O Amor nos Tempos de Cólera
Gabriel García Márquez
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continuando...
O doutor Urbino Daza não tinha reparado até então na inconveniência de sua
profecia, e enfiou por um desfiladeiro de explicações que acabaram de emaranhá-lo.
Mas Florentino Ariza o ajudou a sair. Estava radiante, pois sabia que mais tarde ou
mais cedo ia ter um encontro como aquele com o doutor Urbino Daza, para cumprir
um requisito social inevitável: a petição formal da mão de sua mãe. O almoço foi
muito animador, não só pelo seu próprio motivo, como por demonstrar como ia ser
fácil e bem recebida aquela petição inexorável. Se tivesse contado com o
consentimento de Fermina Daza, nenhuma ocasião teria sido mais propícia. E mais:
depois do que haviam falado durante aquele almoço histórico, o formalismo do
pedido ficava de sobra.
Florentino Ariza subia e descia escadas com um cuidado especial, mesmo
quando jovem, por ter sempre achado que a velhice começava com uma primeira
queda sem importância, e a morte vinha em seguida com a segunda. Mais perigosa
que todas as escadas lhe parecia a de seus escritórios, íngreme e de espaços
estreitos, e desde muito antes de começar a se esforçar para não arrastar os pés ele
a subia olhando bem os degraus e agarrado ao corrimão com as duas mãos. Muitas
vezes lhe sugeriram que a substituísse por outra menos arriscada, mas a decisão
ficava sempre para o mês entrante, porque ele achava que seria uma concessão feita
à velhice. À medida que passavam os anos levava mais tempo para subir, não
porque lhe custasse mais trabalho, como se apressava em explicar, e sim porque
cada vez subia com mais cuidado. Contudo, no dia em que regressou do almoço com
o doutor Urbino Daza, depois do cálice de vinho do porto do aperitivo e meio copo
de vinho tinto com a refeição, e sobretudo depois da conversação triunfal, procurou
atingir o terceiro degrau com um passo de dança tão juvenil que torceu o tornozelo
esquerdo, caiu de costas e não se matou por milagre. No momento em que caía teve
lucidez suficiente para pensar que não ia morrer daquele acidente, porque não era
possível na lógica da vida que dois homens que haviam amado tanto durante tantos
anos a mesma mulher pudessem morrer do mesmo modo com apenas um ano de
diferença. Tinha razão. Puseram-lhe uma couraça de gesso do pé à barriga da perna,
e o obrigaram a ficar imóvel na cama, mas continuou mais vivo que antes da queda.
Quando o médico lhe ordenou os sessenta dias de invalidez, não pôde acreditar em
tanta desdita.
— Não me faça isto, doutor — implorou. — Dois meses dos meus são como dez
anos dos seus.
Várias vezes procurou se levantar carregando a perna de estátua com as duas
mãos, mas foi sempre vencido pela realidade. Mas quando por fim voltou a andar
com o tornozelo ainda dolorido e as costas em carne viva, teve motivos de sobra
para acreditar que o destino tinha premiado sua perseverança com uma queda
providencial.
Seu dia pior foi a primeira segunda-feira. A dor tinha cedido, e o prognóstico
médico era muito animador, mas ele se negava a aceitar o fatalismo de não ver
Fermina Daza na tarde seguinte, pela primeira vez em quatro meses. Não obstante,
depois de uma sesta de resignação se submeteu à realidade e escreveu uma nota de
desculpas. Escreveu-a a mão, em papel perfumado e com tinta luminosa para se ler
na escuridão, e dramatizou sem pudores a gravidade do percalço procurando
suscitar compaixão. Ela respondeu dois dias depois, muito comovida, muito amável,
mas sem uma palavra a mais ou a menos, como nos grandes dias do amor. Ele
pegou a oportunidade em pleno voo e tornou a escrever. Quando ela respondeu pela
segunda vez, resolveu ir muito mais longe do que nas conversas cifradas das terças,
e mandou instalar um telefone perto da cama a pretexto de vigiar o curso diário da
empresa. Pediu à telefonista central que o ligasse com o número de três algarismos
que sabia de cor desde a primeira chamada. A voz de timbre apagado, tensa no
mistério da distância, a voz amada respondeu, reconheceu a outra voz, e se despediu
depois de três frases convencionais de saudação. Florentino Ariza ficou
desconsolado com a indiferença: estavam outra vez no princípio.
Tornaram a se tratar por você, tornaram a trocar comentários sobre suas vidas
como nas cartas de antes, mas Florentino Ariza tratou de andar outra vez com
pressa demais: escreveu o nome dela com furos de alfinete nas pétalas de uma
camélia, e mandou-a numa carta. Dois dias depois recebeu-a de volta sem qualquer
comentário. Fermina Daza não tinha outro recurso: aquilo tudo para ela eram
coisas de crianças. Mais ainda quando Florentino Ariza insistiu em evocar suas
tardes de versos melancólicos na pracinha dos Evangelhos, os esconderijos das
cartas no caminho da escola, as aulas de bordado debaixo das amendoeiras. Ainda
que morta de pena ela o pôs no seu lugar com uma pergunta que parecia casual em
meio a outros comentários triviais: "Por que é que você insiste em falar no que não
existe?" Mais tarde criticou nele a pertinácia estéril de não se deixar envelhecer com
naturalidade. Essa era, segundo ela, a causa de sua precipitação e seus descalabros
constantes na evocação do passado. Não entendia como um homem capaz das
reflexões que tanto apoio lhe haviam dado para suportar a viuvez se enrolava
daquele modo infantil quando procurava aplicá-las à sua própria vida. Os papéis se
inverteram. Então foi ela quem procurou dar-lhe novo ânimo para ver o futuro, com
uma frase que ele, em sua pressa estouvada, não soube decifrar: Deixe que o tempo
passe e já veremos o que traz. Pois nunca foi tão bom aluno quanto ela. A
imobilidade forçada, a certeza cada dia mais lúcida da fugacidade do tempo, os
loucos desejos de vê-la, tudo demonstrava que seus temores da queda tinham sido
mais certeiros e trágicos do que havia previsto. Pela primeira vez começou a pensar
de um modo racional na realidade da morte.
Leona Cassiani o ajudava a tomar banho e mudar o pijama de dois em dois dias,
dava as lavagens, ajeitava o urinol portátil, aplicava compressas de arnica nas
úlceras das costas, fazia massagens a conselho médico para evitar que a imobilidade
lhe causasse outros males piores. Aos sábados e domingos alternava com ela
América Vicuña, que em dezembro daquele ano devia receber seu diploma de
professora. Ele tinha prometido mandá-la fazer um curso superior no Alabama por
conta da companhia fluvial, em parte para amordaçar a consciência, e sobretudo
para não fazer frente às queixas que ela não encontrava como fazer, nem às
explicações que ele devia. Nunca imaginou quanto ela sofria nas insônias do
internato, nos fins de semana sem ele, na vida sem ele, porque nunca imaginou
quanto o amava. Sabia por uma carta oficial do colégio que do primeiro lugar que
ela sempre ocupava tinha passado ao último, e estava a ponto de ser reprovada nos
exames finais. Mas se esquivou ao dever de responsável: não informou de nada aos
pais de América Vicuña, impedido por um sentimento de culpa que procurava
escamotear, tampouco comentou com ela, devido ao bem fundado temor de que o
implicas se em seu fracasso. Por isso deixou as coisas como estavam. Sem perceber,
começava a protelar seus problemas na esperança de que a morte os resolvesse.
Não só as duas mulheres que se ocupavam dele, como o próprio Florentino
Ariza, se espantavam de ver como estava mudado. Apenas dez anos atrás tinha
atacado uma de suas criadas atrás da escada principal da casa, vestida e em pé, e em
menos tempo que um galo filipino a deixou em estado de graça. Teve que
presenteá-la com uma casa mobiliada para que ela jurasse que o autor de sua
desonra era um vago noivo dominical que sequer a havia beijado, e os pais e tios
dela, bons macheteiros de safra, obrigaram os dois a casar. Não parecia possível que
fosse o mesmo homem, aquele que manuseavam pelo direito e pelo avesso duas
mulheres que há poucos meses o faziam tremer de amor, que o ensaboavam por
cima e por baixo, secavam com toalhas de algodão egípcio e lhe davam massagens
de corpo inteiro, sem que ele soltasse um suspiro de perturbação. Cada qual tinha
uma explicação diferente para sua inapetência. Leona Cassiani achava que eram os
prelúdios da morte. América Vicuña atribuía-lhe uma origem oculta cuja trama não
conseguia desentranhar. Só ele sabia a verdade, e tinha nome próprio. De qualquer
maneira era injusto: mais padeciam elas a servi-lo do que ele sendo tão bem
servido.
Três semanas bastaram a Fermina Daza para ver a falta que lhe faziam as visitas
de Florentino Ariza. Passava muito bem seu tempo com as amigas assíduas, melhor
ainda à medida que o tempo a afastava dos costumes do marido. Lucrécia dei Real
dei Obispo tinha ido ao Panamá para examinar uma dor de ouvido que não cedia
com nada, e voltou muito aliviada depois de um mês, mas ouvindo menos que antes
com uma trombetinha que colocava na orelha. Fermina Daza era a amiga que
tolerava melhor suas confusões de perguntas e respostas, o que estimulava tanto
Lucrécia que não havia dia em que não aparecesse por ali a qualquer hora que fosse. Mas Fermina Daza não pôde preencher com nenhuma outra pessoa as tardes
calmantes de Florentino Ariza.
A memória do passado não redimia o futuro, como ele se empenhava em
acreditar. Pelo contrário: reforçava a convicção que Fermina Daza sempre tivera aquele alvoroço febril dos vinte anos e tinha sido alguma coisa muito nobre e
muito bela, mas amor, não. Apesar de sua franqueza crua não tinha intenção de
revelar isto a ele nem pelo correio nem em pessoa, nem tinha coração para lhe dizer
como soavam falsos os sentimentalismos de suas cartas para quem conhecera o
prodígio de consolação de suas meditações escritas, como o desmereciam suas
mentiras líricas e quanto sua causa era prejudicada pela insistência maníaca de
resgatar o passado. Não: nenhuma linha de suas cartas de outrora nem momento
nenhum de sua própria juventude tediosa a haviam feito sentir que sem ele as
tardes de uma terça-feira pudessem ser tão dilatadas como na realidade eram, tão
solitárias e indescritíveis sem ele.
Num de seus arrancos de simplificação, ela mandara para as cavalariças a radiola
com que o marido a presenteara num de seus aniversários, e que ambos tinham
pensado em dar ao museu por ter sido a primeira que chegou à cidade. Nas sombras
do seu luto tinha resolvido não tornar a usá-la, pois uma viúva da sua linhagem não
podia escutar música de espécie nenhuma sem ofender a memória do morto,
mesmo que apenas na intimidade. Mas depois da terceira terça de abandono
mandou-a pôr de novo na sala, não para desfrutar das canções sentimentais da
emissora de Riobamba, como antes, mas para encher suas horas mortas com as
novelas de lágrimas de Santiago de Cuba. Foi uma boa coisa, pois quando nasceu
sua filha tinha começado a perder o hábito da leitura que o marido lhe inculcara
com tanta aplicação a partir da viagem de bodas, e com o cansaço progressivo da
vista perdeu-o por completo, a ponto de passar meses sem saber onde estavam os
óculos.
Apegou-se de tal modo às novelas radiofônicas de Santiago de Cuba que esperava
com ansiedade os capítulos encadeados de todos os dias. De vez em quando ouvia as
notícias para saber o que acontecia no mundo, e nas poucas ocasiões em que ficava
só em casa escutava com o volume muito baixo, remotos e nítidos, os merengues de
São Domingos e as plenas de Porto Rico. Uma noite, numa estação desconhecida
que irrompeu de súbito com tanta força e tanta claridade como se estivesse na casa
vizinha, ouviu uma notícia pavorosa: um casal de anciãos que repetia a lua-de-mel
no mesmo lugar durante quarenta anos antes fora assassinado a golpes de remo pelo
barqueiro que os levava a passeio, para roubar o dinheiro que tinham: quatorze
dólares. Sua impressão foi ainda maior quando Lucrécia dei Real lhe contou o relato
completo publicado num jornal local. A polícia tinha descoberto que os anciãos
mortos a pauladas, ela de setenta e oito anos e ele de oitenta e quatro, eram
amantes clandestinos que passavam férias juntos havia quarenta anos, mas ambos
tinham seus respectivos lares, estáveis e felizes, e com famílias numerosas.
Fermina Daza, que nunca chorara com os novelões radiofônicos, teve que reprimir
o nó de lágrimas que ficou entalado em sua garganta. Na carta seguinte, Florentino
Ariza lhe mandou sem nenhum comentário o recorte de jornal com a notícia.
continua na página 238...
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.
"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
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