quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Thomas Mann - A Montanha Mágica: “Vingt et un” (c)

Thomas Mann

A Montanha Mágica
 
Capítulo VII
“Vingt et un” 

continuando...
..
     Enquanto falava, o holandês lançara mais e mais para trás o poderoso corpo. Ao mesmo tempo, a majestosa cabeça inclinava-se para o peito, como se ele estivesse a ponto de adormecer. Ao pronunciar a última palavra, porém, deixou o punho frouxo recair sobre a mesa num murro vigoroso, de maneira que o frágil Hans Castorp, nervoso devido ao jogo, ao vinho e à peculiaridade das demais circunstâncias, sobressaltou-se e fixou no potentado um olhar respeitoso e espantado, “Fim do mundo”, como essas palavras se harmonizavam com o rosto de Peeperkorn! Hans Castorp não se recordava de as ter ouvido, fora, talvez, das aulas da religião, e isso não era por acaso, segundo pensava, pois, a quem dentre todas as pessoas que conhecia cabia pronunciar tal palavra fulminante? Quem, para formular a pergunta com mais acerto, tinha a necessária envergadura? Seria possível que o pequeno Naphta se servisse dela de vez em quando; mas isso não passaria de uma usurpação e de uma bravata agressiva, ao passo que na boca de Peeperkorn a locução atroadora adquiria a plenitude do seu poder esmagador, vibrava com o clangor de trombetas e alcançava a grandiosidade bíblica. “Cruzes, uma personalidade!”, sentiu o jovem pela centésima vez. “Travei conhecimento com uma personalidade e ela é o companheiro de viagem de Clávdia.” Meio tonto, também ele próprio, fazia girar a taça em cima da mesa. Tinha a outra mão no bolso da calça e fechava um olho para que não entrasse a fumaça do cigarro que lhe pendia no canto da boca. Não seria melhor permanecer calado, depois dessas palavras terem sido proferidas por uma pessoa que tinha vocação para atroá-las? Para que fazer ouvir a sua voz débil? Mas ele estava acostumado a discussões por seus dois educadores democratas – ambos democratas por natureza, se bem que um não gostasse de sê-lo. Assim, se deixou arrastar e acrescentar um daqueles seus comentários ingênuos, e disse: 

– Suas observações, Mynheer Peeperkorn – (Que expressão era essa? Porventura se faziam “observações” sobre o fim do mundo?) –, suas observações reconduziram os meus pensamentos até isso que o senhor acaba de dizer a respeito do vício, isto é, que constitui um insulto às dádivas simples e, segundo disse o senhor, sagradas, ou como eu prefiro dizer, às dádivas clássicas da vida, as dádivas de vulto, em certo sentido, antepor-lhes as dádivas posteriores, requintadas, os refinamentos aos quais as pessoas “se abandonam”, para repetir uma expressão usada por um de nós dois, ao passo que “se consagram” ou “fazem honra” àquelas grandes dádivas. Mas nesse ponto, precisamente, me parece residir a desculpa – o senhor me perdoe, mas a minha natureza é propensa a desculpas, se bem que elas careçam de envergadura, como sinto nitidamente –, a desculpa do vício, porque este, conforme verificamos, se baseia na insuficiência. O senhor pronunciou sobre os horrores da insuficiência palavras de tamanho peso que me deixou sinceramente emocionado. No entanto, acho eu que a pessoa viciada absolutamente não se mostra insensível a esses horrores, mas sim os reconhece plenamente, uma vez que o fracasso do seu sentimento em face das dádivas clássicas da vida a impele em direção ao vício. De modo que nisso não há, ou não precisa haver, nenhuma ofensa à vida, desde que essa atitude pode, com a mesma razão, ser considerada como uma homenagem à vida, tendo-se em conta que os refinamentos são meios de embriagar-se e de exaltar-se, stimulantia, como se costuma dizer, usados para o apoio e a elevação da sensibilidade, de maneira que, apesar de tudo, a vida é a sua finalidade e o seu objetivo, o amor ao sentimento, o desejo de sentimento que experimenta a insuficiência... Parece-me...
     Que é que estava dizendo? Não bastava aquela insolência democrática de empregar as palavras “um de nós dois” ao referir-se de um lado a uma personalidade e do outro a si próprio? Vinha-lhe a coragem necessária para tal ousadia de um passado que punha em dúvida certos direitos de posse? Que lhe dera na veneta quando se metia nessa análise igualmente petulante do “vício”? A única coisa que agora lhe restava fazer era sair do apuro, pois tornou-se evidente que acabava de desencadear uma tempestade terrível.
     Enquanto o seu convidado falava, Mynheer Peeperkorn tinha permanecido na sua posição anterior, com o corpo atirado para trás e a cabeça curvada sobre o peito, de modo que não se podia saber se as palavras de Hans Castorp lhe penetravam na consciência. A essa altura, porém, pouco a pouco, quanto mais se confundia o jovem, mais se empertigava o holandês, afastando-se do espaldar e aparecendo em toda a sua grandeza; ao mesmo tempo, a majestosa cabeça tornava-se rubra e congestionada; subiam, entesando-se, os arabescos da fronte; os olhinhos dilatavam-se numa ameaça indistinta. Que estava se preparando? Um acesso de raiva parecia a ponto de se desencadear, comparado com o qual o anterior não passava de um ligeiro agastamento. O lábio inferior de Mynheer comprimia-se contra o superior numa expressão de ira violenta, fazendo descer os cantos da boca e avançar o queixo. Lentamente, o braço direito ia se distanciando da mesa; levantou-se até a altura da cabeça, com o punho cerrado, tomando um magnífico impulso para o golpe que aniquilaria o palrador democrático. Tomado de susto, mas também cheio de um fantástico prazer devido a essa imagem expressiva da indignação de um rei, este apenas era capaz de ocultar o medo e a vontade de fugir que sentia. 

– Sem dúvida me expressei mal – apressou-se a dizer conciliadoramente. – Tudo isso depende da envergadura e de nada mais. Não se pode qualificar de vício o que tem grandeza. O vício não a tem nunca, nem tampouco os prazeres refinados. Mas em todos os tempos, o homem ávido de sentimentos tem disposto de um recurso, de um meio de se exaltar e embriagar, que faz parte das dádivas clássicas da vida, e cujo caráter é simples, sagrado, e por conseguinte oposto ao vício. É um recurso de grande envergadura, por assim dizer. Falo do vinho, um presente divino feito aos homens, segundo já afirmavam os povos humanísticos da Antiguidade, a invenção filantrópica de um deus, relacionada com a própria civilização. Não se diz que graças à arte de plantar a vinha e de se espremer a uva os homens abandonaram o estado de selvageria e se civilizaram? Ainda hoje, os povos em cujos países há parreiras são considerados mais civilizados, ou pelo menos julga-se assim, do que aqueles que não têm vinho, os cimérios; e isso me parece realmente notável, porque significa que a civilização, em vez de ser um assunto do intelecto e da sobriedade ponderada, depende do entusiasmo, da ebriedade e da sensação de deleite. Não é essa também a sua opinião, se posso tomar a liberdade de lhe fazer a pergunta?

     Um sabido, esse Hans Castorp! Ou, como o Sr. Settembrini o formulara com certo requinte literário, um “maganão”. Imprudente e até atrevido no contato com “personalidades”, e ao mesmo tempo hábil, quando se tratava de se livrar da “encrenca”. Agora, numa situação complicadíssima, acabava de improvisar, com muita graça, um discurso em homenagem ao alcoolismo; além disso mencionara, de passagem, a “civilização”, da qual, na verdade, pouco se notava na primitividade formidável da atitude de Mynheer Peeperkorn; e finalmente conseguira abrandar e tornar inoportuna essa atitude aterradora, ao fazer uma pergunta à qual era impossível responder com o punho erguido. E de fato, o holandês suavizou o seu gesto de rancor antediluviano. Descendo lentamente, o braço se aproximava da mesa; a cabeça se descongestionava. “Tiveste sorte”, lia-se na sua fisionomia, que mostrava apenas restos da ameaça anterior. Dissipara-se a tempestade, e para liquidar o caso, interveio Mme. Chauchat, chamando a atenção do seu companheiro de viagem sobre o declínio da animação que se verificava entre os comensais. 

– Meu amigo, você se esquece dos seus convidados – disse em francês. – Está se dedicando com demasiada exclusividade a esse senhor, por mais importantes que sejam os assuntos a tratar. Mas nesse meio tempo o jogo parou quase completamente, e receio que os outros se aborreçam. Quer que encerremos a sessão?

     Imediatamente Peeperkorn voltou-se para a roda dos convidados. Com efeito, a desmoralização, a letargia, o marasmo, haviam-se alastrado entre eles, que se encontravam entregues às mais diferentes ocupações, como uma classe de colegiais quando falta a autoridade do professor. Alguns estavam a ponto de adormecer. Peeperkorn não tardou a retomar as rédeas que lhe tinham escapado da mão. – Senhoras e senhores! – gritou com o indicador levantado, e esse dedo pontudo qual uma lança parecia uma espada que desse um sinal, ou uma bandeira. Seu apelo, por sua vez, recordava o “Siga-me quem não for covarde!” de um caudilho que fizesse parar um princípio de debandada. A intervenção da sua personalidade teve o efeito imediato de unir e de reanimar o grupo. Os comensais reagiram. Compuseram as fisionomias que antes estavam frouxas. Entre sorrisos e acenos, fitaram os olhos do anfitrião, esses olhos apagados sob as rugas lineares da fronte, que davam a seu rosto a aparência de um ídolo. E o holandês fascinou-os a todos, obrigando-os a se dedicar novamente ao serviço, apenas abaixando a ponta do indicador em direção ao polegar e elevando os demais dedos com as unhas compridas. Com um gesto que ao mesmo tempo protegia e moderava, espalmou as mãos de capitão, enquanto dos lábios doloridos e gretados se desprendiam palavras cuja indistinção e falta de nexo exerciam, graças ao apoio da sua personalidade, uma poderosa influência sobre os espíritos. 

– Senhoras e senhores! Muito bem. A carne, senhoras e senhores, é infelizmente... Basta! Não, permitam-me que... “Fraca”, reza a Escritura. “Fraca”, isto é, propensa a esquivar-se às exigências que... Mas eu apelo à sua... Numa palavra, senhoras e senhores, eu a-pe-lo. Talvez me digam que o sono... Muito bem, senhoras e senhores, ótimo, excelente. Eu amo o sono e honro o. O sono faz parte das... Como o formulou o senhor, meu caro jovem?... das dádivas clássicas da vida, e entre elas ocupa o primeiro, o primeiríssimo... Perdão, senhoras e senhores... O supremo. Queiram, porém, observar e lembrar-se... Getsêmani! “E, tendo tomado consigo Pedro e os dois filhos de Zebedeu... Disse-lhes então: Ficai aqui e velai comigo”. Os senhores se lembram? “Depois foi ter com seus discípulos, e encontrou-os dormindo, e disse a Pedro: Visto isso, não pudestes velar uma hora comigo?” E intenso, senhoras e senhores! Pungente, emocionante! “E foi novamente, e encontrou-os dormindo; porque seus olhos estavam pesados por causa do sono... E disse-lhes: Dormi agora e descansai; eis que está próxima a hora...” Senhoras e senhores, é lancinante, dilacera o coração...

     De fato, todos estavam comovidos e envergonhados até o fundo da alma. O holandês tinha as mãos juntas sobre o peito, por cima do cavanhaque ralo, e inclinava obliquamente a cabeça. Seu olhar apagado turvara-se em face da tristeza solitária e mortal que lhe brotara dos lábios gretados. A Srª. Stöhr soluçava. A Srª. Magnus soltou um profundo suspiro. O Promotor Paravant, na qualidade de representante dos convidados, como uma espécie de delegado, viu-se induzido a dirigir, em voz abafada, algumas palavras ao venerado anfitrião, para garantir-lhe a lealdade de todos os seus vassalos. Devia haver um equívoco. Ninguém estava cansado; todos se sentiam alegres, dispostos, animados, cheios de bom humor e plenamente atentos. Era uma noite tão linda, tão festiva, uma noite simplesmente extraordinária; todos compreendiam isso e tinham a mesma sensação. Ninguém pensava por enquanto em lançar mão daquela dádiva da vida que era o sono. Mynheer Peeperkorn podia contar com os seus convidados em conjunto e com cada um em particular. 

– Perfeitamente! Magnífico! – exclamou Peeperkorn, empertigando-se. Suas mãos se desligaram, separaram-se e subiram. Ficou com os braços abertos, dirigidos para cima, e com as palmas viradas para fora como numa oração pagã. Sua fisionomia grandiosa, que havia poucos instantes ainda vibrara de mágoa gótica, abriu-se, exuberante e jovial. Até mesmo uma covinha de sibarita assomou-lhe subitamente na face. “Eis que está próxima a hora...” E pediu o cardápio. Colocou no nariz um pincenê com aros de chifre, e cuja ponte se erguia na altura da testa. Encomendou champanha, três garrafas de Mumm & Cia., Cordon rouge, très sec, acompanhadas de petits fours, pequenas guloseimas, deliciosas e coniformes, com uma saborosa massa cor de barro, revestida de um glacê de açúcar, recheadas de cremes de chocolate e de pistache, e oferecidas sobre papeizinhos com beiras rendadas. A Srª. Stöhr lambia os dedos ao prová-las. O Sr. Albin, com uma calma displicente, libertou a primeira rolha da sua gaiola de arame e deixou o cogumelo de cortiça desprender-se do gargalo adornado, com o estalo de uma pistola de criança, e saltar até o teto. Em seguida, conforme a tradição elegante, embrulhou a garrafa num guardanapo, antes de despejar o vinho. A nobre espuma molhou o linho das toalhas que cobriam as mesinhas auxiliares. Fizeram tinir as taças, e esvaziaram-nas de um só trago. O estômago sentia-se eletrizado pelas cócegas do líquido gelado e aromático. Os olhos começaram a brilhar. O jogo ficara interrompido, sem que se dessem o trabalho de recolher as cartas e o dinheiro espalhado na mesa. A roda abandonou-se a um deleitoso far niente, mesclado com uma conversação sem nexo, cujos elementos cada um extraía da sua sensibilidade aguçada; elementos sumamente promissores na sua fase primitiva, mas que no caminho à expressão se haviam transformado numa algaravia fragmentária, entaramelada, entre indiscreta e incompreensível, capaz de envergonhar ou enfurecer qualquer pessoa sóbria que a ouvisse. A essa altura, porém, os comensais suportavam na sem nenhuma objeção, visto se acharem todos no mesmo estado. Até a Srª. Magnus tinha as orelhas rubras e alegava sentir como a vida pulsava nas suas veias; afirmação de que o marido parecia gostar pouco. Hermine Kleefeld, recostando-se ao ombro do Sr. Albin, estendia-lhe a taça para que a enchesse de vinho. Peeperkorn dirigia a bacanal com esmerados gestos dos dedos de unhas pontudas. Também providenciou o abastecimento e os reforços. Depois do champanha, mandou trazer café, moca fortíssimo, que vinha novamente acompanhado de “pão” e, para as senhoras, de licores doces, mas picantes, como são apricots brandy, chartreuse, creme de vanille e maraschino. Mais tarde apareceram ainda filés de peixe avinagrado e cerveja, e finalmente chá, de duas espécies, chá chinês e chá de macela, para quem não preferisse conservar-se fiel ao champanha ou aos licores, ou ainda voltar a beber um vinho genuíno. Assim fazia Mynheer, cujo processo de purificação íntima progredira, depois da meia-noite, em direção a um tinto suíço de um bouquet ingênuo, que tomava em companhia de Mme. Chauchat e de Hans Castorp, e do qual emborcava taça após taça, como para saciar uma sede real.

     À uma hora, a sessão festiva ainda se arrastava, prolongada ora pela paralisia plúmbea da embriaguez, ora pelo prazer singular de desperdiçar a noite, ora enfim pela influência da personalidade de Peeperkorn e pelo exemplo infausto de São Pedro e dos seus, cuja fraqueza ninguém queria imitar. De modo geral, o belo sexo parecia menos exposto a tal perigo; pois, ao passo que os homens, corados ou pálidos, bufando, com as pernas esticadas, bebiam apenas mecânica e esporadicamente, sem revelar o verdadeiro entusiasmo no cumprimento do dever, as mulheres mostravam-se mais ativas. Hermine Kleefeld, com os cotovelos desnudos apoiados na mesa e com o rosto fincado entre as mãos, exibiu rindo a brancura dos seus dentes ao cacarejante Ting-Fu, enquanto a Srª. Stöhr, achegando o queixo ao ombro avançado, lançava ao Promotor Paravant olhares faceiros que lhe deviam fomentar a vontade de viver. A Srª. Magnus chegara ao ponto de instalar-se sobre os joelhos do Sr. Albin e de puxá-lo pelas orelhas, o que o Sr. Magnus observava com manifesto alívio. Anton Karlovitch Ferge foi solicitado a contar a história do choque pleural, mas a língua embargada impediu-o de realizar o intento; assim ele confessou francamente o seu fracasso, que os outros unanimemente consideraram motivo para beber mais. Durante alguns instantes, Wehsal verteu lágrimas amargas, que brotavam de certos abismos da miséria, cuja profundeza a sua língua já não estava em condições de desvendar à humanidade; mas, por meio de café e de conhaque, conseguiram endireitá-lo espiritualmente. Os gemidos que se arrancavam de seu peito e o queixo rugoso, trêmulo, inundado de lágrimas despertaram, por outro lado, o mais vivo interesse de Peeperkorn, que, erguendo o polegar e alçando os arabescos da fronte, chamou a atenção de todos sobre o estado de Wehsal.

– Isto é... – disse. – Realmente, isto é... Não, permita-me: sagrado! Seque-lhe o queixo, minha filha! Tome o meu guardanapo! Não! Melhor deixá-lo em paz! Ele mesmo não quer. Senhoras e senhores! Sagrado! Sagrado sob todos os aspectos, no sentido cristão como no pagão! Um fenômeno primevo! Um fenômeno de primeira... de suprema... Não, não, isto é mesmo...

     Essas palavras “Isto é...” e “Isto é mesmo...” formavam o Leitmotiv das explicações e dos comentários que acompanhavam os seus gestos precisos, ainda que estes, com o tempo, tivessem assumido caráter levemente grotesco. Tinha ele um jeito de manter à altura da orelha o anel que o polegar formava com o indicador, e de afastar dele a cabeça inclinada, com uma expressão humorística que despertava sensações iguais àquelas que originaria um sacerdote idoso de um culto estranho, que dançasse diante do altar de sacrifícios, arregaçando a vestimenta com uma graça refinada. Em outra ocasião, refestelando-se em toda a sua grandeza, com os braços a cingir os espaldares das cadeiras vizinhas, obrigou os comensais, para grande perplexidade de todos, a evocar, junto com ele, a visão viva e intensa da manhã, uma gélida e sombria manhã de inverno, com a luz amarela da lâmpada de cabeceira espelhando-se na vidraça, sobre um fundo de ramaria calva, que lá fora se ouriçava na madrugada brumosa, glacial, áspera como o grito das gralhas... Pela descrição sugestiva, soube dar tanta força a esse quadro singelo e cotidiano, que os convidados ficaram todos arrepiados, principalmente quando lhes recordou a água gelada espremida de uma grande esponja sobre a nuca, e que qualificou de sagrada. Tudo isso era apenas uma digressão, um exemplo destinado a ensinar-lhes a atenção em face das coisas da vida, um improviso fantástico, que ele logo abandonou, para novamente devotar a sua fervorosa ênfase e a presença dos seus sentimentos a essa hora noturna, festivamente desenfreada. Mostrou-se apaixonado por tudo quanto era mulher que se achava a seu alcance, sem preferências nem discriminação. Fez à anã declarações tais que o rosto envelhecido, excessivamente grande, da desgraçada criatura se enrugou todo num vasto sorriso. Disse à Srª. Stöhr galanteios de tal calibre que essa mulher, já naturalmente vulgar, avançando ainda mais o ombro, levou a sua costumeira afetação às raias da perfeita loucura. Pediu à Kleefeld lhe desse um beijo na boca ampla e gretada, e perseguiu até a insípida Srª. Magnus – tudo isso sem detrimento da terna dedicação que demonstrava à sua companheira de viagem, cuja mão frequentemente levava aos lábios, com um ardor cavalheiresco. – O vinho... – disse. – As mulheres... Isto é... Isto é mesmo... Permitam-me... Fim do mundo... Getsêmani...  
     Por volta das duas horas espalhou-se o boato de que o “Velho”, quer dizer, o Dr. Behrens, se aproximava a passo acelerado das salas de reunião. No mesmo instante produziu-se grande pânico entre os pensionistas enervados. Cadeiras e baldes de gelo foram derrubados. Os convidados fugiram pela porta da biblioteca. Peeperkorn, tomado de raiva majestosa, ao ver o brusco encerramento da festa, deu com o punho na mesa e gritou: “Escravos medrosos!” por trás do pessoal que se sumia. Mas Hans Castorp e Mme. Chauchat conseguiram que ele se conformasse, até certo ponto, com a ideia de que esse festim, depois de quase seis horas de duração, tinha de terminar, afinal. Também aquiesceu quando lhe relembraram o sagrado regalo do sono, e permitiu que o levassem para a cama. 

– Ampare-me, minha filha! Ampare-me do outro lado, jovem – disse a Mme. Chauchat e a Hans Castorp. E eles ajudaram-no a levantar da cadeira o corpo pesado. Ofereceram-lhe o braço, e escorado por ambos começou a trilhar o caminho que o levaria ao repouso. Caminhava com as pernas abertas, inclinando a enorme cabeça para um dos ombros levantados, e empurrava ora um ora outro dos seus guias devido a seu andar cambaleante. Na realidade era um luxo real que se permitia ao exigir que o pilotassem e apoiassem dessa forma. Se o achasse necessário, provavelmente teria sido capaz de caminhar sozinho. Mas Peeperkorn desdenhou tal esforço, que, em todo caso, só poderia ter o sentido mesquinho e inferior de dissimular pudicamente a sua ebriedade, ao passo que ele, evidentemente, não tinha a mínima vergonha dela, exibindo-a de modo magnífico e exuberante. Dava-lhe um prazer régio, quando aqueles cambaleios dirigiam os seus servidores ora para a direita ora para a esquerda. Ele mesmo disse, enquanto avançavam assim: 
– Meus filhos... Bobagem... Não estamos nem um pouquinho... Se nesse momento... Vocês veriam... Ridículo... 
– Ridículo! – confirmou Hans Castorp. – Não existe a menor dúvida! Tributa-se à dádiva clássica da vida o que se lhe deve, quando se cambaleia dessa forma sem dissimulação, em sua homenagem. Seriamente... Eu também bebi bastante, mas apesar da minha pretensa embriaguez sinto com absoluta clareza a honra especial que me coube por poder conduzir à cama uma autêntica personalidade. Tão fraco é o efeito que a embriaguez exerce sobre mim, cuja envergadura nem sequer pode ser comparada com... 
– Ora, ora, pequeno tagarela – disse Peeperkorn, enquanto, a passo vacilante, o comprimia contra o corrimão da escada, arrastando consigo Mme. Chauchat.

     O rumor de que o conselheiro se aproximava não passava, como se manifestou, de um rebate falso. Talvez tivesse sido posto em circulação pela anã fatigada, na intenção de dar cabo da reunião. Nessas circunstâncias, Peeperkorn estacou e fez menção de voltar para continuar com a bebedeira. Mas de ambos os lados recebeu sugestões em contrário, e assim consentiu em que o pusessem novamente em movimento.
     O criado malaio, aquele homenzinho com gravata branca e sapatos de seda preta, esperava o patrão no corredor, diante da porta do apartamento. Acolheu-o com uma mesura, levando uma das mãos ao peito. 

– Beijem-se! – ordenou Peeperkorn. – Meu caro jovem, dê um beijo de despedida na fronte dessa encantadora mulher! – acrescentou, dirigindo-se a Hans Castorp. – Ela não fará objeções e lhe retribuirá. Façam isso à minha saúde e com a minha licença! – terminou; mas Hans Castorp se negou a executar a ordem. 
– Não, Majestade – disse. – Desculpe, mas não é possível.

     Peeperkorn, encostado ao malaio, alçou os arabescos da fronte e quis saber por que isso não era possível. 

– Porque não posso trocar com a sua companheira de viagem beijos na fronte – explicou Hans Castorp. – Desejo-lhe uma boa noite. Não, isso seria sob todos os aspectos uma grande tolice.

     E como também Mme. Chauchat se encaminhasse à porta do seu quarto, Peeperkorn consentiu em que se afastasse o jovem obstinado. Verdade é que o acompanhou ainda algum tempo com os olhos, tendo a testa franzida. Tamanha surpresa lhe causava essa insubordinação que sua natureza de soberano não estava acostumada a encontrar.

continua pág 376...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Capítulo VII
“Vingt et un” (c)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

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