segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Os Bruzundangas - Capítulo XIII: A Sociedade

Os Bruzundangas


Lima Barreto

Hais tous maux où qu’ils soient, très doux Fils.
Joinville. São Luís.

Capítulo XIII

A Sociedade

     É DEVERAS difícil dizer qualquer cousa sobre a sociedade da Bruzundanga. É difícil porque lá não há verdadeiramente sociedade estável. Em geral, a gente da terra que forma a sociedade, só figura e aparece nos lugares do tom, durante muito pouco tempo. Os nomes mudam de trinta em trinta anos, no máximo. Não há, portanto, na sociedade do momento tradição, cultura acumulada e gosto cultivado em um ambiente propício. São todos arrivistas e viveram a melhor parte da vida tiranizados pela paixão de ganhar dinheiro, seja como for. Os melhores e os mais respeitáveis são aqueles que enriqueceram pelo comércio ou pela indústria, honestamente, se é possível admitir que se enriqueça honestamente.
     Esses, porém, fatigados, embotados, não formam bem a sociedade, embora as suas filhas e mulheres façam parte dela.
     Os que formam direitamente a grande sociedade, são os médicos ricos, os advogados afreguesados, os tabeliães, os políticos, os altos funcionários e os acumuladores de empregos públicos.
     Por mais que se esforcem, por mais que queiram, semelhantes homens, atarefados dia e noite, nos escritórios, nas repartições, nos tribunais, nos cartórios, na indústria política, não podem ter o repouso de espírito, o ócio mental necessário à contemplação desinteressada e à meditação carinhosa das altas cousas. Limitam-se a pousar sobre elas um olhar ligeiro e apressado; e a preocupação de manter os empregos e fazer render os cartórios, tirar-lhes-á o sossego de espírito para apreciar as grandes manifestações da inteligência humana e da natureza.
     Pode ser definida a feição geral da sociedade da Bruzundanga com a palavra — medíocre.
     Vem-lhe isto não de uma incapacidade nativa, mas do contínuo tormento de cavar dinheiro, por meio de empregos e favores governamentais, do sentimento de insegurança de sua própria situação.
     Em uma sala, se se ouve conversa das senhoras (digo senhoras), a preocupação não é outra senão saber se fulano será ministro, para dar tal ou qual comissão ao marido ou ao filho. Uma outra criticará tal ou qual pessoa poderosa porque não arranjou para o pai uma concessão qualquer. É assim.
     Uma tão vulgar preocupação pauta toda a vida intelectual da sociedade bruzundanguense, de modo que, nas salas, nos salões, nas festas, o tema geral dos comensais é a política; são as combinações de senatorias, de governanças, de províncias e quejandos.
     A política não é aí uma grande cogitação de guiar os nossos destinos; porém, uma vulgar especulação de cargos e propinas.
     Sendo assim, todas as manifestações de cultura dessa sociedade são inferiores. A não ser em música, isto mesmo no que toca somente a executantes, os seus produtos intelectuais são de uma pobreza lastimável.
     Há lá salões literários e artísticos, mas de nenhum deles surgiu um Montesquieu com o Espírito das Leis, como saiu do de Mme. du Deffand. As obras mais notáveis que lá têm aparecido são escritas por homens que vivem arredados da sociedade bruzundanguense.
     Em uma sala desse país, quando não se trata de intrigas políticas ou cousas frívolas de todos os dias, surge logo um tédio inconcebível. Ele sepulta o pensamento, antes de matá-lo: enterra-o vivo. Mereceria detalhes, mas só fazendo romance ou comédia.
     A gente da Bruzundanga gosta de raciocinar por aforismos. Sobre todas as cousas, eles têm etiquetadas uma coleção deles.
     Se se fala em uma sala ou em outro qualquer lugar de sociedade de cousas literárias, logo um aforista sentencia:

— A arte deve ser impessoal. Os grandes artistas, etc.

     Naturalmente, ele se lembrou de Dante, que pôs no inferno os seus inimigos e no céu os seus amigos.
     Incapaz de fazer aparecer do seu seio razoáveis manifestações intelectuais, ela é ainda mais incapaz de apoiar as que nascem fora dela.
     A pintura, que sempre foi arte dos ricos e abastados, não tem, na Bruzundanga, senão raros amadores. Os pintores vivem à míngua e, se querem ganhar algum dinheiro, têm que se rojar aos pés dos poderosos, para que estes lhes encomendem quadros, por conta do governo.
     Porque eles não os compram com o dinheiro seu, senão os de vagas celebridades estrangeiras que aportam às plagas do país com grandes carregações de telas. É outro feitio da gente imperante da Bruzundanga de só querer ser generosa com os dinheiros do Estado. Quando aquilo foi império, não era assim; mas, desde que passou a república, apesar da fortuna particular ter aumentado muito, a moda da generosidade à custa do governo se generalizou.
     Se um desses engraçados mecenas julga que deve proteger tal ou qual pessoa; que esta precisa viajar a Europa, aperfeiçoar-se, não lhe subvenciona a viagem, não tira nem um ceitil dos seus mil e mais contos. Sabem o que faz? Influi para que ele receba um pagamento indevido do Tesouro ou promove uma fantástica comissão para o indivíduo.
     É assim o mecenato da Bruzundanga. A falta de generosidade e a sua inquietude pelo dia de amanhã ferem logo a quem examina a sociedade daquele país, mesmo perfunctoriamente.
     Basta ler os testamentos dos seus ricos e compará-los com os que fazem os humildes iberos, que lá enriqueceram em misteres humildes, para sentir a inferioridade moral da sociedade da Bruzundanga.
     Nestes últimos, há mesmo um grande pensamento da hora da morte, quando fazem legados a amigos, a parentes afastados, a criados, a instituições de caridade; mas, nos daqueles, só se topa com o mais atroz egoísmo. Lembro-me de um ricaço de lá que, ao morrer, fez avultados legados aos netos, filhos de sua filha, com a condição de que deviam usar o nome dele — cousa que, como se sabe, se não é contrária às leis, ofende os costumes. O sobrenome tira-se do do pai, lá como aqui.
     Por falar em cousas de morte, convém recordar que os cemitérios dessa gente, ou por outra, os túmulos das pessoas da alta roda da Bruzundanga são outra manifestação da sua pobreza mental.
     São caros jazigos ou carneiros de mármore de Carrara, mas os ornatos, as estátuas, toda a concepção deles, enfim, é de uma grande indigência artística. Raros são aqueles que pedem a escultores que os façam. Todos os encomendam a simples marmoristas, que os recebem, aos montes, da Itália.
     As suas casas são desoladoras arquitetonicamente. Há modas para elas. Houve tempo em que era a de compoteiras na cimalha; houve tempo das cúpulas bizantinas; ultimamente era de mansardas falsas. Carneiros de Panúrgio...
     A sua capital, que é um dos lugares mais pitorescos do mundo, não tem nos arredores casas de campo, risonhas e plácidas, como se veem em outras terras.
     Tudo lá é conforme a moda. Um antigo arrabalde da capital que, há quantos anos era lugar de chácaras e casas roceiras, passou a ser bairro aristocrático; e logo os panurgianos ricos, os que se fazem ricos ou fingem sê-lo, banalizaram o subúrbio, que ainda assim é lindo.
     Um dos toques da mediocridade da sociedade da Bruzundanga é a sua incapacidade para manter um teatro nacional.
     O teatro é por excelência uma arte de sociedade, de gente rica. Ele exige vestuários caros, joias, carros — tudo isso que só se pode obter com a riqueza. Pois os ricos da Bruzundanga não animam as tentativas que se têm feito para fazer surgir um teatro indígena, e todas têm fracassado.
     Ela se contenta com a ópera italiana ou com as representações de celebridades estrangeiras.
     Poderia ainda falar nas suas festas íntimas, nos seus casamentos, nos seus batizados, nas suas datas familiares; mas, por hoje, basta o que vai dito, e é o bastante para mostrar de que maneira a aristocracia da Bruzundanga é incapaz de representar o papel normal das aristocracias: criar o gosto, afinar a civilização, suscitar e amparar grandes obras.
     Se falei aqui em aristocracia, foi abusando da retórica. O meu intento é designar com tão altissonante palavra, não uma classe estável que detenha o domínio da sociedade da Bruzundanga, e a represente constantemente; mas os efêmeros que, por instantes, representam esse papel naquele interessante país.
     Explicado este ponto, posso ir adiante nas minhas breves “notas” sobre o país da Bruzundanga.

Os Bruzundangas - Capítulo XIII: A Sociedade
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   Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Um homem negro que trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…
   Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
   O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
   Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
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MINISTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional 
Departamento Nacional do Livro

* Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord foi um político e diplomata francês. Ele ocupou em quatro ocasiões diferentes o cargo de Ministro dos Negócios Estrangeiros e também foi o primeiro Primeiro-Ministro da França entre julho e setembro de 1815 sob Luís XVIII depois da restauração francesa.

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