Apolodoro[1] e um Companheiro
Apolodoro
Reunidos na casa de Agatão, poeta que acabara de vencer o mais importante concurso de tragédias da Grécia, um grupo de amigos comemora, brinda ao deus Eros e propõe um desafio inusitado: desvendar a natureza do amor.
01- O retórico Fedro defende o amor como fonte de toda coragem e nobreza.
02 - Pausânias, o filósofo, sugere a separação em duas metades, uma vulgar e outra espiritual.
03 - O médico Erixímaco enxerga-o como a harmonia de opostos que rege a natureza.
04 - Com o mito da alma gêmea, o comediógrafo Aristófanes diz que o amor é a busca pela metade perdida.
05 - Agatão, o anfitrião da noite, o descreve como a mais pura e sublime personificação da beleza.
- Creio que a respeito do que quereis saber não estou sem preparo. Com efeito, subia eu há pouco à
cidade, vindo de minha casa em Falero, quando um conhecido atrás de mim avistou-me e de longe me
chamou, exclamando em tom de brincadeira: “Falerino! Eh, tu, Apolodoro! Não me esperas?” Parei e
esperei. E ele disse-me: “Apolodoro, há pouco mesmo eu te procurava, desejando informar-me do
encontro de Agatão, Sócrates, Alcibíades, e dos demais que então assistiram ao banquete, e saber dos
seus discursos sobre o amor, como foram eles. Contou-nos uma outra pessoa que os tinha ouvido de
Fênix, o filho de Filipe, e que disse que também tu sabias. Ele porém nada tinha de claro a dizer.
Conta-me então, pois és o mais apontado a relatar as palavras do teu companheiro. E antes de tudo,
continuou, dize-me se tu mesmo estiveste presente àquele encontro ou não.” E eu respondi-lhe: “É
muitíssimo prováve1 que nada de claro te contou o teu narrador, se presumes que foi há pouco que se
realizou esse encontro de que me falas, de modo a também eu estar presente. Presumo, sim, disse ele. De
onde, ó Glauco?, tornei-lhe. Não sabes que há muitos anos Agatão não está na terra, e desde que eu
frequento Sócrates e tenho o cuidado de cada dia saber o que ele diz ou faz, ainda não se passaram três
anos? Anteriormente, rodando ao acaso e pensando que fazia alguma coisa, eu era mais miseráve1 que
qualquer outro, e não menos que tu agora, se crês que tudo se deve fazer de preferência à filosofia”. “Não
fiques zombando, tornou ele, mas antes dize-me quando se deu esse encontro”. “Quando éramos crianças
ainda, respondi-lhe, e com sua primeira tragédia Agatão vencera o concurso, um dia depois de ter
sacrificado pela vitória, ele e os coristas. Faz muito tempo então, ao que parece, disse ele. Mas quem te
contou? O próprio Sócrates? Não, por Zeus, respondi-lhe, mas o que justamente contou a Fênix. Foi um
certo Aristodemo, de Cidateneão, pequeno, sempre descalço; ele assistira à reunião, amante de Sócrates
que era, dos mais fervorosos a meu ver. Não deixei todavia de interrogar o próprio Sócrates sobre a
narração que lhe ouvi, e este me confirmou o que o outro me contara. Por que então não me contas-te?
tornou-me ele; perfeitamente apropriado é o caminho da cidade a que falem e ouçam os que nele
transitam.”
E assim é que, enquanto caminhávamos, fazíamos nossa conversa girar sobre isso, de modo que, como
disse ao início, não me encontro sem preparo. Se portanto é preciso que também a vós vos conte, devo
fazê-1o. Eu, aliás, quando sobre filosofia digo eu mesmo algumas palavras ou as ouço de outro, afora o
proveito que creio tirar, alegro-me ao extremo; quando, porém, se trata de outros assuntos, sobretudo dos
vossos, de homens ricos e negociantes, a mim mesmo me irrito e de vós me apiedo, os meus
companheiros, que pensais fazer algo quando nada fazeis. Talvez também vós me considereis infeliz, e
creio que é verdade o que presumis; eu, todavia, quanto a vós, não presumo, mas bem sei.
Companheiro
- És sempre o mesmo, Apolodoro! Sempre te estás maldizendo, assim como aos outros; e me pareces que
assim sem mais consideras a todos os outros infelizes, salvo Sócrates, e a começar por ti mesmo. Donde
é que pegaste este apelido de mole, não sei eu; pois em tuas conversas és sempre assim, contigo e com os
outros esbravejas, exceto com Sócrates.
Apolodoro
- Caríssimo, e é assim tão evidente que, pensando desse modo tanto de mim como de ti, estou eu
delirando e desatinando?
Companheiro
- Não vale a pena, Apolodoro, brigar por isso agora; ao contrário, o que eu te pedia, não deixes de
fazê-lo; conta quais foram os discursos.
Apolodoro
- Foram eles em verdade mais ou menos assim... Mas antes é do começo, conforme me ia contando
Aristodemo, que também eu tentarei contar--vos.
Disse ele que o encontrara Sócrates, banhado e calçado com as sandálias, o que poucas vezes fazia;
perguntou-lhe então onde ia assim tão bonito.
Respondeu-lhe Sócrates: - Ao jantar em casa de Agatão. Ontem eu o evitei, nas cerimônias da vitória, por
medo da multidão; mas concordei em comparecer hoje. E eis por que me embelezei assim, a fim de ir
belo à casa de um belo. E tu - disse ele - que tal te dispores a ir sem convite ao jantar?
- Como quiseres - tomou-lhe o outro.
- Segue-me, então - continuou Sócrates - e estraguemos o provérbio, alterando-o assim: “A festins de
bravos, bravos vão livremente.” Ora, Homero parece não só estragar mas até desrespeitar este provérbio;
pois tendo feito de Agamenão um homem excepcionalmente bravo na guerra, e de Menelau um “mole
lanceiro”, no momento em que Agamenão fazia um sacrifício e se banqueteava, ele imaginou Menelau
chegado sem convite, um mais fraco ao festim de um mais bravo.
Ao ouvir isso o outro disse: - É provável, todavia, ó Sócrates, que não como tu dizes, mas como Homero,
eu esteja para ir como um vulgar ao festim de um sábio, sem convite. Vê então, se me levas, o que deves
dizer por mim, pois não concordarei em chegar sem convite, mas sim convidado por ti.
- Pondo-nos os dois a caminho - disse Sócrates - decidiremos o que dizer. Avante!
Após se entreterem em tais conversas, dizia Aristodemo, eles partem. Sócrates então, como que
ocupando o seu espírito consigo mesmo, caminhava atrasado, e como o outro se detivesse para
aguardá-lo, ele lhe pede que avance. Chegado à casa de Agatão, encontra a porta aberta e aí lhe ocorre,
dizia ele, um incidente cômico. Pois logo vem-lhe ao encontro, lá de dentro, um dos servos, que o leva
onde se reclinavam os outros, e assim ele os encontra no momento de se servirem; logo que o viu,
Agatão exclamou: - Aristodemo! Em boa hora chegas para jantares conosco! Se vieste por algum outro
motivo, deixa-o para depois, pois ontem eu te procurava para te convidar e não fui capaz de te ver. Mas...
e Sócrates, como é que não o trazes?
- Voltando-me então - prosseguiu ele - em parte alguma vejo Sócrates a me seguir; disse-lhe eu então que
vinha com Sócrates, por ele convidado ao jantar.
- Muito bem fizeste - disse Agatão; - mas onde está esse homem?
- Há pouco ele vinha atrás de mim; eu próprio pergunto espantado onde estaria ele.
- Não vais procurar Sócrates e trazê-lo aqui, menino? - exclamou Agatão. - E tu, Aristodemo, reclina--te
ao lado de Erixímaco.
Enquanto o servo lhe faz ablução para que se ponha à mesa, vem um outro anunciar: - Esse Sócrates
retirou-se em frente dos vizinhos e parou; por mais que eu o chame não quer entrar.
- É estranho o que dizes - exclamou Agatão; - vai chamá-lo! E não o largues!
Disse então Aristodemo: - Mas não! Deixai-o! É um hábito seu esse: às vezes retira-se onde quer que se
encontre, e fica parado. Virá logo porém, segundo creio. Não o incomodeis portanto, mas deixai-o.
- Pois bem, que assim se faça, se é teu parecer - tornou Agatão. - E vocês, meninos, atendam aos
convivas. Vocês bem servem o que lhes apraz, quando ninguém os vigia, o que jamais fiz; agora
portanto, como se também eu fosse por vocês convidado ao jantar, como estes outros, sirvam-nos a fim
de que os louvemos.
- Depois disso - continuou Aristodemo - puseram-se a jantar, sem que Sócrates entrasse. Agatão muitas
vezes manda chamá-lo, mas o amigo não o deixa. Enfim ele chega, sem ter demorado muito como era
seu costume, mas exatamente quando estavam no meio da refeição. Agatão, que se encontrava reclinado
sozinho no último leito, exclama: — Aqui, Sócrates! Reclina-te ao meu lado, a fim de que ao teu contato
desfrute eu da sábia ideia que te ocorreu em frente de casa. Pois é evidente que a encontraste, e que a
tens, pois não terias desistido antes.
Sócrates então senta-se e diz: - Seria bom, Agatão, se de tal natureza fosse a sabedoria que do mais cheio
escorresse ao mais vazio, quando um ao outro nos tocássemos, como a água dos copos que pelo fio de lã
escorre do mais cheio ao mais vazio. Se é assim também a sabedoria, muito aprecio reclinar-me ao teu
lado, pois creio que de ti serei cumulado com uma vasta e bela sabedoria. A minha seria um tanto
ordinária, ou mesmo duvidosa como um sonho, enquanto que a tua é brilhante e muito desenvolvida, ela
que de tua mocidade tão intensamente brilhou, tornando-se anteontem manifesta a mais de trinta mil
gregos que a testemunharam.
- És um insolente, ó Sócrates - disse Agatão. - Quanto a isso, logo mais decidiremos eu e tu da nossa
sabedoria, tomando Dioniso por juiz; agora porém, primeiro apronta-te para o jantar.
- Depois disso - continuou Aristodemo - reclinou-se Sócrates e jantou como os outros; fizeram então
libações e, depois dos hinos ao deus e dos ritos de costume, voltam-se à bebida. Pausânias então começa
a falar mais ou menos assim: - Bem, senhores, qual o modo mais cômodo de bebermos? Eu por mim
digo-vos que estou muito indisposto com a bebedeira de ontem, e preciso tomar fôlego - e creio que
também a maioria dos senhores, pois estáveis lá; vede então de que modo poderíamos beber o mais
comodamente possível.
Aristófanes disse então: - É bom o que dizes, Pausânias, que de qualquer modo arranjemos um meio de
facilitar a bebida, pois também eu sou dos que ontem nela se afogaram.
Ouviu-os Erixímaco, o filho de Acúmeno, e lhes disse: - Tendes razão! Mas de um de vós ainda preciso
ouvir como se sente para resistir à bebida; não é, Agatão?
- Absolutamente - disse este - também eu não me sinto capaz.
- Uma bela ocasião seria para nós, ao que parece - continuou Erixímaco - para mim, para Aristodemo,
Fedro e os outros, se vós os mais capazes de beber desistis agora; nós, com efeito, somos sempre
incapazes; quanto a Sócrates, eu o excetuo do que digo, que é ele capaz de ambas as coisas e se
contentará com o que quer que fizermos. Ora, como nenhum dos presentes parece disposto a beber muito
vinho, talvez, se a respeito do que é a embriaguez eu dissesse o que ela é, seria menos desagradável. Pois
para mim eis uma evidência que me veio da prática da medicina: é esse um mal terrível para os homens,
a embriaguez; e nem eu próprio desejaria beber muito nem a outro eu o aconselharia, sobretudo a quem
está com ressaca da véspera.
- Na verdade - exclamou a seguir Fedro de Mirrinote - eu costumo dar-te atenção, principalmente em
tudo que dizes de medicina; e agora, se bem decidirem, também estes o farão. Ouvindo isso, concordam
todos em não passar a reunião embriagados, mas bebendo cada um a seu bel-prazer.
- Como então - continuou Erixímaco - é isso que se decide, beber cada um quanto quiser, sem que nada
seja forçado, o que sugiro então é que mandemos embora a flautista que acabou de chegar, que ela vá
flautear para si mesma, se quiser, ou para as mulheres lá dentro; quanto a nós, com discursos devemos
fazer nossa reunião hoje; e que discursos - eis o que, se vos apraz, desejo propor-vos.
continua página 8...
___________________
Platão (428/7-348/7 a.C.)
Nasceu em Atenas, por volta de
428/7, e era membro de uma
aristocrática e ilustre família.
Descendia dos antigos reis de
Atenas, de Sólon e era também
sobrinho de Crítias (460/403) e
Cármides, dois dos "Trinta Tiranos"
que governaram Atenas em -404.
Lutou na Guerra do Peloponeso
entre 409 e 404, e a admiração por
Sócrates, que conheceu em algum
momento desse período, foi decisiva
em sua vida.
O seu verdadeiro nome era Arístocles, mas devido à sua
compleição física recebeu a alcunha de Platão (significa
literalmente "ombros largos"). Frequentou com assiduidade os
ginásios, obtendo prêmios por duas vezes nos Jogos Istímicos.
Começou por seguir as lições de Crátilo, discípulo de Heraclito, e
as de Hermógenes, discípulo de Parménides. Em princípio, por
tradição familiar deveria seguir a vida política. Contudo, a
experiência do governo dos trinta tiranos que governaram
Atenas por imposição de Esparta (404-403 a.C.), e da qual fazia
parte dois dos seus tios Crístias e Cármides, distanciaram-no
desta opção de vida, pelo menos do modo como a política era
exercida. O fato que mais o marcou foi a influência que sobre
ele exerceu Sócrates, tendo-se feito seu discípulo por volta de
408, quando contava vinte anos. Nele encontrou o mestre, que
veio a homenagear na sua obra, fazendo-o interlocutor principal
da quase totalidade dos seus diálogos.
Após a morte de Sócrates, em 399 a.C., Platão realizou
inúmeras viagens, travando contato com importantes filósofos e
escolas de pensamento suas contemporâneas. Em Megara,
travou contato com Euclides e sua escola; no Egito, Sicília e
Magna Grécia, aprofundou seus conhecimentos através do contato com a sabedoria egípcia e os ensinamentos eleáticos e
pitagóricos, este último especialmente através do encontro com
Arquitas de Tarento. De passagem por Siracusa, ligou-se a Díon
e Dionísio, tirano de Siracusa. Estas duas personagens
desempenharam papel fundamental na posterior vida política de
Platão.
De volta a Atenas, fundou em 387 a Academia, passando a
dedicar-se ao ensino e à composição de sua obra filosófica.
Em 365 e em 361 esteve novamente em Siracusa, a pedido do
amigo Díon, numa tentativa inútil de transformar o jovem
Dionísios II (-367/-342), filho e sucessor de Dionísios I, no "reifilósofo" que idealizara.
Desiludido com a dificuldade de colocar em prática suas idéias
filosóficas, Platão não mais saiu de Atenas.
Durante o ultimo período da sua vida continuou a dirigir a
Academia, e escreveu o Timeu, O Crítias e As Leis ,que não
chegou a acabar falecendo por volta de 347.
___________________
[1] O interlocutor de Sócrates não está só (N.T.)
O amor para Platão
- Clóvis de Barros
Parte Um
Por que um banquete?
Reunidos na casa de Agatão, poeta que acabara de vencer o mais importante concurso de tragédias da Grécia, um grupo de amigos comemora, brinda ao deus Eros e propõe um desafio inusitado: desvendar a natureza do amor.
Parte Dois
As cinco teses do amor
01- O retórico Fedro defende o amor como fonte de toda coragem e nobreza.
02 - Pausânias, o filósofo, sugere a separação em duas metades, uma vulgar e outra espiritual.
03 - O médico Erixímaco enxerga-o como a harmonia de opostos que rege a natureza.
04 - Com o mito da alma gêmea, o comediógrafo Aristófanes diz que o amor é a busca pela metade perdida.
05 - Agatão, o anfitrião da noite, o descreve como a mais pura e sublime personificação da beleza.
Parte Três
A escada do amor
Após as cinco teses, Sócrates assume a palavra. Seu discurso, desfazendo os anteriores, situa o amor como o intermediário entre o humano e o divino, uma espécie de daimon que nos conduz da beleza dos corpos à beleza da almas e, finalmente, à Beleza em si.
Parte Quatro
O amor de carne e osso
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