volume I
No Caminho de Swann
ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust
combray
II(g) ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust
combray
continuando...
E não era somente porque uma imagem com que sonhamos seja sempre marcada, embelezada e enriquecida pelo reflexo das coisas estranhas que por acaso a cercam em nosso sonho; pois as paisagens dos livros que eu lia não eram para mim apenas mais vivamente representadas na imaginação do que as paisagens que Combray oferecia a meus olhos, ainda que houvessem sido análogos. Pela escolha que fizera o autor, pela fé com que meu pensamento ia ao encontro de sua palavra, como de uma revelação, elas se me afiguravam — impressão que absolutamente não dava a região onde eu vivia, e muito menos nosso jardim, produto sem prestígio da correta fantasia do jardineiro que minha avó desprezava — uma parte verdadeira da própria natureza, digna de ser estudada e aprofundada.
Se, quando eu lia um livro, meus pais me permitissem visitar as regiões nele
descritas, julgaria ter dado um passo inestimável na conquista da verdade. Pois, se temos
sempre a sensação de estar cercados pela própria alma, não quer dizer que ela nos cinja
como os muros de uma prisão imóvel; antes somos como que arrastados com ela em um
perpétuo impulso para ultrapassá-la, para atingir o exterior, com uma espécie de
desânimo, ouvindo sempre, em torno de nós, essa idêntica sonoridade, que não é o eco
de fora, mas o ressoar de uma vibração interna. Tentamos achar nas coisas, que por isso
nos são preciosas, o reflexo que nossa alma projetou sobre elas, e desiludimo-nos ao
verificar que as coisas parecem desprovidas, na natureza, do encanto que deviam, em
nosso pensamento, à vizinhança de certas ideias; e muitas vezes convertemos todas as
forças dessa alma em habilidade, em esplendor, para influir em seres que sentimos
situados fora de nós e que jamais alcançaremos. E assim, embora imaginasse sempre em
torno da mulher amada os locais que eu então mais desejava, e suspirando por que fosse
ela quem me levasse a visitá-los, que me abrisse o acesso a um mundo desconhecido,
não era isso devido ao acaso de uma simples associação de ideias; não, é que meus
sonhos de viagem e de amor não eram senão momentos — que hoje separo
artificialmente como se efetuasse cortes a diversas alturas de um repuxo irisado e em
aparência imóvel — de um mesmo e infatigável manar de todas as forças de minha vida.
Continuando enfim a seguir de dentro para fora os estados simultaneamente
justapostos em minha consciência, e antes de chegar ao horizonte real que os envolvia,
descubro prazeres de outro gênero: estar bem acomodado em meu canto, sentir o cheiro
bom do ar, não ser perturbado por nenhuma visita; e, quando batia a hora na torre de
Santo Hilário, assistindo tombar pedaço por pedaço aquela parte já consumada da tarde,
até ouvir a última badalada que me permitia efetuar a soma e após a qual havia um longo
silêncio que parecia marcar o início, no céu azul, de toda a parte que me era ainda
concedida para ler até a hora do bom jantar que Françoise preparava e que me
reconfortaria das fadigas adquiridas na leitura para acompanhar o herói do livro. E, a
cada hora, parecia-me fazer apenas alguns instantes que soara a precedente; a mais
recente vinha inscrever-se bem junto da outra no céu e eu não podia acreditar que
sessenta minutos tivessem cabido naquele pequeno arco azul compreendido entre os dois
marcos de ouro. Às vezes aquela hora prematura dava duas badaladas mais que a última,
batera pois uma hora que eu não tinha escutado, e alguma coisa acontecera que para mim
não tinha acontecido; o interesse da leitura, mágico como um profundo sono, enganava
meus ouvidos alucinados e apagava o sino de ouro na superfície azul do silêncio. Belas
tardes de domingo passadas debaixo do castanheiro do jardim de Combray, que eu
cuidadosamente esvaziava de incidentes medíocres de minha vida pessoal, pondo em seu
lugar uma vida de aventuras e aspirações estranhas, no seio de um país regado de águas
vivas, ainda me evocais essa vida quando penso em vós, e na verdade a contendes,
porque pouco a pouco a íeis cercando e cerrando — enquanto eu avançava na leitura e
tombava a calma do dia — no cristal sucessivo, vagarosamente mutável e atravessado de
folhagens, de vossas horas silenciosas, sonoras, odorantes e límpidas.
Às vezes, no meio da tarde, era eu arrancado à leitura pela filha do jardineiro, que
corria como uma louca, esbarrando em uma laranjeira, cortando um dedo, quebrando
um dente, mas gritando “Aí vêm eles! Aí vêm eles!” para que Françoise e eu
corrêssemos e não perdêssemos nada do espetáculo. Era nos dias em que, por motivo
das manobras da guarnição, a tropa atravessava Combray, tomando geralmente pela rua
de Santa Hildegarda.[1] Enquanto nossos criados, sentados em fila do lado de fora das
grades, olhavam os passeantes domingueiros e faziam-se olhar por eles, a filha do
jardineiro, pelo intervalo de duas distantes casas da avenida da Estação, vislumbrava o
fulgir dos capacetes. Os criados tinham recolhido precipitadamente as cadeiras, pois
quando os couraceiros desfilavam pela rua de Santa Hildegarda, enchiam-na em toda a
sua largura, e o galope dos cavalos renteava as casas, cobrindo as calçadas, submersas
como ribas que oferecem um leito demasiado escasso a uma torrente desencadeada.
— Pobres meninos! — dizia Françoise, logo que chegava às grades e já com os olhos rasos d’água. — Serão ceifados como erva! Só de pensar nisso me dá um choque — acrescentava, pondo a mão no coração, ali onde recebera aquele choque.
— Pobres meninos! — dizia Françoise, logo que chegava às grades e já com os olhos rasos d’água. — Serão ceifados como erva! Só de pensar nisso me dá um choque — acrescentava, pondo a mão no coração, ali onde recebera aquele choque.
— Que coisa bonita ver rapazes que não ligam à vida, não é, senhora Françoise? —
dizia o jardineiro para arreliá-la.
E não tinha falado em vão.
— Que não ligam à vida? Mas a que mais se deve ligar, senão à vida, o único
presente que o bom Deus nunca faz duas vezes? Ah!, meu Deus! E no entanto não ligam
mesmo! Eu os vi em setenta; não têm mais medo da morte, com essas miseráveis
guerras; não passam de uns loucos, sem tirar nem pôr; e não valem a corda que os
enforque; não são homens, são leões. (Para Françoise, comparar um homem a um leão,
que ela pronunciava le-ão, nada tinha de lisonjeiro.)
A rua de Santa Hildegarda virava muito bruscamente para que se pudessem avistar
de longe os soldados, e por aquela fenda entre as duas casas da avenida da Estação é que
se viam, incessantemente, novos capacetes correndo e brilhando ao sol. O jardineiro
desejava saber quantos ainda faltariam passar e, de resto, tinha sede, pois o sol escaldava.
Então sua filha, subitamente, lançando-se como de uma praça sitiada, dava uma saída,
alcançava a esquina e, depois de ter mil vezes afrontado a morte, vinha trazer-nos, com
um refresco de coco, a notícia de que ainda havia uns mil que se aproximavam sem
parar, das bandas de Thiberzy e Méséglise. Françoise e o jardineiro, reconciliados,
discutiam sobre o que se deveria fazer em caso de guerra:
— Veja, Françoise — dizia o jardineiro —, revolução é melhor. Pois, quando há
revolução, só vão os que querem.
— Ah!, isso ao menos eu compreendo, é mais franco.
O jardineiro julgava que, ao ser feita a declaração de guerra, mandavam parar todos
os trens.
— Lógico! Para que ninguém possa escapar — dizia Françoise.
E o jardineiro:
— Ah!, eles são uns espertos! — pois não admitia que a guerra não fosse assim
como uma peça que o Estado procurava pregar ao povo e de que todos, podendo, não
deixariam de se livrar.[2]
Mas Françoise se apressava em ir ter com minha tia, eu voltava a meu livro, os
criados se reinstalavam diante da porta a ver tombar a poeira e a emoção que os soldados
levantaram. Muito tempo depois de sobrevinda a acalmia, ainda uma desusada onda de
passeantes negrejava nas ruas de Combray. E diante de cada casa, mesmo aquelas em que
não era costume, os criados, ou mesmo os patrões, assentados e olhando, enchiam as
soleiras de um festão caprichoso e sombrio como esses de algas e conchas, e cujos
crepes e rendas deixa a maré na margem, ao retirar-se.
Exceto nesses dias, eu podia entregar-me tranquilamente à leitura, como de costume.
Mas, um dia, a interrupção e o comentário de Swann à leitura que eu fazia de um autor
inteiramente novo para mim, Bergotte, tiveram como consequência que, por muito
tempo, não fosse mais sobre um muro decorado de flores roxas, mas sobre um fundo
muito diverso, à entrada de uma catedral gótica, que se destacasse desde então a imagem
de uma das mulheres com quem eu sonhava.
A primeira pessoa a quem ouvi falar de Bergotte foi um de meus camaradas, mais
velho do que eu e por quem eu tinha grande admiração, Bloch.[3] Ao falar-lhe de
minha admiração pela Nuit d’octobre, dera ele uma gargalhada estridente como um clarim,
dizendo:
— Desconfia da tua dileção assaz baixa pelo senhor de Musset. É um gagá dos mais
maléficos e uma sinistra besta. Devo aliás confessar que ele, e até o chamado Racine,
fizeram cada um, em toda a vida, um verso muito bem ritmado e que tem em seu favor
o que para mim é o mérito supremo: não significar absolutamente nada. Ei-los:
La blanche Oloossone et la blanche CamyreLa fille de Minos et de Pasiphaé.[4]
Vi-os citados em abono desses dois malandrins num artigo de meu querido mestre,
“o tio Leconte”, grato aos deuses imortais. A propósito, aqui está um livro que no
momento não tenho tempo de ler e que é recomendado, parece, por esse imenso
indivíduo. Disseram-me que ele considera o autor, o sr. Bergotte, como um tipo dos
mais sutis; e embora dê prova, às vezes, de mansuetudes muito pouco explicáveis, sua
palavra para mim é oráculo délfico. Lê pois essas provas líricas, e se o gigantesco
formador de ritmos que escreveu Baghavat e Le l’évrier de Magnus disse a verdade, gozarás,
caro mestre, as alegrias nectárias do Olimpo.[5] Pedira-me num tom sarcástico que o
tratasse de “caro mestre”, e assim também me chamava. Mas realmente achávamos
algum prazer nessa brincadeira, pois ainda estávamos muito próximos dessa idade em
que se julga dar vida ao que se nomeia.
Infelizmente não pude abrandar, conversando com Bloch e pedindo-lhe explicações,
a inquietação em que ele me lançara ao dizer-me que os belos versos (a mim que não
esperava deles nada menos que a revelação da verdade) eram tanto mais belos quanto
menos significação tivessem. Bloch, com efeito, não foi mais convidado a visitar-nos. A
princípio fora muito bem acolhido. É verdade que meu avô afiançava que, sempre que
eu me ligava mais estreitamente com um camarada meu do que com os outros e o levava
a nossa casa, tratava-se infalivelmente de um judeu, o que em tese não lhe desagradaria
— seu próprio amigo Swann era de origem judaica —, se não lhe parecesse que eu
habitualmente não o escolhia dentre os melhores. Assim, quando eu trazia um novo
amigo, quase sempre se punha a cantarolar: “Ó Deus de nossos Pais” de A judia,[6] ou
então: “Israel, rompe tuas cadeias”,[7] sem a letra, naturalmente (Ti la lam talam, talim),
mas eu tinha medo de que meu companheiro conhecesse a música e se lembrasse das
palavras.
Antes que os visse, só de ouvir seu nome, que muitas vezes nada tinha de
caracteristicamente judaico, ele adivinhava, não só a origem hebraica de meus amigos
que realmente a possuíam, mas até os antecedentes desagradáveis que pudesse haver em
sua família.
— E como se chama o teu amigo que vem esta tarde?
— Dumont, meu avô.
— Dumont, meu avô.
— Dumont? Hum! Não me fio…
E cantava:
Ó arqueiros, velai bem!Velai sem trégua e sem ruído.
E, depois de nos fazer habilmente algumas perguntas mais precisas, exclamava:
“Alerta! Alerta!”, ou, se era o próprio paciente, já chegado, a quem forçara, sem este
saber, mediante um dissimulado interrogatório, a confessar suas origens, então, para
mostrar que já não tinha dúvida alguma, contentava-se em nos olhar, cantarolando
imperceptivelmente:
Como! Desse tímido israelitaGuiais aqui o passo?!
ou:
Ó campos paternais, Hebron, ó doce vale.[8]
ou ainda:
Sim, eu sou da raça eleita.
Essas pequenas manias de meu avô não implicavam nenhum sentimento de malevolência para com meus camaradas. Mas Bloch desagradara minha família por outros motivos. Começou por irritar meu pai que, vendo-o chegar todo molhado, lhe perguntara com interesse:
— Mas que tempo é esse, senhor Bloch, será que choveu? Não compreendo nada,
pois o barômetro estava firme.
E só lhe obtivera esta resposta:
— Senhor, absolutamente não lhe posso dizer se choveu ou não. Vivo tão
resolutamente fora das contingências físicas que meus sentidos não se dão o trabalho de
mas notificar.
— Mas, meu pobre filho, é idiota esse teu amigo — disse-me meu pai, depois que
Bloch se retirou. — Como! Nem ao menos pode me dizer que tempo faz?! Pois se não
há nada de mais interessante! É um imbecil.
Depois havia também desagradado minha avó porque, dizendo-lhe esta após o
almoço que não se sentia muito bem, ele abafara um soluço e enxugara os olhos.
— Como queres que isso seja sincero, visto que ele não me conhece? — disse-me
ela. — Ou então é louco.
E por fim descontentara a todo mundo porque, tendo vindo almoçar com hora e
meia de atraso e todo enlameado, em vez de desculpar-se, dissera:
— Não me deixo influenciar pelas perturbações da atmosfera nem pelas divisões
convencionais do tempo. Reabilitaria com muito gosto o uso do cachimbo de ópio e do
cris malaio, mas ignoro o uso desses instrumentos infinitamente mais perniciosos e por
outro lado infinitamente burgueses: o relógio e o guarda-chuva.
continua na página 72...
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Leia também:
Volume 1
No Caminho de Swann (Combray, E não era somente - g)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
[1] A guerra, um dos motivos centrais do último volume do livro, passa por Combray
como mera distração de domingo. Sabe-se que, ao final, mesmo a pequena igreja
medieval da cidade será totalmente destruída. [n. e.]
[2] Com a eclosão da verdadeira guerra, o porteiro do prédio em Paris assumirá o papel do jardineiro de Combray nas provocações a Françoise: a guerra não nos será descrita; o que o narrador coleta é um mundo de frases e diálogos em torno do tema. [n. e.]
[2] Com a eclosão da verdadeira guerra, o porteiro do prédio em Paris assumirá o papel do jardineiro de Combray nas provocações a Françoise: a guerra não nos será descrita; o que o narrador coleta é um mundo de frases e diálogos em torno do tema. [n. e.]
[3] O garoto judeu, já muito avançado em matéria de literatura, aparecerá repetidas
vezes no livro, até que o veremos na figura de um autor de prestígio que tenta realizar o
que o herói há muito já realizou: ascender nos salões elegantes. Ao final da caminhada
do herói, Bloch ainda estará, então, tentando partir do início. [n. e.]
[4] O herói diz admirar o poema “Nuit d’Octobre”, de Musset; Bloch cita então um
verso do “Nuit de Mai”, do mesmo poeta, e outro de Phèdre, de Racine, reproduzindo,
ao que parece, uma opinião do poeta Théophile Gautier. De acordo com Proust, opinião
“idiota” daquele que ele considerava “um poeta de terceira ordem”. [n. e.]
[5] Bloch menciona duas obras de Léconte de Lisle. É de supor que ele também teve
contato com as traduções de Lisle da Ilíada e da Odisseia para o francês. [n. e.]
[6] Ópera de Fromenthal Halévy, com libreto de Scribe. [n. e.]
[7] Verso extraído da peça Sansão e Dalila, musicada por Saint-Saëns e texto de
Ferdinand Lemaire, exibida em 1892 em Paris. [n. e.]
[8] Citação extraída da ópera-cômica Joseph, de Étinenne-Nicolas Méhul. Há versos
citados pelo avô de procedência incerta. [n. e.]
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