quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Ensaio sobre o entendimento humano: Seção IV (2)

Ensaio sobre o entendimento humano

David Hume

Seção IV

DÚVIDAS CÉTICAS SOBRE AS OPERAÇÕES DO ENTENDIMENTO 
SEGUNDA PARTE 

     Entretanto, não chegamos ainda a nenhuma resposta satisfatória a respeito da primeira questão proposta. Cada solução gera uma nova questão tão difícil como a precedente e nos conduz a novas investigações. Quando se pergunta: qual é a natureza de todos os nossos raciocínios sobre os fatos? A resposta conveniente parece ser que eles se fundam na relação de causa e efeito. Quando se pergunta: qual é o fundamento de todos os nossos raciocínios e conclusões sobre essa relação? Pode-se replicar numa palavra: a experiência. Mas, se ainda continuarmos com a disposição de esmiuçar o problema e insistirmos: qual é o fundamento de todas as conclusões derivadas da experiência? Esta pergunta implica uma nova questão que pode ser de solução e explicação mais difíceis. Os filósofos que se dão ares de sabedoria superior e suficiência têm uma tarefa difícil quando se defrontam com pessoas com disposições inquisitivas, que os desalojam de todos os esconderijos em que se refugiam, e que estão seguras de levá-los finalmente a um perigoso dilema, O melhor recurso para evitar esta confusão consiste em ter modestas pretensões e descobrir nós mesmos as dificuldades antes que nos sejam objetadas. Desta maneira, faremos de nossa ignorância uma virtude.
     Contentar-me-ei nesta seção com uma tarefa fácil: pretenderei apenas dar uma resposta negativa à questão aqui proposta. Digo, pois, que mesmo depois que temos experiência das operações de causa e de efeito, nossas conclusões desta experiência não estão fundadas sobre raciocínios ou sobre qualquer processo do entendimento. Devemos trata r de explicar e defender esta posição.  
     Certamente, deve-se admitir que a natureza nos tem mantido a uma grande distância de todos os seus segredos, e que apenas nos tem concedido o conhecimento de algumas qualidades superficiais dos objetos, enquanto ela nos esconde os poderes e princípios dos quais depende inteiramente a ação desses objetos. Nossos sentidos nos informam a cor, o peso e a consistência do pão, porém, nem os sentidos e nem a razão jamais podem informar nos sobre as qualidades que o fazem apropriado para alimentar e sustentar o corpo humano. A visão e o tato nos dão uma ideia do movimento real dos corpos, porém não podemos formar o mais remoto conceito da maravilhosa força ou poder que é capaz de manter indefinidamente em movimento um corpo, e que este nunca a perde, mas a comunica a outros. Mas, não obstante esta ignorância dos poderes[1] e princípios naturais, sempre presumimos quando vemos qualidades sensíveis análogas que elas têm poderes ocultos análogos, e esperamos que a estas seguirão efeitos semelhantes àqueles que já temos experimentado. Se nos fosse mostrado um corpo de cor e consistência análogas às do pão que havíamos comido anteriormente, não teríamos nenhum escrúpulo em repetir o experimento, prevendo com certeza que ele nos alimentará e nos sustentará de maneira semelhante. Ora, eis um processo do espírito e do pensamento cujo fundamento gostaria de conhecer. Toda a gente está de acordo que não se conhece nenhuma conexão entre as qualidades sensíveis e os poderes ocultos e, por conseguinte, o espírito não é levado a tirar uma conclusão sobre a conjunção constante e regular daquelas, tendo por base algo que possa conhecer na natureza destas. Pode-se admitir que a experiência passada dá somente uma informação direta e segura sobre determinados objetos em determinados períodos do tempo, dos quais ela teve conhecimento. Todavia, é esta a principal questão sobre a qual gostaria de insistir: porque esta experiência tem de ser estendida a tempos futuros e a outros objetos que, pelo que sabemos, unicamente são similares em aparência. O pão que outrora comi alimentou-me, isto é, um corpo dotado de tais qualidades sensíveis estava, a este tempo, dotado de tais poderes desconhecidos. Mas, segue-se daí que este outro pão deve também alimentar-me como ocorreu na outra vez, e que qualidades sensíveis semelhantes devem sempre ser acompanhadas de poderes ocultos semelhantes? A consequência não parece de nenhum modo necessária. Pelo menos, deve-se reconhecer que aqui o espírito tira uma consequência; que deu um certo passo; que há um processo do pensamento e uma inferência que necessitam de uma explicação. Estas duas proposições não são de nenhum modo iguais: encontrei que tal objeto sempre tem sido acompanhado por tal efeito, e prevejo que outros objetos que são em aparência semelhantes, serão acompanhados por efeitos semelhantes. Concederei, se vós permitis, que uma das proposições pode ser legitimamente inferida da outra: sei, de fato, que ela sempre se infere. Mas, se vós insistis em que a inferência é feita por uma cadeia de raciocínios, desejaria que vós construísseis este raciocínio. A conexão entre estas proposições não é intuitiva. Requer-se um termo médio que permita ao espírito extrair tal inferência, se é que, verdadeiramente, é extraída mediante raciocínio e argumentos. Qual é o termo médio? Devo confessar, é algo que ultrapassa minha compreensão, e cabe mostrá-lo por aqueles que afirmam que realmente existe e que é a origem de todas as nossas conclusões acerca dos fatos.
     Certamente, este argumento negativo pode tornar-se inteiramente convincente no decorrer do tempo, se muitos filósofos hábeis e perspicazes dirigirem suas investigações neste sentido, e se ninguém for capaz de descobrir alguma proposição conectiva ou algum degrau intermediário que apoie o entendimento nesta conclusão. Mas, como se trata de dificuldade recente, os leitores não devem confiar em demasia na sua própria sagacidade a ponto de concluir que um argumento realmente não existe porque escapa à investigação. Por esta razão, é preciso empreender pesquisa mais difícil, e, por enumeração de todos os ramos de conhecimento humano, tratar de mostrar que nenhum deles pode proporcionar semelhante argumento.
     Todos os raciocínios dividem-se em duas classes: raciocínios demonstrativos, que se referem às relações de ideias, e os raciocínios morais (ou prováveis) que se referem às questões de fato e de existência. Parece evidente que os últimos não englobam argumentos demonstrativos, pois não é contraditório o fato de que o curso da natureza pode modificar-se e que um objeto, aparentemente semelhante aos já observados, possa ser acompanhado de efeitos diferentes ou contrários. Não posso conceber clara e distintamente que um corpo que tomba das nuvens — semelhante em todos aspectos a o da neve — tenha, todavia, sabor de sal e queime como o fogo? Há proposição mais inteligível do que esta: todas as árvores florescerão em dezembro-janeiro e definharão em maio-junho? Portanto, considera-se inteligível toda proposição concebida distintamente e sem contradição e, por conseguinte, jamais sua falsidade é mostrada por argumento demonstrativo ou raciocínio abstrato a priori.
     Entretanto, se os argumentos nos levarem a confiar na experiência e fazê-la padrão de nosso juízo futuro, deveremos considerá-los apenas prováveis, isto é, referentes às questões de fato e de existência real, de acordo com a divisão acima mencionada. Mas, se nossa explicação desta classe de raciocínio é considerada sólida e satisfatória, verificaremos que de fato não existe tal tipo de argumento. Temos dito que todos os argumentos referentes à existência se fundam na relação de causa e efeito; que nosso conhecimento daquela relação provém inteiramente da experiência; e que todas as nossas conclusões experimentais decorrem da suposição que o futuro estará em conformidade com o passado. Portanto, tentar provar a última conjetura, por argumentos prováveis, por argumentos referentes à existência, consiste, certamente, em girar num círculo e dar por admitido o que precisamente se problematiza.
     Em verdade, todos os argumentos derivados da experiência se fundam na semelhança que constatamos entre objetos naturais e que nos induz a esperar efeitos semelhantes àqueles que temos visto resultar de tais objetos. Apesar de somente um bobo ou um louco — e ninguém mais! — pretender discutir a autoridade da experiência ou rejeitar este grande guia da vida humana, é lícito, contudo, admitir que um filósofo tenha ao menos a curiosidade de examinar qual é o princípio da natureza humana que dota a experiência de tão forte autoridade e leva-nos a aproveitar da semelhança estabelecida pela natureza entre diversos objetos. De causas que parecem semelhantes esperamos efeitos semelhantes. E este o resultado de todas as nossas conclusões experimentais. Ora, parece evidente que se esta conclusão fosse reproduzida pela razão, ela seria tão perfeita desde o início e a partir de um único caso, do que após uma longa série de experimentos. Mas as coisas ocorrem de modo bem diverso. Não há nada mais semelhante do que os ovos; todavia, ninguém espera, por causa desta aparente semelhança, idêntico gosto e sabor em todos os ovos. E é somente depois de uma longa série de experimentos uniformes, sobre qualquer gênero dado, que nos tornamos confiantes e seguros em re lação a um evento particular. Ora, onde está o processo de raciocínio que, de um único caso, tira uma conclusão tão diferente daquele que infere de cem casos que não são de modo algum diferentes do primeiro? Proponho este problema visando, ao mesmo tempo, obter informação e suscitar dificuldades. Não consigo localizar, não consigo imaginar tal raciocínio. Mas mantenho meu espírito sempre aberto à instrução, se alguém quiser dignar-se a me conceder.
     Poder-se-ia dizer que, de certo número de experimentos uniformes, inferimos uma conexão entre as qualidades sensíveis e os poderes ocultos; o que, devo confessar, parece enunciar a mesma dificuldade, em termos diferentes. A questão reaparece: sobre qual processo de argumentação se funda esta inferência? Onde está o meio-termo, as ideias intermediárias que unem proposições tão distantes entre si? Tem-se admitido que a cor, a consistência e outras qualidades sensíveis do pão não parecem ter em si mesmas nenhuma conexão com os poderes ocultos da nutrição e da subsistência.
     De outro modo, poderíamos inferir esses poderes ocultos a partir da primeira aparição destas qualidades sensíveis e sem o auxílio da experiência, contrariamente à opinião de todos os filósofos e contrariamente à evidência do fato. Tal é, pois, nosso estado natural de ignorância em relação aos poderes e à influência de todos os objetos. Como isto é remediado pela experiência? Ela apenas nos mostra certo número de efeitos uniformes resultantes de certos objetos e nos ensina que esses objetos particulares, nessa época determinada, estavam dotados de tais poderes e de tais forças. Quando aparece um novo objeto dotado de qualidades sensíveis semelhantes, esperamos poderes e forças semelhantes e esperamos também um efeito análogo. De um corpo igual ao pão em cor e consistência, esperamos alimentação e subsistência análogas. Eis, portanto, uma etapa ou processo do espírito que necessita de uma explicação. Quando uma pessoa afirma: tenho encontrado em todos os casos anteriores tais qualidades sensíveis conjugadas com tais poderes ocultos; e quando assevera: qualidades sensíveis semelhantes estarão sempre conjugadas com poderes ocultos semelhantes, não pode ser acusada de tautologia, pois estas proposições diferem em todos os aspectos. Dizeis que uma proposição é inferida da outra, porém deveis admitir que a inferência não é intuitiva, nem tampouco demonstrativa. De que natureza é ela então? Responder que deriva da experiência significa cometer uma petição de princípio. Porque todas as inferências provenientes da experiência supõem, como seu fundamento, que o futuro se assemelhará ao passado, que poderes semelhantes estarão conjugados com qualidades sensíveis semelhantes. Se subsistir qualquer dúvida de que o curso da natureza pode mudar e que o passado não pode servir de modelo ao futuro, toda experiência se tornaria inútil e não geraria nenhuma inferência ou conclusão. E inconcebível, portanto, que nenhum argumento tirado da experiência possa provar a semelhança do passado ao futuro, já que estes argumentos se baseiam na suposição daquela semelhança.[2] Concordais que o curso das coisas tenha sido sempre tão regular. Apenas esta constatação, sem novo argumento ou inferência, não é prova suficiente de que no futuro continuará assim. Em vão pretendereis ter conhecido a natureza dos corpos a partir de vossa experiência passada. Sua natureza oculta e, por conseguinte, todos os seus efeitos e toda sua ação podem mudar, sem que haja qualquer modificação em suas qualidades sensíveis. Certamente, isto ocorre algumas vezes, e com relação a alguns objetos. Por que não poderia ocorrer sempre, e com relação a todos os objetos? Qual lógica, qual processo de raciocínio vos assegura contra esta conjetura? Minha prática, dizeis, refuta minhas dúvidas. Mas, neste caso, confundis o significado de minha questão. Como pessoa que age, estou muito satisfeito a este respeito; mas, como filósofo dotado de alguma curiosidade — não direi ceticismo — quero saber o fundamento desta inferência. Nenhuma leitura, nenhuma investigação, tem sido todavia capaz de remover minha dificuldade, ou de dar-me satisfação num assunto de tanta importância. Posso fazer algo melhor do que propor a dificuldade ao público, apesar de ter poucas esperanças de obter uma solução? Deste modo, pelo menos, teremos consciência de nossa ignorância, se não ampliarmos nosso conhecimento.
     Reconheço que, quando alguém conclui que um argumento não existe porque escapou de sua investigação, é acusado de imperdoável arrogância. Reconheço também que, apesar de várias gerações de sábios se terem dedicado infrutiferamente pesquisando um objeto, seria, talvez, precipitado concluir afirmando que ele ultrapassa toda compreensão humana. Mesmo se examinássemos todas as fontes de nosso conhecimento e concluíssemos que são inadequadas para um tal assunto, pode ainda perdurar a suspeita de que a enumeração não é completa ou o exame não é exato. Mas, em relação ao tema que nos ocupa, há algumas reflexões que parecem remover toda acusação de arrogância ou a suspeição de um equívoco.
     Certamente, os camponeses mais ignorantes e estúpidos — até os bebês e as bestas irracionais — se aperfeiçoam pela experiência e adquirem conhecimento das qualidades dos objetos naturais, observando os efeitos que resultam deles. Quando uma criança sentiu a sensação da dor ao tocar a chama de uma vela, terá cuidado de não pôr mais sua mão perto de outra vela, pois ela esperará um efeito semelhante de uma causa que é semelhante em suas qualidades e aparências sensíveis. Se afirmais, contudo, que o entendimento da criança chega a esta conclusão por algum processo de argumento ou de raciocínio, posso legitimamente pedir-vos que se mostre este argumento, e não tendes qualquer pretexto para recusar um pedido tão justo. Não podeis dizer que o argumento é abstruso e que possivelmente escapa à investigação, desde que confessais que ele é evidente até mesmo para a capacidade de um simples bebê. Se hesitais, contudo, por um momento, ou se, depois da reflexão, produzis um argumento complicado ou profundo, de certa maneira abandonais o problema e confessais que não é o raciocínio que nos induz a supor que o passado se assemelha ao futuro e a esperar efeitos semelhantes de causas que são, aparentemente, semelhantes. Esta é a proposição que pretendia reforçar na presente seção. Se estou certo, não pretendo ter feito qualquer descoberta considerável. Se estou errado, devo reconhecer para mim mesmo que sou realmente um estudante muito atrasado, desde que não posso descobrir um argumento que, parece-me, era perfeitamente conhecido muito antes de eu ter saído de meu berço.

continua página 31...
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Ensaio sobre o entendimento humano: Seção IV (2)
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Notas:
[1] O termo “poder” é usado aqui em sentido vago e popular. Sua explicação mais rigorosa acrescenta evidência a estes argumentos. Veja-se seção VII (Hume)
[2] A inferência causal fundamenta-se na semelhança entre o passado e o futuro. De que modo esta semelhança pode ser provada? Primeiro, não pode ser provada pelo “raciocínio demonstrativo”, pois, escreve Hume, é “evidente que Adão. com toda a sua ciência, jamais seria capaz de demonstrar que o curso da natureza deve permanecer uniformemente o mesmo, e que o futuro deve conformar-se ao passado. O que é possível nunca pode ser demonstrado como falso; e é possível que o curso da natureza possa mudar, desde que podemos conceber tal mudança” (Abstract, p. 15). Segundo, não pode igualmente ser justificada pelo “raciocínio provável”, desde que ‘ele [Adão] não poderia provar por nenhum raciocínio provável que o futuro deve conformar-se ao passado. Todos os argumentos prováveis estão fundados na suposição de que ha conformidade entre o passado e o futuro, portanto, [Adão] jamais pode prová-lo” (Idem, p. 15). A inferência causal não pode ser teoricamente justificada, pois tanto o raciocínio demonstrativo como o provável não provaram a semelhança entre o passado e o futuro. Hume está, por conseguinte, preparado para concluir que é “unicamente o hábito e não a razão que nos determina a fazer [da experiência] a norma de nossos juízos futuros’ (Abstract, pp. 21-22). [N. do T.]

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