sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Memórias do Cárcere - Viagens 19

Memórias do Cárcere

Graciliano Ramos


Volume I 
 Editora Record 
PRIMEIRA PARTE 

VIAGENS 

19

     SOMOS animais bem esquisitos. Depois daquela noite, o primeiro contato com a vida me provocou uma gargalhada. Não o riso lúgubre dos doidos, manifestação ruídosa e divertida, que me causava espanto e era impossível conter. Foi este o caso. Logo ao clarear o dia, saltei do estrado, busquei o vizinho do compartimento inferior, para agradecer-lhe os fósforos, e percebi um caboclo baixo, membrudo, hirsuto, a camisa de algodão aberta, deixando ver um rosário de contas brancas e azuis misturadas à grenha que ornava o peito largo. Esse instrumento devoto me produziu a hilaridade:

– O senhor usa isso, companheiro?

     O sujeito endureceu a cara, deitou-me o rabo do olho, formalizou-se e grunhiu: 

– Quando a nossa revolução triunfar, ateus assim como o senhor serão fuzilados. 

     Esqueci os agradecimentos e afastei-me a rir, dirigi-me ao ponto onde, na véspera, tinha ouvido o rapaz de casquete: esperava tornar a vê-lo, pedir informações a respeito do estranho revolucionário. Logo soube que se chamava José Inácio e era beato. Homem de religião, homem de fanatismo, desejando eliminar ateus, preso como inimigo da ordem. Contrassenso. Como diabo tinha ido ele parar ali? Vingança mesquinha de político da roça, denúncia absurda, provavelmente – e ali estava embrulhado um eleitor recalcitrante, devoto bisonho do padre Cícero. Com certeza havia outros inocentes na multidão, de algumas centenas de pessoas. 
     A luz do dia, várias figuras começavam a delinear-se, nomes próprios chegavam-me aos ouvidos, mas tudo se confundia – e era-me impossível distinguir João Anastácio de Miguel Bezerra, duas criaturas muito diferentes. Miguel Bezerra, o moço de casquete, exibia inquietação constante no rosto fino como um focinho de rato; João Anastácio tinha a cara imóvel, de múmia cabocla: sério, os olhos miúdos, parecia muito novo ou muito velho, não tinha idade. O primeiro se mexia demais e falava com exuberância, desdizendo-se: falava como se quisesse inutilizar o efeito de palavras largadas inconsideradamente; o segundo me examinava em silêncio, desconfiado – uma coruja. Essas coisas só foram percebidas muito depois. Naquela manhã tudo se atrapalhava, a luz que vinha de cima e entrava pelas vigias era escassa. E perturbado, no meio novo, esforçava-me por achar um canto onde pudesse respirar.
     Cheguei-me ao escotilhão. O homem louro, de cachimbo, acolhedor e risonho, sentado numa rede, conversava com Sebastião Hora. Fiquei sabendo que a personagem se chamava José Macedo e fora, durante dois dias, secretário da Fazenda, na rebelião de Natal. Também fui apresentado ao secretário do Interior, Lauro Lago, rapaz grave, simpático, um ligeiro estrabismo disfarçado por óculos escuros. De fato nem se haviam empossado – e os cargos decorativos apenas lhes serviram para agravar as torturas na cadeia. Estive a ouvi-los meia hora. Tinham-se aguentado quarenta e oito horas, esperando em vão que o resto do país se revoltasse. Depois viera o pânico.
     Afastei-me, marchando nos calcanhares, tentando evitar as coisas moles pisadas na véspera e percebendo claramente donde vinha o cheiro forte de amoníaco. Aquelas pessoas urinavam no chão, a um canto; o mijo corria, alagava tudo, arrastando cascas de frutas, vômitos, outras imundícies. Com as oscilações da infame arapuca, a onda suja não descansava, dificilmente se acharia um lugar enxuto. Necessário arregaçar as calças e fazer malabarismos de toda a espécie para evitar a ressaca nojenta.
     Viajávamos no Mansas, um calhambeque muito vagabundo. Naquela manhã chegamos a Maceió. Examinei atentamente, por uma vigia, a praia de Pajuçara, tentei localizar a casa onde morei. Que estariam fazendo as crianças? A mais nova ainda não falava direito. Arriado numa caverna, o rosto na abertura, não desviava os olhos daquele ponto. Estava ali a minha gente. O resto da cidade não me despertava o mínimo interesse. Voluntariamente nunca mais poria os pés naquela terra. O navio fundeou, mas não atentei nisto; não percebi a azáfama dos botes rente ao costado, o burburinho dos passageiros novos, carregadores e visitantes. Ter-me-ia conservado ali, imóvel. se não me chamassem lá de cima.
     Larguei a observação demorada, transpus o labirinto das redes, subi a escadinha, achei-me no convés, meio encandeado, revi os policiais, a cara facinorosa do negro que me havia apontado a pistola. Um conhecido, a quem dávamos a alcunha de Passarinho, chegou-se à pressa, muito pálido, entregou-me um pacote, sussurrou que minha mulher estava a bordo, mas não lhe tinham permitido ver-me. Despediu-se e afastaram-me, desci novamente à cova, atordoado, o embrulho na mão. Desatei o barbante, achei no papel alguma roupa, meti-a na valise, que se empanzinou.
     Defendi os meus trastes contra a inundação de mijo e regressei à vigia, mas agora não olhava a praia distante; a atenção se fixava nas canoas e escaleres que se arredavam do navio. Capitão Mata, mais feliz, conseguira descobrir algumas senhoras de sua família, trocara algumas palavras com elas. Não me desesperançava de avistar uma figura amiga, receber notícias, um gesto ao menos. O excelente padre José Leite, que só aparece quando é necessário e tem habilidade notável para comprometer-se, bordejava talvez por ali, buscando oportunidade. Anos atrás acompanhara-me ao hospital, amolara-se quarenta noites horríveis; fugia-me a vida terrena, e de nenhum jeito me dispunha a acomodar-me à vida eterna; corpo e alma se comprometiam lastimosamente. Em ocorrência tão difícil a santa criatura abandonava os seus negócios e ficava tempo sem fim tentando, com histórias de papas, minorar-me as dores: quando me supunha tranquilo, visitava as enfermarias dos indigentes. Com certeza andava ali perto. Não distingui nenhuma pessoa conhecida. Tilintaram correntes, anunciando o levantamento da escada; os rumores da coberta esmoreceram; as velas das pequenas embarcações escassearam, dispersaram-se.
     O Manaus desancorou, sumiram-se pouco a pouco as dunas, os coqueiros, os tetos de armazéns acaçapados. Longamente me conservei ali, trepado na costela do cavername, evitando o abafamento e o calor da furna lôbrega, vendo a água bater na madeira velha recebendo salpicos na cara. Experimentava uma vaga mistura de alívio e decepção. As pessoas lá de fora pareceram-me indiferentes e covardes. Medo de comprometer-se, julguei severo e injusto, esquecendo que muitos esforços deviam ter sido feitos inutilmente e nenhuma visita chegara aos outros alagoanos. Um pacote de roupa branca, meia dúzia de palavras sumidas. Afinal que valíamos nós? Estávamos ali mortos, em decomposição, e era razoável evitarem o contágio. Bom que se conservassem longe. Ninguém nos poderia oferecer uma dessas mesquinhas lisonjas indispensáveis na vida social; estávamos diante de uma verdade muito nua e muito suja, e qualquer aproximação nos originaria vergonha e constrangimento. O resto da humanidade se afastava; no marasmo e no assombro, sentíamos que se afastava em excesso. Impossíveis os entendimentos: muros intransponíveis nos separavam. Se amigos conseguissem aproximar-se de nós, ficariam em silêncio, de vista baixa, confusos e vazios, receando molestar-nos. Uma palavra à-toa, largada com bom propósito, avivaria suspeitas, provocaria situações intoleráveis: enxergaríamos nela remoque, alusão velada. Certamente nos atribuíam culpas graves; na melhor das hipóteses, éramos levianos e desastrados. E o pior é que nos sentíamos infratores, éramos levados a admitir isto. Sinais intempestivos de compaixão, simples referência ao ambiente sórdido, à horrível miséria, mais nos reforçariam a certeza. Tínhamos delinquido, sem dúvida. Muitas daquelas criaturas ignoravam que delito lhes imputavam. Na verdade não imputavam: mantinham-nas em segregação, e isto devia bastar para convencê-las. Com o andar do tempo, chegariam a dar razão à justiça nova. Ninguém iria prendê-las e maltratá-las sem motivo. Algumas, como capitão Mata, recalcitrariam exibindo-se vítimas de um equívoco. Outras se deixariam arrastar, fugindo às explicações. E José Inácio desfiaria as contas brancas e azuis do seu rosário, peloso e carrancudo, sonhando com uma revolução que liquidasse todos os ateus.

continua página 89....
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Graciliano Ramos de Oliveira (Quebrangulo, 27 de outubro de 1892 – Rio de Janeiro, 20 de março de 1953) foi um romancista, cronista, contista, jornalista, político e memorialista brasileiro do século XX, mais conhecido por sua obra Vidas Secas (1938).
Em setembro de 1915, motivado pela morte dos irmãos Otacília, Leonor e Clodoaldo e do sobrinho Heleno, vitimados pela epidemia de peste bubônica, volta para o Nordeste, fixando-se junto ao pai, que era comerciante em Palmeira dos Índios, Alagoas. Neste mesmo ano casou-se com Maria Augusta de Barros, que morreu em 1920, deixando-lhe quatro filhos.
Foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios em 1927, tomando posse no ano seguinte. Apoiado pelo governador do estado e impulsionado por ser um nome de fora da política, foi eleito em um pleito de uma candidatura só. Ficou no cargo por dois anos, renunciando a 10 de abril de 1930. Segundo uma das autodescrições, "Quando prefeito de uma cidade do interior, soltava os presos para construírem estradas." Os relatórios da prefeitura que escreveu nesse período chamaram a atenção de Augusto Frederico Schmidt, editor carioca que o animou a publicar Caetés (1933).
Entre 1930 e 1936. viveu em Maceió, trabalhando como diretor da Imprensa Oficial, professor e diretor da Instrução Pública do estado. Em 1934, havia publicado São Bernardo, e quando se preparava para publicar o próximo livro, foi preso após a Intentona Comunista de 1935. Foi levado para o Rio de Janeiro e ficou preso por onze meses, sendo liberado sem ter sido acusado de nada ou julgado. Em Memórias do Cárcere recorda a prisão que sofrera seis anos antes.

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