, na beleza do livro que estava lendo, qualquer que
fosse esse livro. Pois, ainda que o houvesse comprado em Combray, ao vê-lo na loja de
Borange (muito longe de casa para que Françoise pudesse ir buscá-lo como no Camus,
mas melhor sortida em artigos de papelaria e livraria) sustido por atilhos em meio do
mosaico das brochuras e fascículos que coloriam as duas folhas de sua porta, mais
misteriosa, mais semeada de pensamentos que uma porta de catedral, é porque me
lembrara de o ter ouvido citar como uma obra notável pelo professor ou camarada que
me parecia possuir naquela época o segredo da verdade e da beleza, meio pressentidas,
meio incompreensíveis, e cuja posse era a finalidade vaga mas permanente de meu
pensamento.
Depois dessa crença central que, durante a leitura, executava incessantes movimentos
de dentro para fora, em busca da verdade, vinham as emoções que proporcionavam a
ação em que eu tomava parte, pois aquelas tardes eram mais povoadas de acontecimentos
dramáticos do que, muitas vezes, uma vida inteira. Esses acontecimentos eram os que
sucediam no livro que eu lia; na verdade, as personagens a quem afetavam não eram
“reais”, como dizia Françoise. Mas todos os sentimentos que nos fazem experimentar a
alegria ou o infortúnio de uma personagem real só se produzem em nós por intermédio
de uma imagem dessa alegria ou desse infortúnio; todo o engenho do primeiro
romancista consistiu em compreender que, sendo a imagem o único elemento essencial
na estrutura de nossas emoções, a simplificação que consistisse em suprimir pura e
simplesmente as personagens reais seria um aperfeiçoamento decisivo. Um ser real, por
mais profundamente que simpatizemos com ele, percebemo-lo em grande parte por
meio de nossos sentidos, isto é, continua opaco para nós, oferece um peso morto que
nossa sensibilidade não pode levantar. Se lhe sucede uma desgraça, esta só nos pode
comover em uma pequena parte da noção total que temos dele, e ainda mais, só em uma
pequena parte da noção total que ele tem de si mesmo é que sua própria desgraça o
poderá comover. O achado do romancista consistiu na ideia de substituir essas partes
impenetráveis à alma por uma quantidade igual de partes imateriais, isto é, que nossa
alma pode assimilar. Desde esse momento, já não importa que as ações e emoções desses
indivíduos de uma nova espécie nos apareçam como verdadeiras, visto que as fizemos
nossas, que é em nós que elas se realizam e mantêm sob seu domínio, enquanto viramos
febrilmente as páginas, o ritmo de nossa respiração e a intensidade de nosso olhar. E
uma vez que o romancista nos pôs nesse estado, no qual, como em todos os estados
puramente interiores, cada emoção é duplicada, e em que seu livro vai nos agitar como
um sonho, mas um sonho mais claro do que aqueles que sonhamos a dormir e cuja
lembrança vai durar mais tempo, eis que então ele desencadeia em nós, durante uma
hora, todas as venturas e todas as desgraças possíveis, algumas das quais levaríamos
anos para conhecer na vida, e outras, as mais intensas dentre elas, jamais nos seriam
reveladas, pois a lentidão com que se processam nos impede de as perceber (assim muda
nosso coração, na vida, e esta é a mais amarga das dores; mas é uma dor que só
conhecemos pela leitura, em imaginação; porque na realidade o coração se nos
transforma do mesmo modo por que se produzem certos fenômenos da natureza, isto é,
com tamanho vagar que, embora possamos ver cada um de seus diferentes estados
sucessivos, por outro lado escapa-nos a própria sensação da mudança).
Já menos interior a meu corpo que essa vida das personagens, vinha em seguida,
vagamente projetada diante de mim, a paisagem onde se desenrolava a ação e que exercia
em meus pensamentos muito mais influência que a outra, aquela que eu tinha à vista
quando erguia os olhos do livro. Foi assim que senti durante dois verões, no calor do
jardim de Combray, por causa de um livro que estava lendo, a nostalgia de um país
montanhoso e fluvial, onde eu veria muitas serrarias e onde, no fundo da água
transparente, apodreciam pedaços de madeira sob tufos de agrião; e não longe dali,
subiam ao longo de muros baixos umas flores violáceas e avermelhadas. E como
sempre me estivesse presente ao espírito o sonho de uma mulher que deveria amar-me,
este sonho, naqueles verões, todo se impregnou do frescor das águas correntes e,
qualquer que fosse a mulher evocada, umas trepadeiras de flores avermelhadas e
violáceas logo se erguiam de cada lado seu, como cores complementares.
continua na página 69...
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Leia também:
Volume 1
No Caminho de Swann (Combray, Outrora - f)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
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[1] Giotto pintou, entre os anos de 1305 e 1310, na capela de Arena, em Pádua,
afrescos representando a história da Virgem Maria e de Cristo, e, embaixo, catorze
figuras alegóricas, sete de Vícios e sete de Virtudes. [n. e.]
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