segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Platão: O Banquete - Apolodoro e um Companheiro(a)

Apolodoro[1] e um Companheiro


Apolodoro

- Creio que a respeito do que quereis saber não estou sem preparo. Com efeito, subia eu há pouco à cidade, vindo de minha casa em Falero, quando um conhecido atrás de mim avistou-me e de longe me chamou, exclamando em tom de brincadeira: “Falerino! Eh, tu, Apolodoro! Não me esperas?” Parei e esperei. E ele disse-me: “Apolodoro, há pouco mesmo eu te procurava, desejando informar-me do encontro de Agatão, Sócrates, Alcibíades, e dos demais que então assistiram ao banquete, e saber dos seus discursos sobre o amor, como foram eles. Contou-nos uma outra pessoa que os tinha ouvido de Fênix, o filho de Filipe, e que disse que também tu sabias. Ele porém nada tinha de claro a dizer. Conta-me então, pois és o mais apontado a relatar as palavras do teu companheiro. E antes de tudo, continuou, dize-me se tu mesmo estiveste presente àquele encontro ou não.” E eu respondi-lhe: “É muitíssimo prováve1 que nada de claro te contou o teu narrador, se presumes que foi há pouco que se realizou esse encontro de que me falas, de modo a também eu estar presente. Presumo, sim, disse ele. De onde, ó Glauco?, tornei-lhe. Não sabes que há muitos anos Agatão não está na terra, e desde que eu frequento Sócrates e tenho o cuidado de cada dia saber o que ele diz ou faz, ainda não se passaram três anos? Anteriormente, rodando ao acaso e pensando que fazia alguma coisa, eu era mais miseráve1 que qualquer outro, e não menos que tu agora, se crês que tudo se deve fazer de preferência à filosofia”. “Não fiques zombando, tornou ele, mas antes dize-me quando se deu esse encontro”. “Quando éramos crianças ainda, respondi-lhe, e com sua primeira tragédia Agatão vencera o concurso, um dia depois de ter sacrificado pela vitória, ele e os coristas. Faz muito tempo então, ao que parece, disse ele. Mas quem te contou? O próprio Sócrates? Não, por Zeus, respondi-lhe, mas o que justamente contou a Fênix. Foi um certo Aristodemo, de Cidateneão, pequeno, sempre descalço; ele assistira à reunião, amante de Sócrates que era, dos mais fervorosos a meu ver. Não deixei todavia de interrogar o próprio Sócrates sobre a narração que lhe ouvi, e este me confirmou o que o outro me contara. Por que então não me contas-te? tornou-me ele; perfeitamente apropriado é o caminho da cidade a que falem e ouçam os que nele transitam.”
E assim é que, enquanto caminhávamos, fazíamos nossa conversa girar sobre isso, de modo que, como disse ao início, não me encontro sem preparo. Se portanto é preciso que também a vós vos conte, devo fazê-1o. Eu, aliás, quando sobre filosofia digo eu mesmo algumas palavras ou as ouço de outro, afora o proveito que creio tirar, alegro-me ao extremo; quando, porém, se trata de outros assuntos, sobretudo dos vossos, de homens ricos e negociantes, a mim mesmo me irrito e de vós me apiedo, os meus companheiros, que pensais fazer algo quando nada fazeis. Talvez também vós me considereis infeliz, e creio que é verdade o que presumis; eu, todavia, quanto a vós, não presumo, mas bem sei.

Companheiro

- És sempre o mesmo, Apolodoro! Sempre te estás maldizendo, assim como aos outros; e me pareces que assim sem mais consideras a todos os outros infelizes, salvo Sócrates, e a começar por ti mesmo. Donde é que pegaste este apelido de mole, não sei eu; pois em tuas conversas és sempre assim, contigo e com os outros esbravejas, exceto com Sócrates.

Apolodoro

- Caríssimo, e é assim tão evidente que, pensando desse modo tanto de mim como de ti, estou eu delirando e desatinando?

Companheiro

- Não vale a pena, Apolodoro, brigar por isso agora; ao contrário, o que eu te pedia, não deixes de fazê-lo; conta quais foram os discursos.

Apolodoro

- Foram eles em verdade mais ou menos assim... Mas antes é do começo, conforme me ia contando Aristodemo, que também eu tentarei contar--vos.

     Disse ele que o encontrara Sócrates, banhado e calçado com as sandálias, o que poucas vezes fazia; perguntou-lhe então onde ia assim tão bonito.
     Respondeu-lhe Sócrates: - Ao jantar em casa de Agatão. Ontem eu o evitei, nas cerimônias da vitória, por medo da multidão; mas concordei em comparecer hoje. E eis por que me embelezei assim, a fim de ir belo à casa de um belo. E tu - disse ele - que tal te dispores a ir sem convite ao jantar?

- Como quiseres - tomou-lhe o outro.
- Segue-me, então - continuou Sócrates - e estraguemos o provérbio, alterando-o assim: “A festins de bravos, bravos vão livremente.” Ora, Homero parece não só estragar mas até desrespeitar este provérbio; pois tendo feito de Agamenão um homem excepcionalmente bravo na guerra, e de Menelau um “mole lanceiro”, no momento em que Agamenão fazia um sacrifício e se banqueteava, ele imaginou Menelau chegado sem convite, um mais fraco ao festim de um mais bravo.

     Ao ouvir isso o outro disse: - É provável, todavia, ó Sócrates, que não como tu dizes, mas como Homero, eu esteja para ir como um vulgar ao festim de um sábio, sem convite. Vê então, se me levas, o que deves dizer por mim, pois não concordarei em chegar sem convite, mas sim convidado por ti.

- Pondo-nos os dois a caminho - disse Sócrates - decidiremos o que dizer. Avante!

     Após se entreterem em tais conversas, dizia Aristodemo, eles partem. Sócrates então, como que ocupando o seu espírito consigo mesmo, caminhava atrasado, e como o outro se detivesse para aguardá-lo, ele lhe pede que avance. Chegado à casa de Agatão, encontra a porta aberta e aí lhe ocorre, dizia ele, um incidente cômico. Pois logo vem-lhe ao encontro, lá de dentro, um dos servos, que o leva onde se reclinavam os outros, e assim ele os encontra no momento de se servirem; logo que o viu, Agatão exclamou: - Aristodemo! Em boa hora chegas para jantares conosco! Se vieste por algum outro motivo, deixa-o para depois, pois ontem eu te procurava para te convidar e não fui capaz de te ver. Mas... e Sócrates, como é que não o trazes?

- Voltando-me então - prosseguiu ele - em parte alguma vejo Sócrates a me seguir; disse-lhe eu então que vinha com Sócrates, por ele convidado ao jantar.
- Muito bem fizeste - disse Agatão; - mas onde está esse homem?
- Há pouco ele vinha atrás de mim; eu próprio pergunto espantado onde estaria ele.
- Não vais procurar Sócrates e trazê-lo aqui, menino? - exclamou Agatão. - E tu, Aristodemo, reclina--te ao lado de Erixímaco.

     Enquanto o servo lhe faz ablução para que se ponha à mesa, vem um outro anunciar: - Esse Sócrates retirou-se em frente dos vizinhos e parou; por mais que eu o chame não quer entrar.

- É estranho o que dizes - exclamou Agatão; - vai chamá-lo! E não o largues!

     Disse então Aristodemo: - Mas não! Deixai-o! É um hábito seu esse: às vezes retira-se onde quer que se encontre, e fica parado. Virá logo porém, segundo creio. Não o incomodeis portanto, mas deixai-o.

- Pois bem, que assim se faça, se é teu parecer - tornou Agatão. - E vocês, meninos, atendam aos convivas. Vocês bem servem o que lhes apraz, quando ninguém os vigia, o que jamais fiz; agora portanto, como se também eu fosse por vocês convidado ao jantar, como estes outros, sirvam-nos a fim de que os louvemos.
- Depois disso - continuou Aristodemo - puseram-se a jantar, sem que Sócrates entrasse. Agatão muitas vezes manda chamá-lo, mas o amigo não o deixa. Enfim ele chega, sem ter demorado muito como era seu costume, mas exatamente quando estavam no meio da refeição. Agatão, que se encontrava reclinado sozinho no último leito, exclama: — Aqui, Sócrates! Reclina-te ao meu lado, a fim de que ao teu contato desfrute eu da sábia ideia que te ocorreu em frente de casa. Pois é evidente que a encontraste, e que a tens, pois não terias desistido antes.

     Sócrates então senta-se e diz: - Seria bom, Agatão, se de tal natureza fosse a sabedoria que do mais cheio escorresse ao mais vazio, quando um ao outro nos tocássemos, como a água dos copos que pelo fio de lã escorre do mais cheio ao mais vazio. Se é assim também a sabedoria, muito aprecio reclinar-me ao teu lado, pois creio que de ti serei cumulado com uma vasta e bela sabedoria. A minha seria um tanto ordinária, ou mesmo duvidosa como um sonho, enquanto que a tua é brilhante e muito desenvolvida, ela que de tua mocidade tão intensamente brilhou, tornando-se anteontem manifesta a mais de trinta mil gregos que a testemunharam.

- És um insolente, ó Sócrates - disse Agatão. - Quanto a isso, logo mais decidiremos eu e tu da nossa sabedoria, tomando Dioniso por juiz; agora porém, primeiro apronta-te para o jantar.
- Depois disso - continuou Aristodemo - reclinou-se Sócrates e jantou como os outros; fizeram então libações e, depois dos hinos ao deus e dos ritos de costume, voltam-se à bebida. Pausânias então começa a falar mais ou menos assim: - Bem, senhores, qual o modo mais cômodo de bebermos? Eu por mim digo-vos que estou muito indisposto com a bebedeira de ontem, e preciso tomar fôlego - e creio que também a maioria dos senhores, pois estáveis lá; vede então de que modo poderíamos beber o mais comodamente possível.

     Aristófanes disse então: - É bom o que dizes, Pausânias, que de qualquer modo arranjemos um meio de facilitar a bebida, pois também eu sou dos que ontem nela se afogaram.
     Ouviu-os Erixímaco, o filho de Acúmeno, e lhes disse: - Tendes razão! Mas de um de vós ainda preciso ouvir como se sente para resistir à bebida; não é, Agatão?

- Absolutamente - disse este - também eu não me sinto capaz.
- Uma bela ocasião seria para nós, ao que parece - continuou Erixímaco - para mim, para Aristodemo, Fedro e os outros, se vós os mais capazes de beber desistis agora; nós, com efeito, somos sempre incapazes; quanto a Sócrates, eu o excetuo do que digo, que é ele capaz de ambas as coisas e se contentará com o que quer que fizermos. Ora, como nenhum dos presentes parece disposto a beber muito vinho, talvez, se a respeito do que é a embriaguez eu dissesse o que ela é, seria menos desagradável. Pois para mim eis uma evidência que me veio da prática da medicina: é esse um mal terrível para os homens, a embriaguez; e nem eu próprio desejaria beber muito nem a outro eu o aconselharia, sobretudo a quem está com ressaca da véspera.
- Na verdade - exclamou a seguir Fedro de Mirrinote - eu costumo dar-te atenção, principalmente em tudo que dizes de medicina; e agora, se bem decidirem, também estes o farão. Ouvindo isso, concordam todos em não passar a reunião embriagados, mas bebendo cada um a seu bel-prazer.
- Como então - continuou Erixímaco - é isso que se decide, beber cada um quanto quiser, sem que nada seja forçado, o que sugiro então é que mandemos embora a flautista que acabou de chegar, que ela vá flautear para si mesma, se quiser, ou para as mulheres lá dentro; quanto a nós, com discursos devemos fazer nossa reunião hoje; e que discursos - eis o que, se vos apraz, desejo propor-vos.

continua página 8...
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Apolodoro e um Companheiro(a)
Apolodoro e um Companheiro(b)
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Platão (428/7-348/7 a.C.)
     Nasceu em Atenas, por volta de 428/7, e era membro de uma aristocrática e ilustre família. Descendia dos antigos reis de Atenas, de Sólon e era também sobrinho de Crítias (460/403) e Cármides, dois dos "Trinta Tiranos" que governaram Atenas em -404. Lutou na Guerra do Peloponeso entre 409 e 404, e a admiração por Sócrates, que conheceu em algum momento desse período, foi decisiva em sua vida.
     O seu verdadeiro nome era Arístocles, mas devido à sua compleição física recebeu a alcunha de Platão (significa literalmente "ombros largos"). Frequentou com assiduidade os ginásios, obtendo prêmios por duas vezes nos Jogos Istímicos. Começou por seguir as lições de Crátilo, discípulo de Heraclito, e as de Hermógenes, discípulo de Parménides. Em princípio, por tradição familiar deveria seguir a vida política. Contudo, a experiência do governo dos trinta tiranos que governaram Atenas por imposição de Esparta (404-403 a.C.), e da qual fazia parte dois dos seus tios Crístias e Cármides, distanciaram-no desta opção de vida, pelo menos do modo como a política era exercida. O fato que mais o marcou foi a influência que sobre ele exerceu Sócrates, tendo-se feito seu discípulo por volta de 408, quando contava vinte anos. Nele encontrou o mestre, que veio a homenagear na sua obra, fazendo-o interlocutor principal da quase totalidade dos seus diálogos.
     Após a morte de Sócrates, em 399 a.C., Platão realizou inúmeras viagens, travando contato com importantes filósofos e escolas de pensamento suas contemporâneas. Em Megara, travou contato com Euclides e sua escola; no Egito, Sicília e Magna Grécia, aprofundou seus conhecimentos através do contato com a sabedoria egípcia e os ensinamentos eleáticos e pitagóricos, este último especialmente através do encontro com Arquitas de Tarento. De passagem por Siracusa, ligou-se a Díon e Dionísio, tirano de Siracusa. Estas duas personagens desempenharam papel fundamental na posterior vida política de Platão. 
     De volta a Atenas, fundou em 387 a Academia, passando a dedicar-se ao ensino e à composição de sua obra filosófica.
     Em 365 e em 361 esteve novamente em Siracusa, a pedido do amigo Díon, numa tentativa inútil de transformar o jovem Dionísios II (-367/-342), filho e sucessor de Dionísios I, no "reifilósofo" que idealizara. 
     Desiludido com a dificuldade de colocar em prática suas idéias filosóficas, Platão não mais saiu de Atenas. 
     Durante o ultimo período da sua vida continuou a dirigir a Academia, e escreveu o Timeu, O Crítias e As Leis ,que não chegou a acabar falecendo por volta de 347.  
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[1] O interlocutor de Sócrates não está só (N.T.)


O amor para Platão 
- Clóvis de Barros



Parte Um
Por que um banquete?

Reunidos na casa de Agatão, poeta que acabara de vencer o mais importante concurso de tragédias da Grécia, um grupo de amigos comemora, brinda ao deus Eros e propõe um desafio inusitado: desvendar a natureza do amor.

Parte Dois
As cinco teses do amor

01- O retórico Fedro defende o amor como fonte de toda coragem e nobreza.
02 - Pausânias, o filósofo, sugere a separação em duas metades, uma vulgar e outra espiritual.
03 - O médico Erixímaco enxerga-o como a harmonia de opostos que rege a natureza.
04 - Com o mito da alma gêmea, o comediógrafo Aristófanes diz que o amor é a busca pela metade perdida.
05 - Agatão, o anfitrião da noite, o descreve como a mais pura e sublime personificação da beleza.

Parte Três
A escada do amor

Após as cinco teses, Sócrates assume a palavra. Seu discurso, desfazendo os anteriores, situa o amor como o intermediário entre o humano e o divino, uma espécie de daimon que nos conduz da beleza dos corpos à beleza da almas e, finalmente, à Beleza em si.

Parte Quatro
O amor de carne e osso

De súbito, o banquete filosófico, até então ordenado, é invadido pelo caos. Alcibíades, totalmente bêbado, faz um apaixonado elogio à pessoa de Sócrates, representando a lição platônica de que a teoria, por mais bela que seja, sempre há de encontrar seu contraponto nos desafios e paixões da realidade.

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