terça-feira, 8 de outubro de 2024

Memórias do Cárcere - Viagens 18

Memórias do Cárcere

Graciliano Ramos


Volume I 
 Editora Record 
PRIMEIRA PARTE 

VIAGENS 

18

     NÃO me ocorreu descansar: entregue a mim mesmo, teria passado a noite a vagar entre as redes como um sonâmbulo, arriaria em qualquer parte, dormiria sentado.
     Ignoro quem me conseguiu alojamento numa espécie de jirau onde havia prateleiras. A minha ficava em cima. Ausência de colchão, naturalmente. Subi, alonguei-me na tábua suja, vestido e calçado, fiz da valise travesseiro, deixei ao alcance da mão o chapéu de palha, que me servira de leque. E entrei a fumar, ou antes continuei a fumar, pois desde a chegada não tirara o cigarro da boca. Por isso os beiços estavam gretados e a língua ardia. Não, não era por isso: era por causa da sede, que provavelmente durava horas e passara despercebida.
     Conveniente descer, andar à toa no porão até descobrir água, beber muito, mas a iniciativa fugira, nenhum estímulo seria capaz de vencer a prostração. Em caso de incêndio a bordo, nem sei se me decidiria a levantar os ossos bambos. A camisa e a cueca molhadas grudavam-se ao corpo, e a calça e o paletó molhados colavam-se à madeira, dissolviam espessa crosta de imundície; despegando-me, afastando-me um pouco, deixava ao lado uma grande mancha escura. As gotinhas perversas animavam-me, corriam, fervilhavam-me como bichos miúdos nas virilhas e no pescoço. Liquefazia-me, evaporava-me, reduzia-me a bagaço, limão espremido. Enquanto estivera a mexer-me, de algum modo me integrara na turba, operações confusas se realizavam no meu cérebro; agora as reduzidas associações mentais deixavam de produzir-se. E em redor tudo se paralisava.
     Nos cantos figuras indecisas se abatiam, como trouxas, e do ponto em que me achava não me era possível distinguir o movimento leve das redes. Centenas de pulmões opressos, ressonar difícil, perturbado por constante rumor de tosse. Punha-me a tossir também, erguia-me sufocado, em busca de ar, levantava os braços e quase alcançava o teto baixo, a tampa da nossa catacumba. Provavelmente o fumo agravava a dispneia; não me resolvia a deixá-lo, e como os fósforos escasseassem, adotei o recurso de fumar sem intervalo, acendendo um cigarro no outro que se acabava.
     O sono fugia. Estirava-me, às vezes me alheava em modorra agoniada: as coisas em redor sumiam-se, e apenas restava, aborrecedora, uma torpe visão. Aquilo era repugnante e descarado. Fechava os olhos, tornava a abri-los, cheio de raiva e nojo. Nessas rápidas fugas o cigarro se apagava. Mais um fósforo perdido; inquietava-me vendo a caixa esvaziar-se. Impossível dormir – e não conseguia despertar de todo e economizar o fogo. As comichões seriam picadas de pulgas? Ou seriam efeito de ar que entrava pelas vigias e me salgava a pele queimada?
     A imagem repulsiva me atormentava: num estrado vizinho, inteiramente nu, um negro moço arranhava os escrotos em sossego. Indignava-me; pragas interiores vinham à tona e eram engolidas; lampejos de bom-senso impediam-me gritar, pedir ao tipo que tomasse vergonha. Efetivamente eu não tinha o direito de reclamar: se estivesse dormindo, o caso, para bem dizer, não existiria. Que me importava a coceira do homem? Talvez ele padecesse dartros. São medonhos: em horas de aperto desejamos triturar, rasgar a carne, suprimir de qualquer jeito a coisa insuportável, transformála num farrapo ensangüentado. Não, não era isso. O negro se coçava tranqüilamente, como se ali não estivesse ninguém, e obrigava-me a espiá-lo. Quando me determinava a fechar os olhos, os restos de personalidade se atropelavam, fugiam, no fervedouro interno se agitavam confusões, a brasa do cigarro esmorecia, findava. Um sobressalto: necessário riscar outro fósforo. Alarmava-me o desaparecimento deles. Seis, cinco, quatro, um somente. Conseguiria poupá-lo até o amanhecer? Não conseguiria. Ligeiras pausas, cochilos, nenhum meio de avaliar em que ponto da noite me achava. Os relógios me desagradam: em geral a marcha dos ponteiros, o tique-taque, a indicar a urgência de concluir um capítulo, me desarranjam o trabalho; assando, porém, no horrível forno, em vão tentava adivinhar, explorando os arredores, abrindo os ouvidos, o pingar lento dos minutos. Queimou se o último fósforo.
     Rumores vagos na coberta, diluídos nos tormentos da tosse, dos roncos agoniados. O pesadelo obsceno continuava a perseguir-me. O saco escuro, repuxado a unha, alongava-se; os testículos grossos davam à porcaria o jeito de uma cabaça de gargalo fino. Cachorro. Indignava-me como quando ouço garotos a assobiar num bonde, mas naquele momento experimentava indignação multiplicada. As minúcias ignóbeis – a cor, a forma, a transudação – enfureciam-me contra mim mesmo. Quem me obrigava a fixar a atenção nelas? Se me decidisse a virar a cabeça para os pés da miserável cama, a coisa indigna e afrontosa se dissiparia, o embalo vagaroso das redes me ofereceria talvez algum sossego. Provavelmente não pensei nisso. E a fadiga terrível me segurava. O patife jazia a dois passos de mim, quase me tocava, e procedia como se estivesse inteiramente só: a cara imóvel, a tromba caída, as pálpebras meio cerradas, as pernas abertas e curvas, na posição de uma parturiente. Não se notava ali desprezo à opinião pública: notava-se indiferença perfeita. O animal nem tinha consciência de que nos ofendia. E os dedos esticavam sem cessar a pelanca tisnada. No clima de inferno tudo se evaporava e sentia-me sujo: certamente partículas da imundície me alcançavam. O meu desejo era gritar injúrias pesadas, finalizar por qualquer meio a sórdida exposição. Não me atrevia a desabafar: o hábito de coibir-me, a fraqueza, o cansaço amarravam-me – e sobre o monturo oscilante o que de mim restava era um morno fastio, desejo de acabar-me.
     O cigarro apagou-se, levei ao bolso a mão, inutilmente, alarguei a vista pelos beliches próximos. Haveria ali náuseas também, repugnâncias invencíveis embrulhando estômagos?
     Distingui confusamente rostos esmorecidos, prostrações dolorosas. A visão que me atenazava nenhuma influência exercia nos arredores; possivelmente cada um se reservava o direito de exibir sem pejo as suas mais secretas particularidades. Natural. Não me resignava a isso, um ódio surdo me crescia na alma. Ao resfôlego penoso, ao ruído cavo da tosse, uniam-se gemidos, falas desconexas, arquejar de vômitos. Outras cenas descaradas estariam revolvendo vísceras, manchando o soalho. Busquei em redor uma cara desperta, curvei-me, dirigi-me ao andar inferior do jirau.

– Faz o obséquio, de me emprestar uma caixa de fósforos?

     Respondeu-me um grunhido, instantes depois um braço curto se levantou, escuro, peludo. misericordioso: a rápida trégua no vício ia-me alucinando. Restituí os fósforos:

– Muito obrigado.

     O pensamento se obliterou, supondo que delirei, uni a minha voz às divagações estertorosas dos prisioneiros. As sensações amorteceram – e na aspereza de tábua ficou um feixe de fibras secas. A língua dura, língua de papagaio, não mais se agitou, procurando umidade, os dentes deixaram de catar películas nos beiços ardentes. E as figuras em roda aumentavam, diminuíam, aproximavam-se, afastavam-se, fundiam-se, desagregavam-se, numa dança de fogos-fátuos, isentas de significação. Somente os quibas do negro permaneciam inalteráveis, mas por fim deixaram de impressionar-me: vi-os como se visse um pouco de matéria inorgânica. Susceptibilidades, retalhos de moral, delicadezas, pudores, se diluíam; esfrangalhava-se a educação: impossível manter-se ali.

– Faz o obséquio de me dar fósforos? 

     Novamente se levantava o braço curto, robusto, cabeçudo em excesso.

– Muito obrigado.

     Seria razoável pedir ao sujeito invisível que me deixasse conservar a caixa de fósforos. Não me lembrei disto: devolvia-a, certo de que, acendendo um cigarro no outro, poderia dispensá-la. Ao cabo de meia hora lá estava a incomodar o vizinho. Não reparei no egoísmo, na incivilidade que o procedimento revelava. Acordar alguém várias vezes por uma bagatela, que estupidez! Sem dúvida eu me comportava pior que o negro: este apenas exibia o pelame nojento, não amolava as pessoas com exigências. Enfim naquele infame lugar todos nos importunávamos. Os roncos, a tosse, borborigmos, vozes indistintas, vômitos eram incessantes. Acavalavam-se no espaço exíguo camas e redes. E como o ar escasseava, a nossa respiração constituía dano recíproco. Está aí o máximo requinte de perversidade, enquanto os verdugos repousam, as vítimas são forçadas a afligir-se mutuamente. 
     Por volta da madrugada uma ideia me surpreendeu: imaginei-me louco. Chegar-me-iam realmente aos ouvidos os sons estranhos? Seriam verdadeiros os rostos brancos, em desalento, vermelhos, nas convulsões da tosse, os vultos esmorecidos pelos cantos, cabeças erguendo-se à toa, desgovernadas, bocas escancarando-se no horror da sufocação? Talvez me achasse de novo no hospital, com o ventre rasgado, a queimar de febre. Talvez me visse num manicômio, a criar fantasmas. A incerteza pouco a pouco esmoreceu – convenci-me de que estava doido. Um doido manso, arriado numa tábua, a confundir imagens e ruídos. Provavelmente não me vestiriam camisa-de-força. Recordei-me dos meus velhos amigos Chico de Beca e Argentina. Argentina desenvolvia histórias sisudas e explicava-me no fim: – “Isto se deu quando eu tinha juízo.” Chico de Beca, em horas de maluquice aguda, considerava-se apóstolo e dava-me o título de Jesus Cristo. Libertava-se da religião – e voltávamos a ser viventes ordinários. Reminiscências da juventude alarmavam-me. As cordiais relações com dementes agora me pareciam significativas: era possível que houvesse entre nós alguma semelhança. Um doido lúcido.  
     A preocupação encheu a madrugada longa. Que horas seriam? Faziam-me falta as pancadas de um relógio, os cantos de galos que me abrandavam as insônias na minha casa de arrabalde. Esquisita insensatez. Achava-me a bordo, a vacilar numa tábua estreita, e não queria persuadir-me disto. Como iria comportar-me? Extravagaria sem perder a memória, diria ao concluir um disparate: – “Quando eu tinha juízo...” Recusa dos fatos evidentes, sombras, lacunas, o espírito a divagar à toa; e o exame disto, a análise do desarranjo, a convicção de que nos vamos achegando, passo a passo, da treva completa. O enjôo me livraria da angústia, desejei experimentá-lo, desamparar-me como um saco vazio, eximir-me da consciência e ignorar que a perdia. Nada disso. Os olhos arregalados, sempre a fumar, serenamente. Absurdo. Havia uma queda, vertigem, torvelinho, que nenhum gesto revelava. Parecia-me observar o interior de outra pessoa. Julgo na verdade que estive doido. Nessa loucura fria indivíduos e objetos diluíram-se, inconsistentes. E afinal apenas distingui um braço escuro, cabeludo, grosso, um negro bestial, de focinho dormente, a coçar os escrotos.

continua página 85....
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Graciliano Ramos de Oliveira (Quebrangulo, 27 de outubro de 1892 – Rio de Janeiro, 20 de março de 1953) foi um romancista, cronista, contista, jornalista, político e memorialista brasileiro do século XX, mais conhecido por sua obra Vidas Secas (1938).
Em setembro de 1915, motivado pela morte dos irmãos Otacília, Leonor e Clodoaldo e do sobrinho Heleno, vitimados pela epidemia de peste bubônica, volta para o Nordeste, fixando-se junto ao pai, que era comerciante em Palmeira dos Índios, Alagoas. Neste mesmo ano casou-se com Maria Augusta de Barros, que morreu em 1920, deixando-lhe quatro filhos.
Foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios em 1927, tomando posse no ano seguinte. Apoiado pelo governador do estado e impulsionado por ser um nome de fora da política, foi eleito em um pleito de uma candidatura só. Ficou no cargo por dois anos, renunciando a 10 de abril de 1930. Segundo uma das autodescrições, "Quando prefeito de uma cidade do interior, soltava os presos para construírem estradas." Os relatórios da prefeitura que escreveu nesse período chamaram a atenção de Augusto Frederico Schmidt, editor carioca que o animou a publicar Caetés (1933).
Entre 1930 e 1936. viveu em Maceió, trabalhando como diretor da Imprensa Oficial, professor e diretor da Instrução Pública do estado. Em 1934, havia publicado São Bernardo, e quando se preparava para publicar o próximo livro, foi preso após a Intentona Comunista de 1935. Foi levado para o Rio de Janeiro e ficou preso por onze meses, sendo liberado sem ter sido acusado de nada ou julgado. Em Memórias do Cárcere recorda a prisão que sofrera seis anos antes.

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