Elias Canetti
MALTA E HISTÓRIA
Os Suíços
Um Estado cuja coesão nacional ninguém discute é a Suíça. O
patriotismo dos suíços é maior do que o de muitos povos falantes de
uma única e mesma língua. As quatro línguas, a variedade de cantões, sua
estrutura social diversa, o contraste das religiões, cujas guerras que
travaram entre si povoam ainda a memória histórica — nada disso logra
dani car seriamente a autoconsciência nacional dos suíços. Mas
certamente eles têm em comum um símbolo de massa que paira desde
sempre diante dos olhos de todos e é tão inabalável quanto o de
nenhum outro povo: as montanhas.
De todas as partes, o suíço vê os cumes de suas montanhas. Vista,
porém, de alguns pontos, sua série afigura-se mais completa. O
sentimento de que dali se podem ver todas as montanhas reunidas
confere a esses pontos algo de sagrado. Às vezes — em ns de tarde que
não se podem antever e sobre os quais o homem não exerce nenhuma
influência —, as montanhas começam a cintilar: essa é sua consagração
suprema. O difícil acesso a elas, bem como sua dureza, infundem
segurança nos suíços. Apartadas no alto de seus cumes, nos sopés elas se
apresentam vinculadas qual um único e gigantesco corpo. São, pois, um
corpo, e esse corpo é o próprio país.
Os planos de defesa dos suíços ao longo das duas últimas guerras
exprimem de forma notável essa equiparação da nação com os Alpes.
Em caso de um ataque, todas as terras férteis, todas as cidades e todos os
locais de produção teriam de ser evacuados. O exército recuaria para o
interior da própria cadeia de montanhas, combatendo somente ali. O
povo e a terra teriam sido sacrificados, mas o exército teria prosseguido
representando a Suíça, e o símbolo de massa ter-se-ia então
transformado no próprio país.
O que os suíços têm ali é um dique muito particular. Não precisam
erguê-lo eles próprios, como acontece com os holandeses. Não o
constroem nem o demolem; mar algum revolve-se em sua direção. Suas
montanhas estão ali: eles têm apenas de conhecê-las bem. Escalam e
visitam cada um de seus recantos. Elas possuem a força de um ímã,
atraindo pessoas de todas as partes que, admirando-as e explorando-as,
imitam os suíços. Os alpinistas das nações mais distantes são como
suíços devotados; após breve e periódico serviço nas montanhas, seus
exércitos, espalhados pelo mundo todo, mantêm vivo o prestígio da
Suíça. Valeria a pena investigar em que medida eles contribuíram
também na prática para a preservação da independência da Suíça.
continua página 261...
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht
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Leia também:
Massa e Poder - Malta e História: Os Suíços
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994.
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) e O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de Marrakech, Festa sob as bombas e Sobre a morte.
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Título original Masse und Macht
"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."
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