Graciliano Ramos
Volume I
Editora Record
PRIMEIRA PARTE
VIAGENS
21
ARRIADO numa costela do cavername, o rosto colado à vigia, ausentava-me do porão olhando o mar. Algumas pessoas, ali perto, conversavam comigo, arejavam-se um pouco, fugindo ao calor da fornalha, mas não me apercebia direito da conversa. As palavras me chegavam quase destituídas de significação, às vezes me surpreendia lançando respostas a perguntas indefinidas. Sem querer, me insinuava aos poucos no ambiente novo, na sociedade esquisita. Fumava sem descontinuar. Ainda possuía cigarros; os fósforos tinham-se esgotado à noite, e não sei como pude obter uma caixa. Perceber-me-iam em redor a desatenção? Talvez não me achasse desatento: ocupava-me de muitas coisas, misturava-as, confundia-as, desorientava-me em avanços e recuos no tempo e não me era possível fixar nada no espírito.
Dava mostra de examinar a água escura, as algas, filamentos
estranhos; alongando a vista, percebia uma praia distante, verde e branca,
povoada de coqueiros. Para distinguir essa faixa de terra, precisava
curvar-me, esperar que o navio se inclinasse para o outro lado. Fatigava
me da posição forçada, voltava a recostar-me – e o horizonte se reduzia,
alguns metros mais largo ou mais estreito, conforme as oscilações do
calhambeque. Nenhum objeto, asa ou vela, perturbava a monotonia.
Filandras, apenas, a confusão das tripas vivas, fosforescências pálidas,
revérberos do sol no marulho, uma tira de espuma rente ao costado.
Brisas ásperas batiam-me na cara, ali a temperatura baixava, era
suportável. O pesadelo noturno se distanciava, parecia-me acontecimento
velho; o braço peludo e a visão obscena esmoreciam-me no espírito. A
língua Já não estava seca; os beiços rachados ardiam, era-me preciso
umedecê-los a cada instante, livrá-los de películas incômodas. Salgados,
a ponta do cigarro também tinha sal, os dedos, presos à borda da
abertura, cobriam-se de suor pegajoso.
Cansava-me, aborrecia-me dos filamentos invariáveis, dos reflexos
na onda, tirava-me dali, passeava aos tombos, as pernas entorpecidas,
reacostumando os olhos piscos a magotes agachados na sombra. Voltava
o calor medonho. Não era, com precisão, calor: era abafamento. Insuficiência de ar para
tantos pulmões. Os grupos arquejavam, tossiam, engrossavam debaixo da
escotilha. Metido na roupa leve, mexia-se devagar, cautelosamente. Não
me arriscaria a calçar chinelos: conservava os sapatos, e, embora tivesse
os pés resguardados, repugnava-me em certos pontos encostar as solas na
tábua: andava sobre os calcanhares, banzeiro como um papagaio, receoso
de pisar nas imundícies, cada vez mais abundantes. As cascas de frutas,
restos de comida, detritos de toda espécie, aumentavam. Aquela gente
escarrava no chão, vomitava no chão; a um canto, perto da escada, havia
sempre alguns indivíduos de costas, molhando a parede; corria desse
mictório improvisado um filete que desaguava no charco movediço. A
vaga se avolumava, prometia varrer o soalho inteiro, a evaporação nos
afligia com o horrível fartum, sem descontinuar Nenhum escoadouro.
Movendo-me a custo, examinando, ouvindo, perguntando,
consegui diferençar e nomear várias peças da carga viva, contrabando
humano. Com Sebastião Hora, vizinho ao porta ló, estabelecera-se o
preto encaroçado, semelhante a um pé de jabuticaba. Fora contínuo da Aliança Nacional em Alagoas e davam-lhe
a alcunha de Doutor. Em atitude canina, mastigando qualquer coisa,
parecia continuar no exercício do seu cargo, esperando ordens do
Presidente, que discutia com José Macedo e Lauro Lago, todos eles
muito consideráveis. Havia mais, além do capitão Mata e de Manuel
Leal, três figuras alagoanas: Vicente Ribeiro, rapaz franzino, cabo do
20.° Batalhão de Caçadores; Benon, negro esgalgado, risonho, de voz
estridente; Ezequiel Fonseca, louro, míope, de óculos. Parece que este
último tivera a ideia infeliz de se meter numa cooperativa – e isto o
marcara aos agentes da ordem como elemento pernicioso. Também
conheci diversos rio-grandenses. O estivador João Francisco Gregório,
robusto em demasia, construção de torre, deslocava-se devagar; pachorra
imensa na voz, nos gestos, longa desconfiança nos olhos astutos.
Concordava facilmente com as coisas mais absurdas: –“Ah! Bem!” Na
cidade o julgariam tolo. Quem tivesse observado as manhas dos mestiços
nordestinos logo lhe perceberia a dissimulação. Paulo Pinto, ex-cabo de
polícia, cafuzo sifilítico, era especialista em sambas. Epifânio
Guilhermino, terrivelmente sério, falava baixo e rápido, sublinhando com movimentos
de cabeça afirmações categóricas, sem pestanejar. Ferido em combate,
ficara meses entre a vida e a morte; uma bala o atravessara, deixando-lhe
duas cicatrizes medonhas, uma na barriga, outra nas costas. Livrara-se
por isso do espancamento. E restabelecido, até gordo, ali se achava, em
companhia da mulher, apanhada a mexer num fuzil-metralhadora. Havia
um cabra de Lampião entre nós. Chamava-se Euclides e não tinha nada
de cabra: um sertanejo vivo, alourado, notável desempeno em todo o
corpo, olho de gavião. Depois do beato José Inácio, apareceu-me um
espírita, Sebastião Félix, pessoa incolor. Guardo a vaga lembrança de
que era baixo, moreno e usava óculos escuros, mas não estou bem certo
disso: sei apenas que se exercitava nas preces e na invocação das almas
do outro mundo. Nem ali, no infecto desvão, essas criaturas de sonho o
abandonavam. A queimadura de Gastão, horrível, destruíra a peie numa
parte do rosto e no pescoço, talvez houvesse lesado músculos. Por isso a
boca se repuxava num riso constante e inexpressivo. Havia um
estudantezinho de preparatórios, João Rocha, mulato, franzino, inconsequente, falador; um chauffeur doente,
Domício Fernandes, que não aguentaria aquela vida; um pequeno
dentista, Guerra, petulante, de bigodinho. Ramiro Magalhães era uma
criança estouvada e ruidosa, a quem tinham conferido insensatamente o
cargo de prefeito de Natal. Esse disparate indicava bem que a sedição
não representava de fato nenhum perigo. Vencida a força pública
facilmente, conquistado o poder precário, os rebeldes se haviam julgado
seguros: divertiam-se fazendo a tiros desenhos nas fachadas, queriam
voar em aeroplanos, entregavam negócios públicos a meninos. Ao
primeiro ataque rijo – fuga precipitada, rendição. E o prefeito de Natal se
embrulhara também. Com desembaraço de colegial afoito, não se
inteirava da situação, presumo, via nela uma espécie de brincadeira.
Chamou-me a atenção um sujeito silencioso, Carlindo Revoredo, que
tinha aparência de estátua. Alto, robusto, mexia-se devagar, os traços
fisionômicos inalteráveis. Naquele desarranjo, tudo se acavalando e
agitando, não lhe percebi os movimentos: dava-me impressão de
imobilidade perfeita. E não me lembro de o ter ouvido falar. Os cabelos
de Mário Paiva começavam a escassear, o rosto cansado alegrava-se num sorriso amável,
permanente. Dizia-se ator, mas nunca vi pessoa tão sem jeito para
representações. Engajara-se talvez nessas companhias vagabundas que
circulam raro pelas cidadezinhas do interior, a exibir dramalhões
ingênuos quase suprimidos pelo cinema. Passava meia hora a chatear
nos:
Lobato tinha uma flauta. A flauta era de Lobato. Minha avó sempre
dizia: – Toca flauta, seu...
Lobato tinha uma flauta. A flauta era de Lobato.
Uma lengalenga infindável. Nunca nos revelou outra habilidade, e
suponho que o talento cômico de Mário Paiva não ia além disso. O
indivíduo que mais me impressionou ali foi Carlos Van der Linden, não
porque manifestasse qualquer particularidade vultosa, mas por me haver
começado a expor uma das coisas mais dolorosas engendradas pela
cadeia. Era um rapaz magro, de rosto fino e pálido, a exprimir
resignação, a irradiar simpatia. Uma dor profunda e serena. Estou a vê-lo
sentado na bagagem, os braços cruzados, os lábios entreabertos, a arfar. Cobria-lhe o peito débil uma
blusa fina, azul-marinho, de mangas curtas, à altura dos cotovelos.
Chegaram-me, em pedaços de conversa, em frases incompletas,
insinuações malignas a respeito dessa personagem. Não inspirava
confiança. Porquê? Afirmaram-me vagamente que Van der Linden de
certo modo se ligava à polícia, pelo menos se ligara. Acusação de tal
monta, lançada sem prova, alarmou-me. Considerei que eu próprio ainda
na véspera fora tomado como espião. E agora me faziam confidência de
tanta gravidade. Qual o motivo da reviravolta? Despropósito na suspeita
e na segurança com que me falavam, especialmente na segunda. Afinal
os receios se justificavam, defesa natural. A mudança repentina me
sobressaltou: nenhuma razão para me virem contar segredos. Busquei
evitá-los, contrafeito. Como as informações se multiplicassem, tentei
saber em que se baseavam. Nada de concreto: sugestões malévolas
apenas. Indícios confusos encorpavam ali dentro, ganhavam relevo,
mudavam-se em provas. Fora do mundo, aqueles espíritos caíam em
forte impressionabilidade, gastavam as horas longas criando fantasmas
ou admitindo, ingênuos, inventos alheios, as informações mais disparatadas. Só mais tarde
percebi como embustes grosseiros nos enleiam no cárcere e esforcei-me
com desespero por vencer o rebaixamento mental, a credulidade
estúpida.
Ouvindo pela primeira vez semelhantes acusações, procurei reagir,
mas talvez já houvesse em mim um esboço de alma selvagem.
Escorregava pouco a pouco, involuntariamente dava crédito aos boatos.
Seria injustiça? Faltavam-me elementos para julgar; no meio novo, a
repetição da crueldade verrumava-me na cabeça. Talvez houvesse
alguma verdade nos rumores. Enfim que me importava que houvesse ou
não? Era ali um estranho, e buscava refugiar-me nos meus pensamentos,
olhar pela vigia o litoral branco, as pequenas ondas luminosas; os
pensamentos embrulhavam-se, partiam-se, voltavam às murmurações
insidiosas, levianas, e a vista se desviava da paisagem uniforme, ia fixar
se na criatura serena, melancólica, de braços cruzados, a um canto,
respirando mal. Preocupava-me notar o isolamento de uma pessoa na
multidão. De fato não era bem isso. Dirigiam-se a Van der Linden,
aparentemente ele não se distinguia dos outros; mas observavam-no, alguns remoques deviam chegar-lhe aos
ouvidos. Se se inteirava da vigilância e das picuinhas, o nosso inferno era
insignificante comparado ao dele. É uma desgraça necessitarmos esses
pontos de referência para aguentarmos uma situação difícil: vemos que
alguém sofre mais que nós e deixamos de julgar-nos muito infelizes. E
quem sabe se torturamos os outros simplesmente com o fim de
experimentar-lhes a resistência? Em última análise estamos
experimentando a nossa. Ainda não suportamos aquilo, mas vemos que é
suportável.
Bem: não chegamos a posição desesperadora. Ideias assim,
fragmentos de ideias embrulhadas, machucadas, cortadas ferviam-me no
interior. E vinha-me também a recordação de Horácio Valadares a
despedir-se fúnebre, agoureiro:
– Se não nos tornarmos a ver, ficam vocês sabendo o lugar da
minha morte.
continua página 93....
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Leia também:
Memórias do Cárcere - Viagens 21
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Em setembro de 1915, motivado pela morte dos irmãos Otacília, Leonor e Clodoaldo e do sobrinho Heleno, vitimados pela epidemia de peste bubônica, volta para o Nordeste, fixando-se junto ao pai, que era comerciante em Palmeira dos Índios, Alagoas. Neste mesmo ano casou-se com Maria Augusta de Barros, que morreu em 1920, deixando-lhe quatro filhos.
Foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios em 1927, tomando posse no ano seguinte. Apoiado pelo governador do estado e impulsionado por ser um nome de fora da política, foi eleito em um pleito de uma candidatura só. Ficou no cargo por dois anos, renunciando a 10 de abril de 1930. Segundo uma das autodescrições, "Quando prefeito de uma cidade do interior, soltava os presos para construírem estradas." Os relatórios da prefeitura que escreveu nesse período chamaram a atenção de Augusto Frederico Schmidt, editor carioca que o animou a publicar Caetés (1933).
Entre 1930 e 1936. viveu em Maceió, trabalhando como diretor da Imprensa Oficial, professor e diretor da Instrução Pública do estado. Em 1934, havia publicado São Bernardo, e quando se preparava para publicar o próximo livro, foi preso após a Intentona Comunista de 1935. Foi levado para o Rio de Janeiro e ficou preso por onze meses, sendo liberado sem ter sido acusado de nada ou julgado. Em Memórias do Cárcere recorda a prisão que sofrera seis anos antes.
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