David Hume
Seção V
SOLUÇÃO CÉTICA DESTAS DÚVIDAS
SEGUNDA PARTE
Não há nada mais livre do que a imaginação humana; embora não possa ultrapassar o estoque primitivo de ideias fornecidas pelos sentidos externos e internos, ela tem poder ilimitado para misturar, combinar, separar e dividir estas ideias em todas as variedades da ficção e da fantasia imaginativa e novelesca. Ela pode inventar uma série de eventos com toda aparência de realidade, pode atribuir-lhes um tempo e um lugar particulares, concebê-los como existentes e descrevê-los com todos os pormenores que correspondem a um fato histórico, no qual ela acredita com a máxima certeza. Em que consiste, pois. a diferença entre tal ficção e a crença? Ela não se localiza simplesmente em uma ideia particular anexada a uma concepção que obtém nosso assentimento, e que não se encontra em nenhuma ficção conhecida. Pois, como o espírito tem autoridade sobre todas as suas ideias, poderia voluntariamente anexar esta ideia particular a uma ficção e, por conseguinte, seria capaz de acreditar no que lhe agradasse, embora se opondo a tudo que encontramos na experiência diária. Podemos, quando pensamos, juntar a cabeça de um homem ao corpo de um cavalo, mas não está em nosso poder acreditar que semelhante animal tenha alguma vez existido.
Conclui-se, portanto, que a diferença entre a ficção e a crença se localiza em algum
sentimento ou maneira de sentir, anexado à última e não à primeira, que não depende da
vontade e não pode ser manipulado a gosto. É preciso que a natureza a desperte como os
outros sentimentos; é preciso que ela nasça da situação particular em que o espírito se
encontra em cada conjuntura particular. Todas as vezes que um objeto se apresenta à
memória ou aos sentidos, pela força do costume, a imaginação é levada imediatamente a
conceber o objeto que lhe está habitualmente unido; esta concepção é acompanhada por uma
maneira de sentir ou sentimento, diferente dos vagos devaneios da fantasia. Eis toda a
natureza da crença.[1] Visto que nossa mais firme crença sobre qualquer fato sempre admite
uma concepção que lhe é contrária, não haveria, portanto, nenhuma diferença entre nosso
assentimento ou rejeição de qualquer concepção, se não houvesse algum sentimento
distinguindo uma da outra. Se vejo, por exemplo, uma bola de bilhar deslizar em direção de
outra numa mesa polida, posso imaginar com clareza que uma parará ao chocar-se com a
outra. Esta concepção não implica contradição, porém a sinto muito diferente da concepção
pela qual me represento o impulso e a comunicação do movimento de uma bola a outra.
Se tentássemos uma definição[2] deste sentimento, veríamos, talvez, que se trata de tarefa
muito difícil, senão impossível; da mesma maneira como se tentássemos definir a sensação de
frio ou a paixão de cólera a uma criatura que nunca teve a experiência destes sentimentos.
Crença é o nome verdadeiro e próprio desta maneira de sentir; ninguém jamais se encontra
em dificuldade para saber o significado daquele termo, porque cada um está, em todo
momento, consciente do sentimento que representa. Sem dúvida, não seria impróprio tentar
uma descrição deste sentimento esperando chegar, por este meio, a algumas analogias que
poderiam fornecer uma explicação mais perfeita. Digo, pois, que a crença não é nada senão
uma concepção de um objeto mais vivo, mais vivido, mais forte, mais firme e mais estável
que aquela que a imaginação, por si só, seria capaz de obter. Uso esta variedade de termos,
embora tão pouco filosófica, com a única intenção de exprimir este ato de espírito que nos
revela realidades, ou que se considera como tal, mais presentes a nós que as ficções, que as
faz pensar mais no pensamento e lhes dá uma influência superior às paixões e à imaginação.
Desde que concordamos no tocante à coisa, é desnecessário discutir acerca dos termos. A
imaginação governa todas as suas ideias e pode uni-las, misturá-las e variá-las de todas as
formas possíveis. Pode conceber objetos fictícios em todas as situações de espaço e de tempo.
Pode colocá-los de certa maneira diante de nossos olhos com suas próprias cores, exatamente
como se houvessem existido. Mas, como é impossível que essa faculdade da imaginação
possa jamais, por si mesma, converter-se em crença, é evidente que a crença não consiste na
natureza particular ou na ordem da ideias, mas na maneira como o espírito as concebe e as
sente. Confesso que é impossível explicar com perfeição este sentimento ou esta maneira de
conceber. Podemos usar palavras que expressam algo parecido. Mas o seu nome verdadeiro e
próprio, como já dissemos, é crença: termo que cada um compreende suficientemente na vida
corrente. Em filosofia, não podemos ir além da seguinte afirmação: crença é qualquer coisa
sentida pelo espírito, que distingue as ideias dos juízos das ficções da imaginação. Ela lhes dá
maior peso e influência; as faz parecer de maior importância; as reforça no espírito e as
estabelece como princípios diretivos de nossas ações. Ouço agora, por exemplo, a voz de uma
pessoa conhecida, e o som parece vir do quarto contíguo. Esta impressão dos meus sentidos
conduz imediatamente meu pensamento à pessoa e, ao mesmo tempo, a todos os objetos
circundantes. Eu os pinto para mim mesmo como existentes atualmente e com as próprias
qualidades e relações que já sabia que possuíam. Estas ideias se apoderam de meu espírito
mais depressa que as ideias de um castelo encantado. Sinto-as de modo muito diferente, e sua
influência é bem maior, em todos os pontos de vista, tanto para produzir prazer e dor como
alegria e tristeza.
Consideremos, pois, esta doutrina em toda a sua extensão e concedamos que o
sentimento da crença nada mais é do que uma concepção mais intensa e mais firme do que
aquele que acompanha as puras ficções da imaginação, e que esta maneira de conceber nasce
de uma conjunção costumeira do objeto com alguma coisa presente à memória e aos sentidos.
Não será difícil, creio eu, com estas conjeturas, encontrar outras operações do espírito que lhe
sejam análogas e ascender deste fenômeno a princípios ainda mais gerais.
Já temos observado que a natureza estabeleceu conexões entre as ideias particulares, e
que uma ideia, logo que aparece aos nossos pensamentos, introduz sua correlata e dirige
nossa atenção na direção dela, mediante um movimento suave e insensível. Estes princípios
de conexão ou de associação foram por nós reduzidos a três, a saber: semelhança,
contiguidade e causalidade, que são os únicos laços que unem entre si nossos pensamentos e
que engendram a série regular de reflexão ou do discurso que, em maior ou menor grau, se
realiza entre todos os homens. Ora aqui surge um problema do qual dependerá a solução da
presente dificuldade. Admitindo-se que em todas as relações, quando um dos objetos é
revelado aos sentidos ou à memória, o espírito não é apenas induzido a conceber seu
correlato, mas o concebe de maneira mais firme e mais forte, indagamos se esta nova
concepção poderia ser alcançada de outro modo? Parece-nos que é o que ocorre com a crença
originada da relação de causa e efeito. Ora, se o mesmo fenômeno se verifica em outras
relações ou princípios de associação, poder-se-ia considerá-las uma lei geral ocorrendo em
todas as operações do espírito.
Portanto, podemos constatar, como primeiro experimento em vista de nossos fins
atuais, que, quando nos defrontamos com o retrato de um amigo ausente, é evidente que sua
ideia nos é avivada pela semelhança, e que toda paixão engendrada por esta ideia — quer de
alegria, quer de tristeza — adquire nova força e novo vigor. Para a produção deste efeito,
concorrem simultaneamente uma relação e uma impressão presente. Se o retrato não é
semelhante ao nosso amigo ou não foi ao menos feito para assemelhar-lhe, jamais faz
convergir nosso pensamento para ele; se tanto o retrato como a pessoa estiverem ausentes,
embora o espírito possa passar do pensamento de um para o da outra, sente que sua ideia se
acha mais enfraquecida do que avivada por esta transição. Sentimos prazer quando vemos o
retrato de um amigo; porém, quando ele é retirado, preferimos considerar nosso amigo
diretamente a fazê-lo através de sua imagem refletida que é, ao mesmo tempo, distante e
obscura.
As cerimônias da religião católica romana podem considerar-se como exemplos da
mesma natureza. Os devotos desta superstição alegam geralmente, desculpando as momices
que lhes censuram, que sentem o bom efeito destes movimentos exteriores, de posturas e
ações que avivam sua devoção e estimulam seu fervor, que de outro modo seriam
enfraquecidos se se dirigissem inteiramente a objetos distantes e imateriais. Representamos
os objetos de nossa fé, dizem eles, com símbolos e imagens sensíveis, aproximando-os assim
de nós pela presença imediata destes símbolos do que pela mera visão intelectual e
contemplativa. Os objetos sensíveis influem com mais vigor sobre a fantasia do que
quaisquer outros e comunicam mais depressa esta influência às ideias com as quais se
relacionam e se assemelham. Inferirei somente, destas práticas e deste raciocínio, que o efeito
da semelhança avivando ideias é bastante comum; e como em todos os exemplos concorrem
uma semelhança e uma impressão presente, consideramo-nos fartamente abastecidos de
experimentos comprovantes da realidade do princípio precedente.
Podemos reforçar estas experiências com outras de gênero diferente, considerando os
efeitos da contiguidade do mesmo modo que os da semelhança. Certamente, a distância
diminui a força de toda ideia, e quando nos aproximamos de um objeto, mesmo se ele não se
revela aos nossos sentidos, age sobre o espírito com influência parecida a uma impressão
imediata. Pensar num objeto faz convergir imediatamente o espírito ao que lhe é contíguo;
porém, é unicamente a presença real de um objeto que o transporta com vivacidade superior.
Encontrando-me a poucas milhas de minha casa, qualquer coisa que se relaciona com ela me
toca mais de perto do que quando estou a duzentas léguas, embora, mesmo a esta distância, se
reflito sobre qualquer objeto situado próximo de meus amigos ou de minha família, esta
reflexão produz naturalmente a id5ia deles. Mas, considerando que, neste exemplo, os dois
objetos do espírito são apenas ideias e não obstante a fácil transição de uma a outra, esta
transição, por si mesma, é incapaz de dotar de vivacidade superior quaisquer id5ias, porque
ela carece de uma impressão imediata.[3]
Ninguém deve duvidar que a causalidade tem influência idêntica às relações de
semelhança e de contiguidade. Os supersticiosos afeitos às relíquias dos santos e de
personagens sagradas procuram, por esta razão, símbolos ou imagens que possam avivar sua
devoção e fornecer-lhes concepção mais íntima e mais forte das vidas exemplares que visam
a imitar. Ora, é evidente que uma das melhores relíquias procuradas por um devoto seria um
objeto feito pelo próprio santo; e se se consideram suas roupas e móveis sob este prisma, é
porque estiveram uma vez à disposição do santo que os tocou e, portanto, os influenciou.
Devem, contudo, considerar-se como efeitos imperfeitos e ligados ao santo por uma cadeia de
consequências mais curtas do que algumas daquelas pelas quais adquirimos conhecimento
sobre sua existência real.
Supondo, de outro lado, que vos fosse apresentado o filho de um amigo morto ou
ausente há muito tempo; certamente, este objeto reviveria num instante sua ideia correlata e
faria retomar ao nosso pensamento todas as intimidades e familiaridades passadas, em cores
mais vivas do que aquelas que de outro modo vos teriam aparecido. Este é outro fenômeno
que parece comprovar o princípio acima mencionado.
Devemos assinalar que nestes fenômenos sempre se pressupõe a crença no objeto
correlato, sem o que a relação não teria nenhum efeito. O retrato exerce influência porque
cremos que nosso amigo alguma vez já existiu. A contiguidade com nossa casa não pode
jamais estimular nossas ideias sobre ela, a menos que creiamos que a casa realmente existe.
Ora, afirmo que esta crença — se se estende além dos dados da memória ou dos sentidos — é
de natureza semelhante e surge de causas semelhantes à transição do pensamento e
vivacidade da concepção, aqui explicadas. Quando lanço ao fogo um pedaço de lenha seca,
meu espírito se vê obrigado imediatamente a conceber que ela aviva em vez de extinguir a
chama. Esta transição do pensamento da causa ao efeito não se baseia na razão. Sua origem
deriva completamente do hábito e da experiência. Visto que a transição se origina de um
objeto presente aos sentidos, este incorpora à ideia ou à concepção da chama mais força e
vivacidade do que qualquer devaneio vago e flutuante da imaginação. Esta ideia nasce
imediatamente. E o pensamento converge instantaneamente para a ideia, transferindo-lhe toda
a força conceptual que deriva da impressão presente aos sentidos. Se uma espada estiver
apontada para o meu peito, as ideias de ferimento e dor que a acompanham não me atingem
com mais força do que se me apresentam um copo de vinho, e mesmo supondo que por acaso
esta ideia surgisse após o aparecimento do último objeto? Mas, o que é que causa uma
concepção tão forte, senão unicamente a presença de um objeto, e a transição costumeira para
a ideia de outro objeto, que nos acostumamos a juntar com a primeira? Eis toda operação do
espírito em todas as nossas conclusões referentes às questões de fato e de existência; e já é
uma satisfação encontrar algumas analogias que podem explicá-la. A transição a partir de um
objeto presente dá, em todos os casos, força e solidez à ideia com a qual está relacionado.
Eis, pois, uma espécie de harmonia preestabelecida entre o curso da natureza e a
sucessão de nossas ideias; e embora os poderes e as forças que governam a primeira nos
sejam totalmente desconhecidos, achamos que nossos pensamentos e nossas concepções se
têm sempre desenrolado na mesma sequência que as outras obras da natureza. O costume é o
princípio que tem realizado esta correspondência, tão necessária para a conservação de nossa
espécie e para o regulamento de nossa conduta em todas as circunstâncias e situações da vida
humana. Se a presença de um objeto não despertasse instantaneamente a ideia dos objetos
que comumente estão unidos a ele, todo nosso conhecimento deveria limitar-se à estreita
esfera de nossa memória e de nossos sentidos, e jamais seríamos capazes de adaptar os meios
em vista dos fins ou de empregar nossos poderes naturais para produzir o bem ou evitar o
mal. Aqueles que se deliciam na descoberta e na contemplação das causas finais, têm aqui
amplo objeto para empregar a sua curiosidade e espanto.
Acrescentarei reforçando a teoria precedente — que esta operação do espírito,
permitindo-nos inferir efeitos semelhantes de causas semelhantes e vice-versa, por ser tão
essencial para a conservação de todos os seres humanos, não poderia ser confiada às falazes
deduções da razão humana, que é lenta em suas Operações e não se manifesta, em qualquer
grau, nos primeiros anos de nossa infância e, no melhor dos casos, no decorrer da vida
humana acha-se mais exposta ao erro e ao engano. Conforma-se mais com a sabedoria
ordinária da natureza assegurar-se de um ato tão necessário do espírito graças a um instinto
ou tendência mecânica, que pode ser infalível em suas operações e pode revelar-se a partir do
nascimento da vida e do pensamento e, demais, independe de todas as elaboradas deduções
de entendimento. Do mesmo modo que a natureza nos ensinou a usar nossos membros sem
esclarecer-nos acerca dos músculos e nervos que os movem, ela também implantou em nós
um instinto que impulsiona o pensamento num processo correspondente ao estabelecido entre
os objetos externos, embora mantendo-nos ignorantes destes poderes e forças dos quais
dependem totalmente o curso regular e a sucessão de objetos.
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Notas:
[1] Hume acrescenta, no “Appendix” do Tratado, um novo elemento para explicar a
crença. Salienta que um “segundo erro pode ser encontrado no primeiro livro, página 96,
quando digo que duas ideias de um mesmo objeto podem ser discriminadas apenas por seus
diferentes graus de força e vivacidade. Acredito que há outra diferença entre as ideias que não
podem ser adequadamente compreendidas com aqueles termos. Se tivesse dito que duas
ideias de um mesmo objeto podem diferenciar-se apenas por seus diferentes feefing
[traduzimos por “maneira de sentir”], estaria bem mais próximo da verdade” (p. 636). Esta
nova discussão da natureza da crença ocupa nove das dezessete páginas do “Appendix”, e seu
principal aspecto consiste em mostrar que a crença é um feeling. Convém lembrar que, no
corpo do Tratado, em nenhum momento a crença é designada como feeling. Tendo, porém,
introduzido esse acréscimo no “Appendix”, Hume permanece coerente com a mesma
doutrina na Investigação. [N. do T.]
[2] Hume anota que a crença constitui um ato do espírito jamais “explicado por nenhum
filósofo” (Tratado, 1, iii, vil, p. 97, nota). Mostra, por exemplo, que não custa muito explicar
como uma “pessoa” considera verdadeiras as proposições demonstrativas ou intuitivas, já que
quando ela “decide, não apenas concebe as ideias segundo a proposição, mas é
necessariamente determinada a concebê-las de um modo específico”(Idem, p. 95). Mas o que
é evidente para a demonstração não o é em relação à crença baseada nos raciocínios de
causalidade, nos quais a “necessidade absoluta não se verifica, e a imaginação é livre para
conceber os dois aspectos da questão” (Ibidem, p. 95). [N. do T.]
[3] “Poderia dizer, ele respondeu, que é uma disposição natural ou não sei qual ilusão que
nos deixa intensamente comovidos quando vemos os lugares pelos quais, como nos
informaram, homens dignos de memória passaram longo tempo, do que quando nos falam a
respeito deles ou lemos alguma coisa escrita por eles? Eu, por exemplo, estou agora
comovido. Platão surge em minha mente, e, pelo que sabemos, ele foi o primeiro homem a
realizar aqui discussões regulares: estes pequenos jardins, tão próximos de nós, não apenas
despertam em mim a lembrança de Platão, mas apresentam, por assim dizer, sua imagem
diante de meus olhos. Era aqui que estava Espeusipo, lá Xenócrates e acolá seu discípulo,
Polemo, que sentava geralmente naquele lugar. Em verdade, quando vi a sede de nosso
Senado (refiro-me à que foi construída por Hostilio e não ao novo prédio, que quase não me
comove depois que foi ampliado), pensei em Cipião, Catão e Lélio, mas sobretudo em meu
avô. E tão grande o poder dos lugares para despertar recordações que, com muita razão, o
treinamento da memória deriva deles” Cícero, De Finibus, v. 2 (Hume). [Trad. por Anoar
Aiex].
continua página 41...
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Ensaio sobre o entendimento humano: Seção V (2)
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