segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Gabriel G Márquez - O Amor nos Tempos de Cólera: Não eram as últimas lágrimas

O Amor nos Tempos de Cólera


Gabriel García Márquez
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continuando...

      Não eram as últimas lágrimas que Fermina Daza ia reprimir. Florentino Ariza ainda não cumprira seus sessenta dias de reclusão, quando A Justiça revelou, em toda a extensão da primeira página e com fotos dos protagonistas, os supostos amores ocultos do doutor Juvenal Urbino e Lucrécia dei Real dei Obispo. Especulava-se sobre os pormenores da relação, sua frequência e seu modo, e sobre a complacência do marido, entregue a descalabros de sodomia com os pretos do seu engenho de açúcar. O relato publicado com enormes tipos de madeira em tinta de sangue retumbou como o trovão de um cataclismo na desconjuntada aristocracia local. No entanto, não havia uma só linha verdadeira: Juvenal Urbino e Lucrécia dei Real eram amigos íntimos desde seus anos de solteiros e amigos continuaram depois de casados, mas nunca foram amantes. Em todo caso, não parecia que a publicação se destinasse a enodoar o nome do doutor Juvenal Urbino, cuja memória gozava do respeito unânime, e sim a prejudicar o marido de Lucrécia dei Real, eleito presidente do Clube Social a semana anterior. O escândalo foi sufocado em poucas horas. Mas Lucrécia dei Real não tornou a visitar Fermina Daza, o que esta interpretou como um reconhecimento da culpa.
     Muito em breve ficou claro, no entanto, que tampouco Fermina Daza estava a salvo dos riscos de sua classe. A Justiça se encarniçou contra ela pelo seu único flanco débil: os negócios do pai. Quando este teve que se desterrar à força, ela ficou a par de um só episódio de seus comércios turvos, tal como lhe contou Gala Placídia. Mais tarde, quando o doutor Urbino o confirmou depois da entrevista com o governador, ficou convencida de que o pai tinha sido vítima de uma infâmia. O fato é que dois agentes do governo se haviam apresentado com uma ordem de busca na casa da praça dos Evangelhos, revistaram-na de cima a baixo sem achar o que procuravam, e por fim mandaram abrir o guarda-roupa com portas de espelho da antiga alcova de Fermina Daza. Gala Placídia, sozinha na casa e sem meios de prevenir ninguém, negou-se a abri-lo, com a desculpa de que não tinha as chaves. Foi quando um dos agentes quebrou o espelho das portas com a coronha do revólver, e descobriu que entre o cristal e a madeira havia um espaço atulhado de notas falsas de cem dólares. Esta foi a culminação de uma cadeia de pistas que conduziam a Lorenzo Daza como último elo de uma vasta operação internacional. Era uma fraude de mestre pois as notas ostentavam as marcas d'água do papel original: tinham apagado notas de um dólar mediante um procedimento químico que parecia coisa de magia, e tinham impresso em seu lugar notas de cem. Lorenzo Daza alegou que o guarda-roupa fora comprado muito depois do casamento da filha, e devia ter chegado a casa com as notas escondidas, mas a polícia comprovou que estava ali desde que Fermina Daza ia ao colégio. Ninguém senão ele teria podido esconder a falsa fortuna atrás dos espelhos. Foi só isso que o doutor Urbino contou à esposa quando se comprometeu com o governador a mandar o sogro de regresso à sua terra para abafar o escândalo. Mas o jornal contava muito mais.
     Contava que durante uma das tantas guerras civis do século anterior, Lorenzo Daza tinha sido intermediário entre o governo do presidente liberal Aquileo Parra e um tal Joseph K. Korzeniowski, polonês de origem, que fizera estada de vários meses aqui na tripulação do navio mercante Saint Antoine, de bandeira francesa, procurando definir um confuso negócio de armas. Korzeniowski, que mais tarde ficaria célebre no mundo com o nome de Joseph Conrad, fez contato não se sabia como com Lorenzo Daza, que lhe comprou o carregamento de armas por conta do governo, com suas credenciais e seus recibos em regra, e pago com ouro de lei. Segundo a versão do jornal, Lorenzo Daza deu como desaparecidas as armas num assalto improvável, e tornou a vendê-las pelo dobro do preço real aos conservadores em guerra contra o governo.
     Também contava A Justiça que Lorenzo Daza comprou a preço muito baixo um carregamento de botas que eram sobras do exército inglês, nos tempos em que o general Rafael Reyes fundou a Marinha de Guerra, e nessa única operação duplicou sua fortuna em seis meses. Segundo o jornal, quando o carregamento chegou a este porto, Lorenzo Daza negou-se a recebê-lo porque só vinham as botas do pé direito, mas foi o único concorrente quando a alfândega o leiloou de acordo com as leis vigentes, e o comprou pela quantia simbólica de cem pesos. Naqueles mesmos dias, um cúmplice seu comprou em iguais condições o carregamento de botas esquerdas, que chegara pela alfândega de Riohacha. Uma vez emparelhadas, Lorenzo Daza se valeu de seu parentesco político com os Urbino de La Calle, vendendo as botas à nova Marinha de Guerra com um lucro de dois mil por cento.
     A informação de A Justiça terminava dizendo que Lorenzo Daza não abandonara São João da Ciénaga em fins do século anterior em busca de melhores ares para o futuro da filha, como gostava de dizer, e sim por ter sido pilhado na próspera indústria de misturar tabaco importado com papel picado, e de uma forma tão hábil que nem os fumadores refinados notavam o engano. Também se revelavam seus vínculos com uma empresa clandestina internacional, cuja atividade mais fecunda em fins do século anterior tinha sido a introdução-ilegal de chineses a partir do Panamá. Em compensação, o suspeito negócio de mulas, que tanto havia prejudicado sua reputação, parecia ser o único honesto que jamais tivera.
     Quando Florentino Ariza abandonou a cama, com as costas em áscuas e pela primeira vez com uma sólida bengala em lugar do guarda-chuva, foi à casa de Fermina Daza. Encontrou-a desconhecida, com os estragos da idade à flor da pele, e com um ressentimento que lhe havia tirado os desejos de viver. O doutor Urbino Daza, em duas visitas que fez a Florentino Ariza durante seu exílio, lhe havia falado na consternação em que mergulhara a mãe com as duas publicações de A Justiça. A primeira lhe provocou uma raiva tão insensata devido à infidelidade do marido e à traição da amiga que renunciou ao costume de visitar o mausoléu familiar um domingo de cada mês, porque ficava fora de si com o fato dele não poder ouvir dentro do caixão os impropérios que ela queria gritar: brigou com o morto. A Lucrécia dei Real mandou dizer, por quem quisesse dizê-lo, que se contentasse com o consolo de ter tido pelo menos um homem no meio de tanta gente que passara por sua cama. Da publicação sobre Lorenzo Daza era impossível saber o que é que a afetava mais, se a publicação ela própria, ou o tardio descobrimento da verdadeira identidade do pai. Mas uma das duas, ou ambas, a haviam aniquilado. O cabelo cor de aço limpo, que tanto enobrecia seu rosto, parecia agora de fiapos amarelos de milho, e os formosos olhos de pantera não recobravam o brilho de outrora nem com o esplendor da raiva. Notava-se em cada gesto seu a decisão de não continuar vivendo. Há muito tempo tinha renunciado ao hábito de fumar, trancada no banheiro ou de qualquer outra forma, mas reincidiu pela primeira vez em público e com uma voracidade desenfreada, a princípio com cigarros que ela própria preparava, como sempre gostara de fazer, e depois com os mais ordinários dos encontrados no comércio, porque já não tinha tempo nem paciência para enrolá-los. Um homem que não fosse Florentino Ariza teria perguntado a si mesmo que podia prometer o futuro a um ancião como ele, coxo e com as costas esbraseadas de esfoladuras de burro, e a uma mulher que já não ansiava por nenhuma felicidade além da morte. Mas ele não. Ele resgatou uma luzinha de esperança entre os escombros do desastre, pois achou que a desgraça de Fermina Daza a engrandecia, a raiva a embelezava, o rancor contra o mundo lhe devolvera o caráter agreste dos vinte anos.
     Tinha um novo motivo para ser grata a Florentino Ariza, porque com base nas publicações infames ele havia mandado a A Justiça uma carta exemplar sobre a responsabilidade ética da imprensa e o respeito pela honra alheia. Não foi publicada, mas o autor mandou uma cópia ao Diário do Comércio, o mais antigo e sério do litoral caribe, e este a destacou na primeira página. Estava assinada com o pseudônimo de Júpiter, e era tão argumentada, incisiva e bem escrita que foi atribuída a alguns dos escritores mais notáveis da província. Foi uma voz solitária no meio do oceano, mas que se ouviu muito fundo e muito longe. Fermina Daza soube quem era o autor sem que ninguém lhe dissesse nada, pois reconheceu algumas ideias e até uma frase literal das reflexões morais de Florentino Ariza. De maneira que o recebeu com um afeto reverdecido na desordem do seu abandono. Foi por essa época que América Vicuña se viu só uma tarde de sábado no quarto de dormir da Rua das Janelas, e sem que as procurasse, por puro acaso, descobriu dentro de um armário sem chave as cópias datilográficas das meditações de Florentino Ariza, e as cartas manuscritas de Fermina Daza.
     O doutor Urbino Daza se alegrou com o reatamento das visitas que tanto animavam sua mãe. Ao contrário de Ofélia, a irmã, que voltou de Nova Orleans no primeiro navio de transporte de frutas logo que soube que Fermina Daza mantinha uma amizade estranha com um homem cuja qualificação moral não era das melhores. Seu alarma gerou crises desde a primeira semana, quando verificou o grau de familiaridade e domínio com que Florentino Ariza entrava na casa, e dos cochichos e fugazes arrufos de noivos com que transcorriam as visitas até bem entrada a noite. O que para o doutor Urbino Daza era uma saudável afinidade de dois anciãos solitários, para ela era uma forma viciosa de concubinato secreto. Assim foi sempre Ofélia Urbino, mais parecida com dona Blanca, sua avó paterna, do que se tivesse sido sua filha. Era distinta como a avó, altaneira como a avó, e vivia como a avó à mercê dos preconceitos. Não era capaz de conceber a inocência de uma amizade entre um homem e uma mulher nem aos cinco anos de idade, e muito menos aos oitenta. Numa disputa aguerrida que teve com o irmão, disse que a única coisa que faltava para que Florentino Ariza acabasse de consolar sua mãe era que se metesse com ela em sua cama de viúva. O doutor Urbino Daza não tinha coragem para enfrentá-la, nunca tinha tido, mas sua mulher intercedeu com uma justificação serena do amor a qualquer idade. Ofélia perdeu as estribeiras.

— O amor é ridículo na nossa idade — gritou — mas na idade deles é uma porcaria.

     Empenhou-se com tal ímpeto na determinação de afugentar Florentino Ariza da casa que chegou aos ouvidos de Fermina Daza. Ela a chamou ao quarto, como sempre que queria falar sem ser ouvida pelas criadas, lhe pediu que repetisse as recriminações. Ofélia não suavizou nada: estava certa de que Florentino Ariza, cuja fama de pervertido ninguém ignorava, mantinha uma relação equívoca, mais prejudicial ao bom nome da família que as tratantadas de Lorenzo Daza e as aventuras ingênuas de Juvenal Urbino. Fermina Daza a escutou sem dizer palavra, sem mesmo pestanejar, mas quando acabou de escutar era outra: tinha voltado à vida. 

— Só tenho pena é de não ter forças para dar em você a surra de couro que você merece, por atrevida e cheia de malícia — disse. —- Mas agora mesmo você vai embora desta casa, e juro pelos restos de minha mãe que não pisa mais nela enquanto eu estiver viva. 

     Não houve poder capaz de dissuadi-la. Enquanto isso, Ofélia foi morar na casa do irmão, e de lá mandou toda espécie de súplicas por emissários de monta. Mas foi inútil. Nem a mediação do filho nem a intervenção das amigas conseguiram demovê-la. À nora, com quem manteve sempre uma certa cumplicidade plebeia, soltou por fim uma confidencia com a fala florida de seus melhores anos: "Faz um século me cagaram a vida com esse pobre homem porque éramos demasiado jovens, e agora querem repetir a dose porque somos demasiado velhos." Acendeu um cigarro na guimba de outro, e acabou de se livrar do veneno que lhe roía as entranhas.  

— Que vão à merda — disse. — Se nós viúvas temos alguma vantagem, é que já não resta ninguém que nos dê ordens.

continua na página 242...
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O Amor nos Tempos de Cólera: Não eram as últimas lágrimas
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

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