sexta-feira, 2 de maio de 2025

Memórias do Cárcere - Viagens 21

Memórias do Cárcere

Graciliano Ramos


Volume I 
 Editora Record 
PRIMEIRA PARTE 

VIAGENS 

21

     ARRIADO numa costela do cavername, o rosto colado à vigia, ausentava-me do porão olhando o mar. Algumas pessoas, ali perto, conversavam comigo, arejavam-se um pouco, fugindo ao calor da fornalha, mas não me apercebia direito da conversa. As palavras me chegavam quase destituídas de significação, às vezes me surpreendia lançando respostas a perguntas indefinidas. Sem querer, me insinuava aos poucos no ambiente novo, na sociedade esquisita. Fumava sem descontinuar. Ainda possuía cigarros; os fósforos tinham-se esgotado à noite, e não sei como pude obter uma caixa. Perceber-me-iam em redor a desatenção? Talvez não me achasse desatento: ocupava-me de muitas coisas, misturava-as, confundia-as, desorientava-me em avanços e recuos no tempo e não me era possível fixar nada no espírito. 
     Dava mostra de examinar a água escura, as algas, filamentos estranhos; alongando a vista, percebia uma praia distante, verde e branca, povoada de coqueiros. Para distinguir essa faixa de terra, precisava curvar-me, esperar que o navio se inclinasse para o outro lado. Fatigava me da posição forçada, voltava a recostar-me – e o horizonte se reduzia, alguns metros mais largo ou mais estreito, conforme as oscilações do calhambeque. Nenhum objeto, asa ou vela, perturbava a monotonia. Filandras, apenas, a confusão das tripas vivas, fosforescências pálidas, revérberos do sol no marulho, uma tira de espuma rente ao costado. Brisas ásperas batiam-me na cara, ali a temperatura baixava, era suportável. O pesadelo noturno se distanciava, parecia-me acontecimento velho; o braço peludo e a visão obscena esmoreciam-me no espírito. A língua Já não estava seca; os beiços rachados ardiam, era-me preciso umedecê-los a cada instante, livrá-los de películas incômodas. Salgados, a ponta do cigarro também tinha sal, os dedos, presos à borda da abertura, cobriam-se de suor pegajoso.  
     Cansava-me, aborrecia-me dos filamentos invariáveis, dos reflexos na onda, tirava-me dali, passeava aos tombos, as pernas entorpecidas, reacostumando os olhos piscos a magotes agachados na sombra. Voltava o calor medonho. Não era, com precisão, calor: era abafamento. Insuficiência de ar para tantos pulmões. Os grupos arquejavam, tossiam, engrossavam debaixo da escotilha. Metido na roupa leve, mexia-se devagar, cautelosamente. Não me arriscaria a calçar chinelos: conservava os sapatos, e, embora tivesse os pés resguardados, repugnava-me em certos pontos encostar as solas na tábua: andava sobre os calcanhares, banzeiro como um papagaio, receoso de pisar nas imundícies, cada vez mais abundantes. As cascas de frutas, restos de comida, detritos de toda espécie, aumentavam. Aquela gente escarrava no chão, vomitava no chão; a um canto, perto da escada, havia sempre alguns indivíduos de costas, molhando a parede; corria desse mictório improvisado um filete que desaguava no charco movediço. A vaga se avolumava, prometia varrer o soalho inteiro, a evaporação nos afligia com o horrível fartum, sem descontinuar Nenhum escoadouro.
     Movendo-me a custo, examinando, ouvindo, perguntando, consegui diferençar e nomear várias peças da carga viva, contrabando humano. Com Sebastião Hora, vizinho ao porta ló, estabelecera-se o preto encaroçado, semelhante a um pé de jabuticaba. Fora contínuo da Aliança Nacional em Alagoas e davam-lhe a alcunha de Doutor. Em atitude canina, mastigando qualquer coisa, parecia continuar no exercício do seu cargo, esperando ordens do Presidente, que discutia com José Macedo e Lauro Lago, todos eles muito consideráveis. Havia mais, além do capitão Mata e de Manuel Leal, três figuras alagoanas: Vicente Ribeiro, rapaz franzino, cabo do 20.° Batalhão de Caçadores; Benon, negro esgalgado, risonho, de voz estridente; Ezequiel Fonseca, louro, míope, de óculos. Parece que este último tivera a ideia infeliz de se meter numa cooperativa – e isto o marcara aos agentes da ordem como elemento pernicioso. Também conheci diversos rio-grandenses. O estivador João Francisco Gregório, robusto em demasia, construção de torre, deslocava-se devagar; pachorra imensa na voz, nos gestos, longa desconfiança nos olhos astutos. Concordava facilmente com as coisas mais absurdas: –“Ah! Bem!” Na cidade o julgariam tolo. Quem tivesse observado as manhas dos mestiços nordestinos logo lhe perceberia a dissimulação. Paulo Pinto, ex-cabo de polícia, cafuzo sifilítico, era especialista em sambas. Epifânio Guilhermino, terrivelmente sério, falava baixo e rápido, sublinhando com movimentos de cabeça afirmações categóricas, sem pestanejar. Ferido em combate, ficara meses entre a vida e a morte; uma bala o atravessara, deixando-lhe duas cicatrizes medonhas, uma na barriga, outra nas costas. Livrara-se por isso do espancamento. E restabelecido, até gordo, ali se achava, em companhia da mulher, apanhada a mexer num fuzil-metralhadora. Havia um cabra de Lampião entre nós. Chamava-se Euclides e não tinha nada de cabra: um sertanejo vivo, alourado, notável desempeno em todo o corpo, olho de gavião. Depois do beato José Inácio, apareceu-me um espírita, Sebastião Félix, pessoa incolor. Guardo a vaga lembrança de que era baixo, moreno e usava óculos escuros, mas não estou bem certo disso: sei apenas que se exercitava nas preces e na invocação das almas do outro mundo. Nem ali, no infecto desvão, essas criaturas de sonho o abandonavam. A queimadura de Gastão, horrível, destruíra a peie numa parte do rosto e no pescoço, talvez houvesse lesado músculos. Por isso a boca se repuxava num riso constante e inexpressivo. Havia um estudantezinho de preparatórios, João Rocha, mulato, franzino, inconsequente, falador; um chauffeur doente, Domício Fernandes, que não aguentaria aquela vida; um pequeno dentista, Guerra, petulante, de bigodinho. Ramiro Magalhães era uma criança estouvada e ruidosa, a quem tinham conferido insensatamente o cargo de prefeito de Natal. Esse disparate indicava bem que a sedição não representava de fato nenhum perigo. Vencida a força pública facilmente, conquistado o poder precário, os rebeldes se haviam julgado seguros: divertiam-se fazendo a tiros desenhos nas fachadas, queriam voar em aeroplanos, entregavam negócios públicos a meninos. Ao primeiro ataque rijo – fuga precipitada, rendição. E o prefeito de Natal se embrulhara também. Com desembaraço de colegial afoito, não se inteirava da situação, presumo, via nela uma espécie de brincadeira. Chamou-me a atenção um sujeito silencioso, Carlindo Revoredo, que tinha aparência de estátua. Alto, robusto, mexia-se devagar, os traços fisionômicos inalteráveis. Naquele desarranjo, tudo se acavalando e agitando, não lhe percebi os movimentos: dava-me impressão de imobilidade perfeita. E não me lembro de o ter ouvido falar. Os cabelos de Mário Paiva começavam a escassear, o rosto cansado alegrava-se num sorriso amável, permanente. Dizia-se ator, mas nunca vi pessoa tão sem jeito para representações. Engajara-se talvez nessas companhias vagabundas que circulam raro pelas cidadezinhas do interior, a exibir dramalhões ingênuos quase suprimidos pelo cinema. Passava meia hora a chatear nos:
     
Lobato tinha uma flauta. A flauta era de Lobato. Minha avó sempre dizia: – Toca flauta, seu...
Lobato tinha uma flauta. A flauta era de Lobato.

     Uma lengalenga infindável. Nunca nos revelou outra habilidade, e suponho que o talento cômico de Mário Paiva não ia além disso. O indivíduo que mais me impressionou ali foi Carlos Van der Linden, não porque manifestasse qualquer particularidade vultosa, mas por me haver começado a expor uma das coisas mais dolorosas engendradas pela cadeia. Era um rapaz magro, de rosto fino e pálido, a exprimir resignação, a irradiar simpatia. Uma dor profunda e serena. Estou a vê-lo sentado na bagagem, os braços cruzados, os lábios entreabertos, a arfar. Cobria-lhe o peito débil uma blusa fina, azul-marinho, de mangas curtas, à altura dos cotovelos. Chegaram-me, em pedaços de conversa, em frases incompletas, insinuações malignas a respeito dessa personagem. Não inspirava confiança. Porquê? Afirmaram-me vagamente que Van der Linden de certo modo se ligava à polícia, pelo menos se ligara. Acusação de tal monta, lançada sem prova, alarmou-me. Considerei que eu próprio ainda na véspera fora tomado como espião. E agora me faziam confidência de tanta gravidade. Qual o motivo da reviravolta? Despropósito na suspeita e na segurança com que me falavam, especialmente na segunda. Afinal os receios se justificavam, defesa natural. A mudança repentina me sobressaltou: nenhuma razão para me virem contar segredos. Busquei evitá-los, contrafeito. Como as informações se multiplicassem, tentei saber em que se baseavam. Nada de concreto: sugestões malévolas apenas. Indícios confusos encorpavam ali dentro, ganhavam relevo, mudavam-se em provas. Fora do mundo, aqueles espíritos caíam em forte impressionabilidade, gastavam as horas longas criando fantasmas ou admitindo, ingênuos, inventos alheios, as informações mais disparatadas. Só mais tarde percebi como embustes grosseiros nos enleiam no cárcere e esforcei-me com desespero por vencer o rebaixamento mental, a credulidade estúpida.
     Ouvindo pela primeira vez semelhantes acusações, procurei reagir, mas talvez já houvesse em mim um esboço de alma selvagem. Escorregava pouco a pouco, involuntariamente dava crédito aos boatos. Seria injustiça? Faltavam-me elementos para julgar; no meio novo, a repetição da crueldade verrumava-me na cabeça. Talvez houvesse alguma verdade nos rumores. Enfim que me importava que houvesse ou não? Era ali um estranho, e buscava refugiar-me nos meus pensamentos, olhar pela vigia o litoral branco, as pequenas ondas luminosas; os pensamentos embrulhavam-se, partiam-se, voltavam às murmurações insidiosas, levianas, e a vista se desviava da paisagem uniforme, ia fixar se na criatura serena, melancólica, de braços cruzados, a um canto, respirando mal. Preocupava-me notar o isolamento de uma pessoa na multidão. De fato não era bem isso. Dirigiam-se a Van der Linden, aparentemente ele não se distinguia dos outros; mas observavam-no, alguns remoques deviam chegar-lhe aos ouvidos. Se se inteirava da vigilância e das picuinhas, o nosso inferno era insignificante comparado ao dele. É uma desgraça necessitarmos esses pontos de referência para aguentarmos uma situação difícil: vemos que alguém sofre mais que nós e deixamos de julgar-nos muito infelizes. E quem sabe se torturamos os outros simplesmente com o fim de experimentar-lhes a resistência? Em última análise estamos experimentando a nossa. Ainda não suportamos aquilo, mas vemos que é suportável.
     Bem: não chegamos a posição desesperadora. Ideias assim, fragmentos de ideias embrulhadas, machucadas, cortadas ferviam-me no interior. E vinha-me também a recordação de Horácio Valadares a despedir-se fúnebre, agoureiro:

– Se não nos tornarmos a ver, ficam vocês sabendo o lugar da minha morte.
 
continua página 93....
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Graciliano Ramos de Oliveira (Quebrangulo, 27 de outubro de 1892 – Rio de Janeiro, 20 de março de 1953) foi um romancista, cronista, contista, jornalista, político e memorialista brasileiro do século XX, mais conhecido por sua obra Vidas Secas (1938).
Em setembro de 1915, motivado pela morte dos irmãos Otacília, Leonor e Clodoaldo e do sobrinho Heleno, vitimados pela epidemia de peste bubônica, volta para o Nordeste, fixando-se junto ao pai, que era comerciante em Palmeira dos Índios, Alagoas. Neste mesmo ano casou-se com Maria Augusta de Barros, que morreu em 1920, deixando-lhe quatro filhos.
Foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios em 1927, tomando posse no ano seguinte. Apoiado pelo governador do estado e impulsionado por ser um nome de fora da política, foi eleito em um pleito de uma candidatura só. Ficou no cargo por dois anos, renunciando a 10 de abril de 1930. Segundo uma das autodescrições, "Quando prefeito de uma cidade do interior, soltava os presos para construírem estradas." Os relatórios da prefeitura que escreveu nesse período chamaram a atenção de Augusto Frederico Schmidt, editor carioca que o animou a publicar Caetés (1933).
Entre 1930 e 1936. viveu em Maceió, trabalhando como diretor da Imprensa Oficial, professor e diretor da Instrução Pública do estado. Em 1934, havia publicado São Bernardo, e quando se preparava para publicar o próximo livro, foi preso após a Intentona Comunista de 1935. Foi levado para o Rio de Janeiro e ficou preso por onze meses, sendo liberado sem ter sido acusado de nada ou julgado. Em Memórias do Cárcere recorda a prisão que sofrera seis anos antes.

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