Graciliano Ramos
Volume I
Editora Record
PRIMEIRA PARTE
VIAGENS
19
SOMOS animais bem esquisitos. Depois daquela noite, o primeiro contato com a vida me provocou uma gargalhada. Não o riso lúgubre dos doidos, manifestação ruídosa e divertida, que me causava espanto e era impossível conter. Foi este o caso. Logo ao clarear o dia, saltei do estrado, busquei o vizinho do compartimento inferior, para agradecer-lhe os fósforos, e percebi um caboclo baixo, membrudo, hirsuto, a camisa de algodão aberta, deixando ver um rosário de contas brancas e azuis misturadas à grenha que ornava o peito largo. Esse instrumento devoto me produziu a hilaridade:
– O senhor usa isso, companheiro?
O sujeito endureceu a cara, deitou-me o rabo do olho, formalizou-se e grunhiu:
– Quando a nossa revolução triunfar, ateus assim como o senhor
serão fuzilados.
Esqueci os agradecimentos e afastei-me a rir, dirigi-me ao ponto
onde, na véspera, tinha ouvido o rapaz de casquete: esperava tornar a vê-lo, pedir informações a respeito do estranho revolucionário. Logo soube
que se chamava José Inácio e era beato. Homem de religião, homem de
fanatismo, desejando eliminar ateus, preso como inimigo da ordem.
Contrassenso. Como diabo tinha ido ele parar ali? Vingança mesquinha
de político da roça, denúncia absurda, provavelmente
– e ali estava embrulhado um eleitor recalcitrante, devoto bisonho do
padre Cícero. Com certeza havia outros inocentes na multidão, de
algumas centenas de pessoas.
A luz do dia, várias figuras começavam a delinear-se, nomes
próprios chegavam-me aos ouvidos, mas tudo se confundia – e era-me
impossível distinguir João Anastácio de Miguel Bezerra, duas criaturas
muito diferentes. Miguel Bezerra, o moço de casquete, exibia inquietação
constante no rosto fino como um focinho de rato; João Anastácio tinha a
cara imóvel, de múmia cabocla: sério, os olhos miúdos, parecia muito
novo ou muito velho, não tinha idade. O primeiro se mexia demais e
falava com exuberância, desdizendo-se: falava como se quisesse
inutilizar o efeito de palavras largadas inconsideradamente; o segundo me examinava em silêncio, desconfiado – uma coruja. Essas
coisas só foram percebidas muito depois. Naquela manhã tudo se
atrapalhava, a luz que vinha de cima e entrava pelas vigias era escassa. E
perturbado, no meio novo, esforçava-me por achar um canto onde pudesse
respirar.
Cheguei-me ao escotilhão. O homem louro, de cachimbo,
acolhedor e risonho, sentado numa rede, conversava com Sebastião Hora.
Fiquei sabendo que a personagem se chamava José Macedo e fora,
durante dois dias, secretário da Fazenda, na rebelião de Natal. Também
fui apresentado ao secretário do Interior, Lauro Lago, rapaz grave,
simpático, um ligeiro estrabismo disfarçado por óculos escuros. De fato
nem se haviam empossado – e os cargos decorativos apenas lhes
serviram para agravar as torturas na cadeia. Estive a ouvi-los meia hora.
Tinham-se aguentado quarenta e oito horas, esperando em vão que o
resto do país se revoltasse. Depois viera
o pânico.
Afastei-me, marchando nos calcanhares, tentando evitar as coisas
moles pisadas na véspera e percebendo claramente donde vinha o cheiro
forte de amoníaco. Aquelas pessoas urinavam no chão, a um canto; o
mijo corria, alagava tudo, arrastando cascas de frutas, vômitos, outras
imundícies. Com as oscilações da infame arapuca, a onda suja não
descansava, dificilmente se acharia um lugar enxuto. Necessário
arregaçar as calças e fazer malabarismos de toda a espécie para evitar a
ressaca nojenta.
Viajávamos no Mansas, um calhambeque muito vagabundo.
Naquela manhã chegamos a Maceió. Examinei atentamente, por uma
vigia, a praia de Pajuçara, tentei localizar a casa onde morei. Que
estariam fazendo as crianças? A mais nova ainda não falava direito.
Arriado numa caverna, o rosto na abertura, não desviava os olhos
daquele ponto. Estava ali a minha gente. O resto da cidade não me
despertava o mínimo interesse. Voluntariamente nunca mais poria os pés
naquela terra. O navio fundeou, mas não atentei nisto; não percebi a
azáfama dos botes rente ao costado, o burburinho dos passageiros novos,
carregadores e visitantes. Ter-me-ia conservado ali, imóvel. se não me
chamassem lá de cima.
Larguei a observação demorada, transpus o labirinto das redes, subi
a escadinha, achei-me no convés, meio encandeado, revi os policiais, a
cara facinorosa do negro que me havia apontado a pistola. Um
conhecido, a quem dávamos a alcunha de Passarinho, chegou-se à pressa,
muito pálido, entregou-me um pacote, sussurrou que minha mulher
estava a bordo, mas não lhe tinham permitido ver-me. Despediu-se e
afastaram-me, desci novamente à cova, atordoado, o embrulho na mão.
Desatei o barbante, achei no papel alguma roupa, meti-a na valise, que se
empanzinou.
Defendi os meus trastes contra a inundação de mijo e regressei à
vigia, mas agora não olhava a praia distante; a atenção se fixava nas
canoas e escaleres que se arredavam do navio. Capitão Mata, mais feliz,
conseguira descobrir algumas senhoras de sua família, trocara algumas
palavras com elas. Não me desesperançava de avistar uma figura amiga,
receber notícias, um gesto ao menos. O excelente padre José Leite, que
só aparece quando é necessário e tem habilidade notável para
comprometer-se, bordejava talvez por ali, buscando oportunidade. Anos
atrás acompanhara-me ao hospital, amolara-se quarenta noites horríveis; fugia-me a vida terrena, e de nenhum jeito me dispunha a
acomodar-me à vida eterna; corpo e alma se comprometiam
lastimosamente. Em ocorrência tão difícil a santa criatura abandonava os
seus negócios e ficava tempo sem fim tentando, com histórias de papas,
minorar-me as dores: quando me supunha tranquilo, visitava as
enfermarias dos indigentes. Com certeza andava ali perto. Não distingui
nenhuma pessoa conhecida. Tilintaram correntes, anunciando o
levantamento da escada; os rumores da coberta esmoreceram; as velas
das pequenas embarcações escassearam, dispersaram-se.
O Manaus desancorou, sumiram-se pouco a pouco as dunas, os
coqueiros, os tetos de armazéns acaçapados. Longamente me conservei
ali, trepado na costela do cavername, evitando o abafamento e
o calor da furna lôbrega, vendo a água bater na madeira velha recebendo
salpicos na cara. Experimentava uma vaga mistura de alívio e decepção.
As pessoas lá de fora pareceram-me indiferentes e covardes. Medo de
comprometer-se, julguei severo e injusto, esquecendo que muitos
esforços deviam ter sido feitos inutilmente e nenhuma visita chegara aos
outros alagoanos. Um pacote de roupa branca, meia dúzia de palavras sumidas. Afinal que
valíamos nós? Estávamos ali mortos, em decomposição, e era razoável
evitarem
o contágio. Bom que se conservassem longe. Ninguém nos poderia
oferecer uma dessas mesquinhas lisonjas indispensáveis na vida social;
estávamos diante de uma verdade muito nua e muito suja, e qualquer
aproximação nos originaria vergonha e constrangimento. O resto da
humanidade se afastava; no marasmo e no assombro, sentíamos que se
afastava em excesso. Impossíveis os entendimentos: muros
intransponíveis nos separavam. Se amigos conseguissem aproximar-se de
nós, ficariam em silêncio, de vista baixa, confusos e vazios, receando
molestar-nos. Uma palavra à-toa, largada com bom propósito, avivaria
suspeitas, provocaria situações intoleráveis: enxergaríamos nela
remoque, alusão velada. Certamente nos atribuíam culpas graves; na
melhor das hipóteses, éramos levianos e desastrados. E o pior é que nos
sentíamos infratores, éramos levados a admitir isto. Sinais intempestivos
de compaixão, simples referência ao ambiente sórdido, à horrível
miséria, mais nos reforçariam a certeza. Tínhamos delinquido, sem dúvida. Muitas daquelas criaturas ignoravam que delito
lhes imputavam. Na verdade não imputavam: mantinham-nas em
segregação, e isto devia bastar para convencê-las. Com o andar do
tempo, chegariam a dar razão à justiça nova. Ninguém iria prendê-las e
maltratá-las sem motivo. Algumas, como capitão Mata, recalcitrariam
exibindo-se vítimas de um equívoco. Outras se deixariam arrastar,
fugindo às explicações. E José Inácio desfiaria as contas brancas e azuis
do seu rosário, peloso e carrancudo, sonhando com uma revolução que
liquidasse todos os ateus.
continua página 89....
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Leia também:
Memórias do Cárcere - Viagens 19
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Em setembro de 1915, motivado pela morte dos irmãos Otacília, Leonor e Clodoaldo e do sobrinho Heleno, vitimados pela epidemia de peste bubônica, volta para o Nordeste, fixando-se junto ao pai, que era comerciante em Palmeira dos Índios, Alagoas. Neste mesmo ano casou-se com Maria Augusta de Barros, que morreu em 1920, deixando-lhe quatro filhos.
Foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios em 1927, tomando posse no ano seguinte. Apoiado pelo governador do estado e impulsionado por ser um nome de fora da política, foi eleito em um pleito de uma candidatura só. Ficou no cargo por dois anos, renunciando a 10 de abril de 1930. Segundo uma das autodescrições, "Quando prefeito de uma cidade do interior, soltava os presos para construírem estradas." Os relatórios da prefeitura que escreveu nesse período chamaram a atenção de Augusto Frederico Schmidt, editor carioca que o animou a publicar Caetés (1933).
Entre 1930 e 1936. viveu em Maceió, trabalhando como diretor da Imprensa Oficial, professor e diretor da Instrução Pública do estado. Em 1934, havia publicado São Bernardo, e quando se preparava para publicar o próximo livro, foi preso após a Intentona Comunista de 1935. Foi levado para o Rio de Janeiro e ficou preso por onze meses, sendo liberado sem ter sido acusado de nada ou julgado. Em Memórias do Cárcere recorda a prisão que sofrera seis anos antes.
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