quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Eduardo Galeano: As veias abertas da América Latina - Primeira Parte: Ruínas de Potosí: A Semana Santa dos Índios Termina sem Ressurreição[10]

A Pobreza do Homem como resultado da riqueza da terra

PRIMEIRA PARTE 

Febre do ouro, febre da prata

     10. A Semana Santa dos Índios Termina sem Ressurreição
          No princípio de nosso século, os donos dos pongos, índios dedicados ao serviço doméstico, ainda os alugavam, oferecendo-os pelos jornais de La Paz.
     Até a revolução de 1952, que devolveu aos índios bolivianos o pisoteado direito à dignidade, os pongos dormiam ao lado do cachorro e comiam as sobras da comida dele, e se curvavam para dirigir a palavra a qualquer um de pele branca. Os indígenas tinham sido bestas de carga para levar nos ombros a bagagem dos conquistadores: as cavalgaduras eram escassas. Em nossos dias, contudo, ainda podem ser vistos, em todo o altiplano andino, carregadores aimarás e quíchuas a carregar fardos até com os dentes, em troca de um pão seco. A pneumoconiose tinha sido a primeira enfermidade profissional da América; hoje, quando os mineiros bolivianos completam 35 anos de idade, já seus pulmões se negam a continuar funcionando: o implacável pó de sílica impregna a pele do mineiro, vinca-lhe o rosto e as mãos, aniquila seus sentidos de olfato e paladar, conquista-lhe os pulmões, endurece-os e por fim o mata.
     Os turistas adoram fotografar os indígenas do altiplano vestidos com suas roupas típicas. Ignoram, por certo, que a atual vestimenta indígena foi imposta por Carlos III em fins do século XVIII. Os trajes femininos que os espanhóis obrigaram as índias a usar eram cópias dos vestidos regionais das lavradoras estremenhas, andaluzas e bascas, e outro tanto ocorre com o penteado das índias, repartido ao meio, imposto pelo vice-rei Toledo. O mesmo não ocorre com o consumo de coca, que não nasceu com os espanhóis: já existia no tempo dos incas. A coca, no entanto, era distribuída com parcimônia; o governo incaico a monopolizava e só permitia seu uso para fins rituais ou para o duro trabalho nas minas. Os espanhóis estimularam intensamente o consumo da coca. Era um esplêndido negócio. No século XVI, em Potosí, gastava-se tanto em roupas europeias quanto em coca para os oprimidos. Em Cuzco, 400 mercadores espanhóis viviam do tráfico de coca; nas minas de prata de Potosí entravam anualmente 100 mil cestos com 1 milhão de quilos de folhas de coca. A igreja arrecadava impostos da droga. O inca Garcilaso de la Vega nos conta, em seus “comentários reais”, que a maior parte da renda do bispo, dos cônegos e demais ministros da igreja de Cuzco provinha dos dízimos sobre a coca, e que o transporte e a venda deste produto enriqueciam muitos espanhóis. Com as escassas moedas que obtinham em troca do trabalho, os índios compravam folhas de coca em vez de comida: mastigando-as, podiam suportar melhor as mortais tarefas impostas, ainda que ao preço de abreviar a vida. Além da coca, os indígenas consumiam aguardente, e seus amos se queixavam da propagação de “vícios maléficos”. Nesta altura do século XXI, os indígenas de Potosí continuam mascando coca para matar a fome e se matar, e continuam queimando as tripas com álcool puro. São as estéreis desforras dos condenados. Nas minas bolivianas, os operários ainda chamam de mita o seu salário.
      Desterrados em sua própria terra, condenados ao êxodo eterno, os indígenas da América Latina foram empurrados para as zonas mais pobres, as montanhas áridas ou o fundo dos desertos, à medida que avançava a fronteira da civilização dominante. Os índios padeceram e padecem síntese do drama de toda a América Latina – a maldição de sua própria riqueza. Quando se descobriram os areais de ouro do rio Bluefields, na Nicarágua, os índios carcas foram rapidamente desalojados de suas terras ribeirinhas, e esta é também a história dos índios de todos os vales férteis e de todos os subsolos ricos do rio Bravo para o sul. As matanças de indígenas, que começaram com Colombo, nunca cessaram. No Uruguai e na Patagônia argentina, os índios foram exterminados no século passado por tropas que os buscaram e os encurralaram nos matos ou no deserto, para que não estorvassem o avanço organizado dos latifundiários de gado [1]. Os índios yaquis, do estado mexicano de Sonora, foram submergidos num banho de sangue para que suas terras, ricas de recursos minerais e férteis para o cultivo, pudessem ser vendidas sem inconvenientes a diversos capitalistas norte-americanos. Os sobreviventes foram deportados para as plantações de Yucatán. Assim, a península de Yucatán se converteu não só no cemitério dos indígenas maias que tinham sido seus donos, como também na tumba dos índios yaquis, que vinham de longe: no princípio do século, os 50 reis do sisal dispunham de mais de 100 mil escravos indígenas em suas plantações. Apesar de sua fortaleza física – é uma raça de formosos gigantes –, dois terços dos yaquis morreram durante o primeiro ano de trabalho escravo [2]. Em nossos dias, a fibra de sisal só pode competir com seus substitutos sintéticos graças ao nível de vida marcadamente baixo de seus operários. As coisas mudaram, claro, mas não tanto quanto se pensa, ao menos para os indígenas de Yucatán: “As condições de vida desses trabalhadores muito se assemelha ao trabalho escravo”, diz o professor Arturo Bonilla Sánchez [3]. Nas encostas andinas próximas de Bogotá, o peão indígena é obrigado a cumprir jornadas gratuitas de trabalho para que o fazendeiro lhe permita cultivar, em noites enluaradas, sua própria parcela: “Os antepassados desse índio cultivavam livremente, sem contrair dívidas, o solo rico do planalto, que a ninguém pertencia. Ele trabalha de graça para assegurar o direito de cultivar a pobre montanha” [4].
     Atualmente, não se salvam nem sequer os indígenas que vivem isolados nos esconsos da selva. No princípio do século, ainda sobreviviam 230 tribos no Brasil; desde então desapareceram 90, apagadas do planeta por obra e graça das armas de fogo e dos micróbios. Violência e doença, batedores da civilização: o contato com o homem branco, para o indígena, continua sendo o contato com a morte. As disposições legais que, desde 1537, protegem os índios do Brasil, voltaram-se contra eles. De acordo com os textos de todas as constituições brasileiras, são “os primitivos e naturais senhores” das terras que ocupam. Ocorre que, quanto mais ricas são essas terras virgens, mais grave se torna a ameaça que pende sobre suas vidas; a generosidade da natureza os condena à espoliação e ao crime.
     A caça aos índios foi desencadeada, nos últimos anos, com furiosa crueldade; a maior floresta do mundo, gigantesco espaço tropical aberto à lenda e à aventura, converteu-se, simultaneamente, no cenário de um novo sonho americano. Em ritmo de conquista, homens e empresas dos Estados Unidos avançaram sobre a Amazônia como se fosse um novo Far West. Essa invasão norte americana incendiou como nunca a cobiça dos aventureiros brasileiros. Os índios morrem sem deixar rastro e as terras são vendidas em dólares aos novos interessados. O ouro e outros minerais de valor, a madeira e a borracha, riquezas cujo valor comercial os nativos ignoram, aparecem vinculadas aos resultados de cada uma das escassas investigações que se procederam. Sabe-se que os indígenas foram metralhados desde helicópteros e pequenos aviões, que lhes foi inoculado o vírus da varíola, que foi lançado dinamite sobre suas aldeias e que lhes foram presenteados açúcar misturado com estricnina e sal com arsênico. O próprio diretor do Serviço de Proteção aos Índios, designado pela ditadura de Castelo Branco para sanear a administração, foi acusado, com provas, de cometer 42 tipos diferentes de crimes contra os índios. O escândalo veio a público em 1968.
     A sociedade indígena de nossos dias não existe no vazio, fora do marco geral da economia latino-americana. É verdade que há tribos ainda encerradas na floresta amazônica e comunidades isoladas do mundo no altiplano andino e em outras regiões, mas no geral os indígenas estão incorporados ao sistema de produção e ao mercado de consumo, embora de forma indireta. Participam, como vítimas, de uma ordem econômico-social em que desempenham o duro papel de os mais explorados entre os explorados. Compram e vendem boa parte das escassas coisas que consomem e produzem, através de intermediários poderosos e vorazes que cobram muito e pagam pouco; são diaristas nas plantações, a mão de obra mais barata, e soldados nas montanhas; gastam seus dias trabalhando para o mercado mundial ou lutando a serviço de seus vencedores. Em países como a Guatemala, por exemplo, eles são o eixo da vida econômica nacional: ano após ano, ciclicamente, abandonam suas terras sagradas, terras altas, minifúndios do tamanho de um cadáver, para emprestar 200 mil braços às colheitas de café, algodão e açúcar nas terras baixas. Os empreiteiros os transportam em caminhões, como gado, e nem sempre a necessidade decide: às vezes decide a aguardente. Os empreiteiros contratam uma orquestra de marimbas e deixam o álcool correr à larga: quando o índio desperta da borracheira, já o acompanham as dívidas. Ele vai pagá-las em terras quentes que não conhece, e dali regressará ao cabo de alguns meses, talvez com alguns centavos no bolso, talvez com tuberculose ou impaludismo. O exército colabora com eficácia na tarefa de convencer os remissos [5].
     A expropriação dos indígenas – usurpação de suas terras e de sua força de trabalho – foi e é simétrica ao desprezo racial, que por sua vez se alimenta da objetiva degradação das civilizações destruídas pela conquista. Os efeitos da conquista e todo o ulterior e longo tempo de humilhações despedaçaram a identidade cultural e social que os indígenas tinham alcançado. No entanto, essa identidade triturada é a única que persiste na Guatemala [6]. Persiste na tragédia. Na Semana Santa, as procissões dos herdeiros dos maias apresentam terríveis exibições de masoquismo coletivo. Eles arrastam pesadas cruzes, participam passo a passo da flagelação durante a interminável subida do Gólgota; com gemidos de dor, converte-se Sua morte e Seu sepultamento no culto da própria morte e do próprio sepultamento, a aniquilação da formosa vida remota. A Semana Santa dos índios guatemaltecos termina sem ressurreição.

Primeira Parte: Ruínas de Potosí: A Semana Santa dos Índios Termina sem Ressurreição[10]
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[1] Os últimos charruas, que até 1832 sobreviviam furtando novilhos nas campinas selvagens do norte do Uruguai, foram traídos pelo presidente Fructuoso Rivera. Alijados da mata cerrada que lhes dava proteção, desmontados e desarmados com falsas promessas de amizade, foram abatidos num paradouro chamado Boca del Tigre: “Os clarins ordenaram a degola”, conta o escritor Eduardo Acevedo Díaz (jornal La Época, 19 de agosto de 1890), “a horda se revolveu desesperada, caindo um atrás do outro seus jovens guerreiros, como touros feridos na nuca”. Vários caciques morreram. Os poucos índios que conseguiram furar o cerco de fogo vingaram-se depois. Perseguidos pelo irmão de Rivera, armaram-lhe uma emboscada e o crivaram de lanças juntamente com seus soldados. O cacique Sepe “cobriu com alguns nervos do cadáver a ponta de sua lança”.
Na Patagônia argentina, em fins do século, os soldados recebiam gratificações pela apresentação de cada par de testículos. O romance de David Viñas Los dueños de la tierra (Buenos Aires, 1959) começa com a caça aos índios: “Porque matar era como violar alguém. Algo bom. Agradava: era preciso correr, gritava se, suava-se e depois se sentia fome (...). Os disparos agora se espaçavam. Certamente algum corpo de índio tinha restado enforquilhado num daqueles buracos, com uma mancha negra entre as coxas”.
[2] TURNER, John Kenneth. México bárbaro. México, 1967.
[3] BONILLA SÁNCHEZ, Arturo. “Un problema que se agrava: la subocupación rural”. In: Vários autores. Neolatifundismo y explotación. De Emiliano Zapata a Anderson Clayton & Co. México, 1968.
[4] DUMONT, René. Tierras vivas. Problemas de la reforma agraria en el mundo. México, 1963.
[5] GALEANO, Eduardo. Guatemala, país ocupado. México, 1967.
[6] A decomposição religiosa dos maias-quichés começou com a colônia. A religião católica só assimilou alguns aspectos mágicos e totêmicos da religião maia, na vã tentativa de submeter a fé indígena à ideologia dos conquistadores. O esmagamento da cultura original abriu passo ao sincretismo, e assim são recolhidos na atualidade, por exemplo, testemunhos da involução relativamente àquela evolução alcançada: “Dom Vulcão necessita de carne humana bem tostadinha”. BÖCKLER, Carlos Guzmán & HERBERT, Jean-Loup. Guatemala: una interpretación histórico-social. México, 1970.

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