sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Thomas Mann - A Montanha Mágica: “Vingt et un” (b)

Thomas Mann

A Montanha Mágica
 
Capítulo VII
“Vingt et un” 

..
     Peeperkorn esfregava as mãos. 

– Ótimo! – disse. – Perfeito! Excelente! Vá depressa, meu jovem amigo! Obedeça! Formaremos uma roda. Vamos jogar, comer e beber. Vamos sentir que... Absolutamente, meu caro rapaz!

     Hans Castorp serviu-se do elevador e subiu ao segundo piso. Bateu à porta de A. K. Ferge, que por sua vez tirou Ferdinand Wehsal e o Sr. Albin das suas espreguiçadeiras no alpendre do andar térreo. O Promotor Paravant e o casal Magnus haviam sido encontrados no vestíbulo, a Srª. Stöhr e a Kleefeld, no salão. Foi ali, embaixo do lustre central, que abriram uma espaçosa mesa de jogo. Cercaram-na de cadeiras e de mesinhas auxiliares. Cada convidado que se reunia ao grupo era cumprimentado por Mynheer, com o olhar apagado, mas cortês, e com os arabescos da fronte içados em sinal de atenção. Sentaram-se doze à mesa. Hans Castorp recebeu o lugar entre o majestoso anfitrião e Clávdia Chauchat. Foram distribuídas cartas e fichas. Segundo haviam combinado, seriam jogadas algumas partidas de vinte-e-um. Peeperkorn, com aquele seu jeito imponente, mandou chamar a anã e pediu vinho, um Chablis de 1906, três garrafas por enquanto, acompanhadas de doces, tudo o que ela pudesse encontrar de passas de frutas e de confeitos. O modo como esfregava as mãos para saudar os quitutes que lhe serviam patenteava a sua satisfação; foi também por meio de palavras, que de um modo impressionante terminavam no meio das frases, que o holandês procurou comunicar o que sentia; conseguiu isso perfeitamente, pelo menos no sentido de impor a sua personalidade. Pondo as mãos nos antebraços dos vizinhos, reclamou, com pleno êxito, a mais intensa atenção de todos para a maravilhosa cor de ouro do vinho, para o açúcar exsudado pelas passas de Málaga, e para certo tipo de rosquinhas salgadas e polvilhadas com sementes de papoula. Qualificou-as de divinas, sufocando de vez, com um gesto imperioso, o menor germe de oposição que porventura se levantasse contra o emprego de uma palavra tão exaltada. Foi o primeiro a encarregar-se da banca, mas prontamente a cedeu ao Sr. Albin; conforme disse, se é que o entendemos bem, a função de banqueiro impedia-o de gozar livremente a festa.
     Era visível que o jogo de azar representava para ele um assunto secundário. Jogava-se por nada, segundo a sua opinião. Por proposta dele haviam fixado a aposta mínima em cinquenta centavos, mas isso representava muito dinheiro para a maioria dos parceiros. O Promotor Paravant tanto como a Srª. Stöhr empalideciam e coravam alternadamente. Esta sobretudo remexia-se na cadeira, presa de terríveis lutas interiores, quando, tendo dezoito pontos, se lhe deparava o problema de comprar ou não comprar. Dava gritos lancinantes, quando o Sr. Albin, com um gesto frio e rotineiro, lhe atirava uma carta muito alta que lhe aniquilava por completo os projetos. Peeperkorn ria-se jovialmente. 

– Grite, madame, grite! – dizia. – É um som agudo, cheio de vida, que vem do fundo de... Beba e regale o seu coração, para que novamente... – E enchia-lhe a taça. Encomendou mais três garrafas. Bebeu à saúde de Wehsal e da obtusa Srª. Magnus, porque um e outra lhe pareciam ter suma necessidade de animação. O vinho, que era realmente ótimo, coloriu em pouco tempo os rostos, exceção feita ao Dr. Ting-Fu, que permanecia invariavelmente amarelo, com os olhos rasgados, pretos como azeviche, soltando discretos risinhos cacarejantes, enquanto fazia elevadas apostas com uma sorte escandalosa. Os outros não queriam ficar atrás. O Promotor Paravant, com o olhar turvo, desafiou o destino, arriscando dez francos numa entrada que despertava apenas moderadas esperanças; empalideceu ao ver que havia comprado demais, e todavia ganhou, uma vez que o Sr. Albin, confiando num ás traiçoeiro, fizera dobrar todas as apostas. Eram emoções que não se limitavam à pessoa de quem as causava a si próprio. Toda a roda tomava parte nelas; nem o Sr. Albin, embora rivalizasse, em matéria de fria circunspecção, com os croupiers do Cassino de Monte Carlo, que afirmava ter frequentado muito, conseguia dominar a sua excitação senão insuficientemente.
     
     Também Hans Castorp jogava alto, bem como a Kleefeld e Mme. Chauchat. Do vinte-e um passaram, sucessivamente, ao tours, ao chemin de fer, ao campista e à perigosa différence. Revezavam-se arrebatamentos de exultação e de desespero, explosões de cólera e gargalhadas histéricas, tudo isso provocado pelo estímulo que a sorte falaz exercia sobre os nervos; e essas manifestações eram sérias e sinceras – não teriam sido diferentes se se tratasse de vicissitudes da vida real.
     Mas não eram somente – e nem sequer em primeiro lugar – o jogo e o vinho os fatores que produziam a tensão psíquica dessa roda, as faces quentes, a dilatação das pupilas nos olhos brilhantes, ou que davam origem àquilo que poderia ser definido como a dedicação esforçada do pequeno grupo, a respiração embargada, a concentração quase dolorida no que trazia o momento. Em realidade, isso se devia à influência de uma individualidade soberana que se encontrava entre os presentes, à “personalidade” que os dominava, a Mynheer Peeperkorn, que mantinha as rédeas na sua mão gesticulante e fazia sentir a todos o feitiço dessa hora, pelo espetáculo da sua grandiosa fisionomia, pelo olhar apagado sob o drapejamento monumental da fronte, pela sua fala e pela mímica impressionante. Que dizia ele? Coisas pouquíssimo claras, e que se tornavam tanto menos distintas quanto mais bebia. Mas o grupo estava suspenso de seus lábios, fitava, sorrindo, o círculo que seu indicador formava com o polegar, é a cujo lado se eriçavam, pontudos como lanças, os outros dedos, enquanto o rosto majestoso efetuava uma ação altamente expressiva. Sem resistência, todos se submetiam a uma servidão sentimental que deixava longe os limites de paixão abnegada que essa gente se impunha em tempos normais, e ultrapassava as forças de alguns. A Srª. Magnus, ao menos, começou a sentir-se mal. Esteve a ponto de desmaiar, mas recusou obstinadamente subir ao quarto e contentou-se com a chaise longue, onde lhe puseram um guardanapo molhado sobre a testa. Mas, depois de ter descansado um pouco, voltou a fazer parte da roda.
     Peeperkorn teve a ideia de atribuir o seu desfalecimento a uma alimentação insuficiente. Com o indicador erguido proferia palavras significativamente abruptas nesse sentido. Era preciso comer, comer copiosamente – assim deu a entender – para ser capaz de satisfazer as exigências da vida. E logo encomendou mantimentos para a roda, uma refeição composta de carne, fiambre, língua, peito de ganso, assados, salames e presunto. Chegaram travessas cheias de suculentos quitutes, guarnecidos de bolinhas de manteiga, de rabanetes e de salsa, a ponto de se assemelhar a exuberantes canteiros de flores. Apesar de que se fizesse muita honra aos pratos, não obstante o jantar precedente cuja abundância é escusado mencionar, Mynheer Peeperkorn declarou, depois de ter provado alguns bocados, que essas coisas não passavam de “frioleiras”, e isso com uma cólera que documentava o caráter pavorosamente imprevisível da sua natureza de soberano. Chegou até a enfurecer-se quando alguém se atreveu a defender a refeição. A cabeça imponente quase explodia de raiva, enquanto Peeperkorn, com o punho cerrado, dava um murro na mesa. Gritou que tudo isso era uma “grande droga”, com o resultado de os comensais emudecerem constrangidos, uma vez que ele, como anfitrião, devia ter o direito de julgar aquilo que oferecia e pagava.
     Mas essa ira, por inexplicável que possa parecer, condizia perfeitamente com a fisionomia do holandês, como Hans Castorp, mais do que ninguém, teve de reconhecer. Não o desfigurava nem diminuía de modo algum. Na sua incompreensibilidade, que pessoa alguma ousava nem intimamente relacionar com as quantidades de vinho que ele acabara de ingerir, não deixava de revelar grandeza e majestade, de maneira que todos se inclinaram diante dele e evitaram servir-se mais uma vez dos frios. Foi Mme. Chauchat quem tranquilizou o companheiro de viagem. Acariciou-lhe a larga mão de capitão, que depois do murro repousava na mesa, e sugeriu em voz meiga que talvez se pedisse outra coisa, um prato quente, se assim lhe agradasse, e se fosse possível obtê-lo do chefe de cozinha a essa hora.– Minha filha – disse Peeperkorn – muito bem. – E sem nenhum esforço, cheio de dignidade, passou da fúria desenfreada para um estado de moderação. Beijou a mão de Clávdia. Encomendou omeletes para si próprio e para os seus convidados, uma boa omelette aux fines herbes, para que se pudessem satisfazer as exigências da vida. E junto com o pedido mandou à cozinha uma nota de cem francos, a fim de determinar o pessoal a fazer serão.
     Seu bom humor ressuscitou inteiramente, quando apareceram diversas travessas com a fumegante iguaria, amarela qual um canário e salpicada de verde, impregnando o recinto com o cheiro suave e morno de ovos e manteiga. Os comensais serviram-se, ao mesmo tempo que Peeperkorn, e sob a sua vigilância jovial. Em frases confusas e com gestos irresistíveis obrigou todos a saborear com atenção e até com fervor essa dádiva de Deus. Fê-la acompanhar de genebra holandesa, uma rodada de cálices cheios, e insistiu em que ninguém deixasse de sorver com intensa devoção o líquido claro, do qual se desprendia um olor sadio de trigo com um leve toque de zimbro.
     Hans Castorp fumava. Também Mme. Chauchat servia-se de cigarros de ponta de papelão, guardados numa caixa russa, de verniz, ornada de uma tróica em plena corrida, e que para a sua maior comodidade pusera na mesa diante de si. Peeperkorn, embora não censurasse os seus vizinhos por se entregarem a esse prazer, não fumava nunca. Pelo que se podia deduzir das suas explanações, o consumo do tabaco já fazia parte de gozos por demais refinados, cujo cultivo representava um agravo à majestade das dádivas simples da vida, dessas dádivas e funções que a nossa sensibilidade mal e mal conseguia apreciar devidamente. 

– Meu caro jovem! – disse a Hans Castorp, fascinando-o com o olhar apagado e o gesto imperioso. – Meu caro jovem, o que é simples, o que é sagrado... Bem, o senhor me compreende. Uma garrafa de vinho, um prato fumegante de ovos, um cálice de trigo puro... Dediquemo-nos a isso em primeiro lugar e desfrutemo-lo, esgotemos o que nos oferece e façamos-lhe a honra a que tem direito, antes de... Absolutamente, meu prezado senhor! Basta! Encontrei pessoas, homens e mulheres, cocainômanos, fumadores de haxixe, morfinômanos... Bem, meu amigo. Pois não! Se assim quiserem... Não devemos julgar. Mas àquelas coisas que merecem a primazia, as coisas singelas, grandes, que têm sua origem em Deus, essa gente lhes ficava... Chega, meu amigo. Condenados! Reprovados! Ficava devendo tudo! Meu caro jovem, não importa como se chama... Sim, eu já sabia o seu nome, mas esqueci-me dele... A perversidade não consiste nem na Cocaína nem no ópio, nem no vício em si. O pecado imperdoável reside...

     Estacou. Alto e espadaúdo, voltando-se para o vizinho, persistiu num silêncio poderoso e expressivo, que reclamava compreensão. Tinha o indicador levantado; a boca entreabria-se, irregular e gretada, sob o lábio superior desnudo, rubro e um tanto arranhado pela navalha; o drapejamento linear da vasta fronte emoldurada de labaredas brancas estava franzido com esforço; os olhinhos sem cor definível achavam-se dilatados, e Hans Castorp divisou neles um quê de horror que Peeperkorn experimentava em face do crime, do grave pecado, do irremissível fiasco a que acabava de aludir, e cuja extensão monstruosa todos deviam perceber, obedecendo à ordem silenciosa que lhes dava com toda a força fascinante da sua personalidade soberana, ainda que indistinta... “É um horror objetivo”, pensou Hans Castorp, “porém mesclado de um elemento particular, de um pavor que se apossou desse homem dominador.” Tratava-se mesmo de medo, não de um medo insignificante e pequeno, senão de um pavor pânico que ali parecia bruxulear por alguns instantes. Hans Castorp era, por índole, demasiado reverencioso – não obstante todos os motivos que poderiam originar uma atitude hostil da sua parte contra o majestoso companheiro de viagem de Mme. Chauchat – para que essa observação deixasse de comovê-lo.
     Baixou os olhos e fez que sim, para dar ao seu augusto vizinho a satisfação de sentir-se compreendido. 

– Acho que isso é certo – disse. – Pode ser um pecado, e um sinal de insuficiência, abandonar-se a prazeres refinados, sem fazer justiça às dádivas simples e naturais da vida, que são grandes e sagradas. Tal é a opinião do senhor, Mynheer Peeperkorn, se o compreendi bem. Embora essa ideia nunca me tenha ocorrido, aprovo-a sinceramente, desde o momento em que o senhor chamou a minha atenção sobre ela. Pode ser que sejam muito raras as ocasiões em que essas dádivas saudáveis e singelas da vida recebam a plenitude das honras que lhes são devidas. Certamente a maioria das pessoas é por demais negligente, distraída, irresponsável e gasta para lhes prestar essas honras, penso eu...
 
     O potentado pareceu muito contente. – Meu caro jovem! – exclamou. – Ótimo. Queira permitir... Não falemos mais nisso. Peço-lhe que beba comigo, que esvazie a sua taça na minha companhia, com os braços enlaçados. Isso não quer dizer que já lhe ofereço o “tu” fraternal... Estive a ponto de fazê-lo; verifiquei, porém, que esse ato seria um pouco precipitado. Vou provavelmente, dentro de um tempo não muito longo... Conte com isso. Mas se o senhor o desejar e insistir em que nós dois imediatamente...
     Hans Castorp concordou com o adiamento sugerido por Peeperkorn. 

– Muito bem, meu filho. Muito bem, camarada. Insuficiência? Ótimo! Ótimo e também horrível. Irresponsável? Excelente! Dádivas? Não estou de acordo. Exigências! Exigências sagradas, femininas, que a vida faz à honra e ao vigor masculino.

     Hans Castorp não pôde esquivar-se à súbita percepção de que Peeperkorn estava totalmente embriagado. Mas também o seu inebriamento não era nem vil nem vergonhoso, não se manifestava como um estado de humilhação, senão que se associava à majestade da sua natureza, formando um fenômeno grandioso que impunha respeito. “O próprio Baco”, pensou Hans Castorp, “apoiava-se nos seus companheiros, quando estava bêbado, sem detrimento da sua divindade. É sumamente importante saber quem está embriagado, se é uma personalidade ou um pobre-diabo.” E o jovem evitou, no seu íntimo, diminuir o respeito que lhe inspirava a esmagadora figura do companheiro de viagem, cujos gestos esmerados se haviam tornado vagos e cuja língua balbuciava. 

– Irmão! – disse Peeperkorn, presa de uma embriaguez livre e altiva. Atirou para trás o corpo potente, e estendendo o braço por sobre a mesa, golpeou-a com o punho frouxamente cerrado. – Está projetado... Projetado para breve, embora a ponderação, por enquanto... Bem, basta! A vida, meu caro jovem, é uma mulher, uma mulher estatelada, com os seios exuberantes e apertados, com o ventre amplo e macio entre os quadris salientes, com braços delgados, coxas opulentas e olhos semicerrados, uma mulher que nos desafia magnífica e zombeteiramente e reivindica todas as energias da nossa virilidade, que se deve confirmar ou perecer perante ela... Perecer, jovem! O senhor percebe o que isso significaria? A derrota do sentimento em face da vida, eis o que é a insuficiência para a qual não há nem perdão, nem compaixão, nem dignidade, mas que é inexorável e sardonicamente reprovada, liquidada – compreende, jovem? – e vomitada... Ignomínia e desonra são palavras brandas em comparação com essa ruína e bancarrota, com essa pavorosa vergonha. Ela é o ponto final, o desespero do inferno, o fim do mundo...

continua pág 371...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Capítulo VII
“Vingt et un” (b)
“Vingt et un” (c)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

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