sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Marcel Proust - Sodoma e Gomorra (Cap I - E esta censura era particularmente estúpida)

em busca do tempo perdido

volume IV
Sodoma e Gomorra

Capítulo Primeiro
Segunda Parte

continuando...

     E esta censura era particularmente estúpida, pois as palavras francesas, de que somos tão orgulhosos de pronunciar corretamente, não passam elas mesmas de "erros" cometidos por bocas gaulesas que pronunciavam arrevesadamente o latim ou o saxão, não passando a nossa língua da pronúncia defeituosa de algumas outras. O gênio linguístico é o estado vivo, o passado e o futuro do francês, eis o que deveria interessar nos erros de Françoise. A "cerzidora" em vez de "cerzideira" não seria tão curioso como aqueles animais sobreviventes de épocas remotas, como baleia ou a girafa, e que nos mostram os estágios que a vida animal atravessou? 

- E acrescentei - Já que você, depois de tantos anos, ainda não aprendeu, quer dizer que jamais aprenderá. Console-se, pois isto a impede de ser uma excelente pessoa e de preparar às maravilhas: bifes; geleia e mais uma infinidade de coisas. O chapéu que você acha simpático é copiado de um chapéu da princesa de Guermantes que custou quinhentos francos. Aliás, pretendo em breve oferecer um outro ainda mais belo à Srta. Albertine.

     Eu sabia que o que mais podia aborrecer a Françoise, que eu gastasse dinheiro com pessoas de quem ela não gostava. Respondeu-me com algumas palavras que uma brusca sufocação tornou inteligíveis. Quando mais tarde soube que ela sofria do coração, quanto remorso não senti por jamais me recusar ao prazer feroz e estéril de retrucar desse modo às suas palavras! Ademais, Françoise detestava Albertine porque esta, sendo pobre, não poderia aumentar o que Françoise chamava minhas superioridades. Sorria benévola cada vez que eu era convidado pela Sra. de Villeparisis. Em troca, indignava-se por Albertine não praticar a reciprocidade. Eu fora obrigado a inventar supostos presentes dados por esta e em cuja existência Françoise jamais dera o menor sinal de fé. Essa falta de reciprocidade a chocava sobretudo em matéria alimentar. Que Albertine aceitasse jantares de mamãe, se não éramos convidados para ir à casa da Sra. Bontemps (a qual, no entanto, passava a metade do tempo fora de Paris, já que o marido aceitava "postos" como outrora, quando estava farto do ministério), isto lhe parecia da parte de minha amiga uma indelicadeza que ela indiretamente punia, recitando esta quadrinha corrente em Combray: 

Mangeons mon pain, - Je le veux bien. - Mangeons le tien. - Je n'ai plus faim. ["Comamos o meu pão, / Com todo o prazer. /Comamos o teu. /- Já não tenho fome." (N. do T)]  

     Fingi que estava escrevendo. 

- A quem escreve? - perguntou Albertine entrando. 
- A uma bela amiga minha, Gilberte Swann. Não a conhece? 
- Não.  

     Desisti de fazer a Albertine algumas perguntas sobre a sua noitada, sentia que lhe faria censuras e que não teríamos tempo, em vista do adiantado da hora, de nos reconciliarmos o bastante para passar aos beijos e carícias. Assim, foi com eles que eu quis começar desde o primeiro minuto. Além disso, se estava mais calmo, nem por essa razão me sentia feliz. A perda de toda bússola, de toda orientação, que caracteriza a espera, subsiste mesmo após a vinda da pessoa esperada e, substituindo em nós a calma em que imaginávamos a sua chegada com tanto prazer, impede-nos de sentir o menor prazer que seja. Ali estava Albertine; meus nervos destroçados, continuando com sua agitação, esperavam-na ainda. 

- Posso dar-lhe um bom beijo, Albertine? 
- Tantos quantos quiser - disse ela com toda a sua bondade. Eu nunca a vira tão bonita. 
- Mais um ainda? Mas você sabe que isto me dá um prazer imenso. 
- E a mim, ainda mil vezes mais - respondeu ela. - Oh, que linda pasta de papéis você tem aí! 
- Leve-a, dou-lhe como lembrança. 
- Você é tão gentil...

     Ficaríamos para sempre curados do romantismo, se, para se pensar naquela a qual amamos, procurássemos ser aquele que seremos quando não mais amamos. O porta-papéis, a bolinha de ágata de Gilberte, tudo isso recebeu outrora a sua importância apenas de um estado puramente interior, visto; agora eram para mim um porta-papéis e uma bolinha quaisquer.
     Perguntei a Albertine se não queria beber. 

- Parece-me que laranjas e água - disse-me ela - Seria perfeito.  

     Assim, pude destacar com seus beijos aquele frescor que me parecia superior a eles, na casa da princesa de Guermantes. E a laranja espremida na água parecia entregar, à medida que ia bebendo, a vida secreta de seu amadurecimento, sua feliz mistura contra certos estados desse corpo humano que pertence a um reino diverso, sua impotência em fazê-lo viver, mas em compensação os jogos irrigadores pelos quais lhe podia ser favorável, sem mistérios revelados; desfruta à minha sensação, mas de modo algum à minha inteligência.
     Depois que Albertine saiu, lembrei-me que prometera à Swann escrever à Gilberte e achei mais gentil fazê-lo imediatamente. Foi sem emoção, e como que escrevendo a última linha de um tedioso dever de aulas; que tracei sobre o envelope o nome de Gilberte Swann com que outrora cobrira meus cadernos para dar-me a ilusão de que me correspondia com ela. E eu, se era eu quem antigamente escrevia esse nome, agora a tarefa estava entregue, pelo hábito, a um desses numerosos secretários de que ela se utiliza. Aquele podia, com tanto mais calma, escrever o nome de Gilberte visto que, posto em mim recentemente pelo hábito, recém-colocado a serviço, não conhecera Gilberte e sabia apenas, sem emprestar realidade nenhuma a essas palavras, porque me ouvira falar delas, que se tratava de uma jovem da qual estivera enamorado. Não podia acusá-lo de secura. O indivíduo que eu era agora dela era a "testemunha" mais bem escolhida para compreender o que ela própria havia sido. O porta-papéis e a bolinha de ágata tinham-se tornam, simplesmente para mim, relativamente a Albertine, o que haviam sido à Gilberte, o que teriam sido para toda criatura que não tivesse lançada sobre eles o reflexo de uma chama interior. Mas agora, havia em mim uma nova perturbação, que alterava, por sua vez, o verdadeiro poder das coisas e das palavras. E, como Albertine me dissesse, ainda para me agradecer: 

- Gosto tanto de turquesas! - respondi-lhe: 
- Não deixe morrer estas que estou confiando-lhe-, assim como às pedras, o futuro da nossa amizade, que no entanto, não era mais capaz de inspirar a Albertine um sentimento do quanto fora de conservar aquele que me unira outrora a Gilberte.

     Aconteceu por essa época um fenômeno que só merece ser mencionado porque se encontra em todos os períodos importantes da História. No momento mesmo em que eu escrevia à Gilberte, o Sr. de Guermantes, mal tendo regressado do baile à fantasia, ainda adornado com seu capacete, pensava que no dia seguinte se veria forçado a estar oficialmente de luto, e decidiu antecipar em oito dias a estação de águas que deveria fazer. Quando voltou, três semanas depois (e para adiantar, visto que apenas acabo de escrever a minha carta à Gilberte), os amigos do duque que o tinham visto, tão indiferente a princípio, tornar-se um antidreyfusista furioso, ficaram mudos de surpresa ao ouvi-lo (como se a estação de águas não tivesse agido unicamente na bexiga) responder-lhes: 

- Pois bem, o processo será revisado e ele vai ser absolvido; não se pode condenar um homem contra o qual nada existe. Já viram alguma vez um gagá como Froberville? Um oficial preparando os franceses para a matança (quer dizer, para a guerra)! Época estranha! -

     Ora, nesse intervalo o duque de Guermantes conhecera na estação de águas três senhoras encantadoras (uma princesa italiana e suas duas cunhadas). Ouvindo-as dizer algumas palavras sobre os livros que liam, sobre uma peça que se representava no Cassino, o duque de súbito compreendera que tinha a haver-se com mulheres de intelectualidade superior e com quem, como dizia, não dispunha de forças. Nem por isso ficara menos contente de ser convidado pela princesa para jogar bridge. Porém mal chegara à casa desta, como lhe dissesse, no fervor de seu antidreyfusismo sem matizes: 

- Pois bem, não nos falam mais da revisão do famoso Caso Dreyfus -, grande fora a sua estupefação ao ouvir a princesa e as cunhadas afirmarem: 
- Nunca esteve tão próxima a revisão. É impossível manter na prisão quem nada fez. 
- Há?

     Há balbuciara a princípio o duque, como diante da descoberta de uma alcunha esquisita, que fosse usada numa casa para ridicularizar alguém que até então julgasse inteligente. Mas ao cabo de alguns dias, como por covardia e espírito de imitação a gente grita: 

- Olá, Jojotte! - sem saber por quê, a um grande artista a quem ouvimos chamar desse modo naquela casa, o duque, ainda bem constrangido pelo novo costume, entretanto dizia: 
- De fato, se não há nada contra ele. -

     As três damas encantadoras achavam que ele não se acostumava muito rápido e o maltratavam um pouco. 

- Mas no fundo, nenhuma pessoa um pouco inteligente poderia acreditar que houvesse algo contra ele. 

     De cada vez que surgia um fato "esmagador" contra Dreyfus, e o duque, julgando que aquilo iria convertê-las, vinha anunciá-lo, as três damas encantadoras riam muito e não tinham problemas, com uma grande finura de dialética, em mostrar-lhe que o argumento era sem valor e inteiramente ridículo. O duque voltara a Paris como um dreyfusista enraivecido. E com certeza nós não pretendemos que as três damas encantadoras fossem naquele caso mensageiras da verdade. Mas é de notar que a cada dez anos, quando se deixou um homem cheio de uma verdadeira convicção, ocorre que sendo inteligente, uma solitária dama encantadora entre no seu caminho e que ao fim de alguns meses o conduza à opiniões contrárias. Nesse ponto há muitos países que se comportam como o homem; muitos países aos quais deixaram cheios de ódio contra um povo e passados seis meses, mudaram de sentimento e desfizeram suas alianças.
     Durante algum tempo não vi mais Albertine, mas continuei, a visitar à Sra. de Guermantes, que já não falava à minha imaginação, ao palácio das fadas e suas residências, tão inseparáveis delas como, do molusco que fabricou e nela se abriga, a valva de nácar ou de esmalte, ou o torreão guarnecido de ameias de sua concha. Eu não saberia classificar melhor; sendo a dificuldade do problema tão insignificante, como impossível não de resolver, mas também de colocar. Antes da dama, era preciso abordar o palácio das fadas. Ora, uma recebia todos os dias após o almoço de verão; mesmo antes de chegar a sua casa, era necessário baixar a capota do fiacre, tão intenso era o sol, cuja lembrança, sem que eu me dê conta, ia entrar na impressão total. Pensava unicamente em ir ao CoaraIa-Reine; na verdade, antes de chegar à reunião de que um homem desconhece teria talvez zombado, eu sentia, como numa viagem pela Itália, um deslumbramento, um deleite de que o palácio não mais se separaria-: minha memória. Ademais, devido ao calor da estação e da hora, fechara hermeticamente os postigos nos vastos salões retangulares do andar térreo onde recebia. No princípio eu não reconhecia bem a dona de suas visitas, nem mesmo a duquesa de Guermantes que, com sua voz rouca, me pedia que fosse sentar-me junto dela, numa poltrona Beauvais que representava O Rapto de Europa. Depois distinguia, nas redes, as amplas tapeçarias do século XVIII que representavam barcos com mastros floridos de malvas-rosas, sob as quais eu me achava, não como no palácio do Sena, mas de Netuno, à margem do rio Oceano, onde a duquesa de Guermantes se transformava numa espécie de divindade da água. Não acabaria mais, se fosse enumerar todos os salões diferentes deste. Este exemplo basta para mostrar que eu incluía, nos juízos mundos de impressões poéticas que nunca levava em consideração no mundo de calcular o total, de modo que, quando avaliava os méritos de um salão, nunca era exato. Claro que essas causas de erro estavam longe de serem as únicas, mas não tenho mais tempo, antes de minha partida para Balbec (onde, para minha infelicidade, vou fazer uma segunda temporada que também seria a última), de iniciar pinturas da alta sociedade que terão seu lugar bem interiormente. Digamos apenas que àquela primeira falsa razão (minha relativamente frívola e que fazia supor o apego à sociedade) de minha carta à Gilberte e da volta aos Swann que ela parecia indicar, poderia Odette acrescentar tão inexatamente uma segunda. Não pensei até agora nos aspectos diferentes que a sociedade apresenta para uma mesma pessoa, senão supondo que o mundo não muda: se a mesma dama que não conhece ninguém vai à casa de todos, e uma outra, que desfrutava de uma posição dominante é desprezada, sentimo-nos tentados a ver nisso unicamente os altos e baixos puramente pessoais que, de quando em vez, trazem a uma mesma sociedade, em virtude de especulações na Bolsa, uma ruína estrondosa ou um enriquecimento inesperado. Ora, não é somente isso. Numa certa medida, as manifestações mundanas (muito inferiores aos movimentos artísticos, às crises políticas, à evolução que leva o gosto do público para o teatro de ideias, e depois para a pintura impressionista, para a música alemã e complexa, depois para a música russa e simples, ou para as ideias sociais, as ideias de justiça, a reação religiosa, o sobressalto patriótico, são entretanto o seu reflexo remoto, partido, incerto, perturbado e mutável. De forma que até mesmo os salões não podem ser pintados numa imobilidade estática que, até agora, pôde ser conveniente ao estudo dos caracteres, os quais deverão também ser como que apanhados em um movimento quase histórico. O gosto pelas novidades, que leva os homens da sociedade, mais ou menos sinceramente ávidos de se informarem sobre a evolução intelectual, a frequentarem os meios em que podem segui-la, fá-los habitualmente preferir alguma dona-de casa até então inédita, que representa ainda bem frescas as esperanças de mentalidade superior, tão murchas e ressequidas nas mulheres que exerceram durante muito tempo o poder mundano, daquelas de quem conhecem os pontos fracos e fortes e que já não lhes falam à imaginação. E assim, cada época acha-se personificada em mulheres novas, num novo grupo de mulheres que, estreitamente ligadas ao que aguça as curiosidades mais novas, parecem, na sua toilette, surgir apenas naquele momento, como uma espécie desconhecida provinda do último dilúvio, beldades irresistíveis de cada novo Consulado, de cada novo Diretório. Porém, muitas vezes as novas donas de casa são simplesmente, como certos estadistas em seu primeiro ministério mas que há quarenta anos batiam em todas as portas sem que lhes abrissem, mulheres que não eram conhecidas da sociedade, mas que nem por isso recebiam menos, há muito tempo, e à falta de melhor, alguns "raros íntimos". Decerto, nem sempre era este o caso e quando, com a prodigiosa florescência dos balés russos, sucessivamente reveladora de Bakst, de Nijinski, de Benois, do gênio de Stravinski, a princesa Yourbeletieff, jovem madrinha de todos esses novos grandes homens, apareceu trazendo na cabeça uma imensa e trêmula aigrette, desconhecida das parisienses e que elas todas procuraram imitar; pôde-se crer que essa maravilhosa criatura fora trazida pelos russos em suas bagagens inumeráveis e como se fosse o seu mais precioso tesouro; mas, quando a seu lado, em seu proscênio, virmos assistir todas as apresentações dos "Russos", como uma verdadeira fada, tão desconhecida da aristocracia, a Sra. Verdurin, poderemos responder às pessoas da sociedade, que facilmente supuseram a Sra. Verdurin fora desembarcada com a trupe de Diaghilev, que esta senhora já existira em espécie bem diversa e passara por avatares diferentes, de que aquele não disse senão pelo fato de ser o primeiro que afinal trazia, daí em diante assessorado e em marcha cada vez mais rápida, o sucesso durante tanto tempo infrutiferamente esperado pela Patroa. Quanto à Sra. Swann, de fato a atividade que ela representava não tinha o mesmo caráter coletivo. Seu mundo cristalizara-se em torno de um homem, um moribundo, que havia passado quase de súbito, na ocasião em que seu talento se esgotava, da obscuridade à glória retumbante. Era imensa a admiração pelas obras de Bergotte. Ele passava o dia inteiro sendo exibido na casa da Sra. Swann, que superava um homem influente: 

- Eu lhe falarei; e ele vai lhe escrever um artigo. -

     De resto, ele estava em condições de fazê-lo, e até mesmo de redigir um pequeno ato para a Sra. Swann. Mais perto da morte, andava pouco menos mal do que no tempo em que vinha saber notícias da minha avó. É que grandes sofrimentos físicos lhe haviam imposto um regime; a doença é o mais ouvido dos médicos: à bondade e ao saber fazem-se amenas promessas; ao sofrimento, obedece-se.
     Decerto o pequeno clã dos Verdurin possuía atualmente um ressentimento muito mais vivo que o salão ligeiramente nacionalista, ainda mais literário, e sobretudo bergótico, da Sra. Swann. O pequeno clã era de fato o centro ativo de uma longa crise política que chegara a seu máximo de intensidade: o dreyfusismo. Mas as pessoas da sociedade eram na maioria de tal modo anti revisionistas, que um salão dreyfusista parecia algo tão impossível como, em outra época, um salão da Comuna. A princesa Caprarola, que travara conhecimento com a Sra. Verdurin durante uma grande exposição que esta organizara, bem que lhe fora fazer uma longa visita na esperança de desencaminhar alguns elementos interessantes do pequeno clã e agregá-los a seu próprio salão, visita no decurso da qual a princesa (representando em miniatura as duquesas de Guermantes) tomavam em contrapartida das opiniões recebidas, declarara idiotas as pessoas do mundo, o que a Sra. Verdurin achara de uma grande coragem. Mas essa coragem não iria mais tarde ao ponto de ousar, sob o fogo dos olhares das damas nacionalistas, saudar a Sra. Verdurin nas corridas de Balbec. Quanto à Sra. Swann, ao contrário, os antidreyfusistas lhe agradeciam o ser "bem pensante", o que lhe atribuía um duplo mérito, por ser casada com um judeu. Não obstante, as pessoas que jamais tinham ido à sua casa imaginavam que ela recebia somente alguns israelitas obscuros e alunos de Bergotte. Assim, classificam-se mulheres muito mais qualificadas que a Sra. Swann no último degrau da escala social, ou por causa de suas origens, ou porque não gostam de jantares na cidade e dos saraus onde nunca são vistas, o que é falsamente atribuído ao fato de que não teriam sido convidadas, seja porque elas nunca falam de suas amizades mundanas, mas apenas de arte e literatura, seja porque as pessoas escondem o fato de que vão à casa delas, ou então ocultam que as recebem para não se mostrarem impolidas com os outros; enfim, por mil razões que acabam por fazer de tal ou qual dentre elas, aos olhos de alguns, a mulher que não se recebe. Assim ocorria com Odette. A Sra. d'Épinoy, por ocasião de uma subscrição que desejava fazer para a Patrie française, tendo de ir visitá-la, como teria entrado na casa de sua vendedora, aliás convencida de que só encontraria rostos, nem sequer desprezíveis, mas desconhecidos, estacou diante da porta que se abrira não para o salão que imaginava, mas para uma sala mágica onde, como que devido a uma mudança à vista numa féerie, reconheceu nas figurantes sedutoras, meio estendidas nos divãs, sentadas em poltronas, chamando a dona da casa pelo seu nome de batismo, as altezas e duquesas que ela própria, princesa d'Épinoy, tinha muita dificuldade em atrair à sua própria casa, e às quais naquele momento, sob os olhos benévolos de Odette, o marquês du Lau, o conde Louis de Turenne, o príncipe Borghese e o duque d'Estrées, trazendo laranjada e bolinhos, serviam de criados e escanções. Como a princesa d'Épinoy colocava, sem se aperceber de tal, a qualidade mundana no interior das criaturas, viu-se obrigada a desencarnar a Sra. Swann e a reencarná-la em uma mulher elegante. A ignorância da vida real que levam as mulheres que não a expõem nos jornais estende assim sobre certas situações (contribuindo desse modo para diversificar os salões) um véu de mistério. Quanto a Odette, no começo, alguns homens da mais alta sociedade, curiosos de conhecer Bergotte, tinham estado em sua casa para um jantar íntimo. Ela tivera o tato, recentemente adquirido, de não divulgá-lo; ali eles encontravam talvez recordação do "pequeno núcleo", do qual Odette, desde o cisma, conservara as tradições a mesa posta, etc.. Odette levava-os com Bergotte, a quem isto aliás acabava de matar, às estreias interessantes. Eles falaram dela a algumas mulheres do seu mundo capazes de se interessar com tanta novidade. Estavam elas persuadidas de que Odette, íntima de Bergotte, mais ou menos havia colaborado em suas obras, e a julgavam mil vezes mais inteligente que as mulheres mais notáveis do Faubourg, pelo mesmo motivo porque punham toda sua esperança política em certos republicanos legítimos como o Sr. De o Sr. Deschanel, ao passo que viam a França no abismo se fosse chamado ao pessoal monarquista a quem não recebiam para jantar, aos Charlus aos Doudeauville, etc. Esta mudança da posição de Odette cumpriu-se a parte dela com uma discrição que a tornava cada vez mais rápida e secreta mas não a deixava absolutamente suspeitar do público, inclinado pelas crônicas do Gaulois o progresso ou a decadência de um salão de modo que um dia, no ensaio geral de uma peça de Bergotte dado numa das salas mais elegantes em benefício de uma obra de caridade, foi um verdadeiro lance teatral quando se viu, no camarote da frente, que era o outro, virem sentar-se, ao lado da Sra. Swann, a Sra. de Marsantes e que, pelo apagamento progressivo da duquesa de Guermantes (faltando honrarias e anulando-se ao menor esforço), estava se tornando a leoa, a rainha da época: a condessa Molé. "Quando nem adivinhávamos quando e havia começado a subir, disseram de Odette, no momento em que, se viu entrar a condessa Molé no camarote, "ela atingiu o último degrau." De maneira que a Sra. Swann podia crer que era por esnobismo que eu me reaproximara de sua filha. Odette, apesar de suas brilhantes amigas, nem por isso deixou de ouvir a peça com extrema atenção, como se estivesse ali apenas para escutá-la, da mesma maneira como antigamente atravessava o Bois por higiene e para fazer exercício. Homens que outrora eram menos solícitos em redor chegaram-se ao balcão incomodando a toda a gente, para suspenderem-se à sua mão a fim de se aproximar do círculo imponente que ela se cercava. Odette, com um sorriso antes de amabilidade que de ironia, respondia pacientemente às suas perguntas, afetando mais calma do que pensavam e que era talvez sincera, pois tal exibição não passava de exibição tardia de uma intimidade habitual e discretamente oculta. Por detrás daquelas três damas, atraindo todas as atenções, estava Bergotte cercado pelo príncipe de Agrigento, pelo conde Louis de Turenne e pelo marquillo de Bréauté. E é fácil compreender que, para os homens que eram recebidos em toda parte e que não mais podiam esperar uma superestimação senão da busca de originalidade, essa demonstração que pensavam dar de seus valor ao se deixarem atrair por uma dona-de-casa tida como grande intelectual e junto a quem esperavam encontrar todos os dramaturgos e romancistas em voga, era mais viva e excitante do que aqueles saraus em casa da princesa de Guermantes, que, sem nenhum programa ou atração nova sucediam-se há tantos anos, mais ou menos iguais ao que tão longamente descrevemos. Naquele grande mundo dos Guermantes, de onde a curiosidade se afastava um pouco, as novas modas intelectuais não se enganavam em divertimentos à sua imagem, como nessas pecinhas de Bergotte escritas para a Sra. Swann, como nas verdadeiras sessões de Salvação pública (se a alta sociedade pudesse interessar-se pelo Caso Dreyfus) onde, na casa da Sra. Verdurin, se reuniam Picquart, Clemenceau, Zola, Reinach e Labori. Gilberte também contribuía para a situação da mãe, pois um tio de Swann acabava de lhe deixar cerca de oitenta milhões, o que fazia com que o faubourg Saint-Germain começasse a pensar nela. O reverso da medalha era que Swann, de resto agonizante, professava opiniões dreyfusistas, porém isto não prejudicava a mulher e até lhe prestava serviço. Não a prejudicava porque diziam: 

- Ele é esclerosado, idiota, a gente não liga para ele, só a sua mulher é que importa, e ela é encantadora. -

     Porém até o dreyfusismo de Swann era útil à Odette. Entregue a si mesma, ela talvez fizesse às mulheres elegantes concessões que a perderiam. Ao passo que nas noites em que arrastava o marido para jantar no faubourg Saint-Germain, Swann, ficando ferozmente no seu canto, não se constrangia em dizer em voz alta, caso visse Odette fazer-se apresentar a alguma dama nacionalista: 

- Ora, Odette, você está louca. Peço-lhe que fique quieta. Seria uma baixeza de sua parte fazer-se apresentar a anti-semitas. Eu a proíbo. -

     As pessoas mundanas, a quem todos acorrem, não estão acostumadas a tanto orgulho nem a tamanha falta de educação. Pela primeira vez viam alguém que se julgava "mais" que elas. Comentavam-se esses resmungos de Swann, e os cartões dobrados choviam na casa de Odette. Quando esta estava de visita à casa da Sra. d'Arpajon, criava-se um vivo e simpático movimento de curiosidade. 

- Não se aborreceu por tê-la apresentado? - dizia a Sra. d'Arpajon. - Ela é muito gentil. Foi Marie de Marsantes quem me deu a conhecê-la. 
- Não, pelo contrário, parece que ela é o que há de mais inteligente; é encantadora. Eu até desejava encontrá-la. Diga-me onde ela mora. -

continua na página 63...
________________

Leia também:

Volume 1
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Sodoma e Gomorra (Cap I -  E esta censura era particularmente estúpida)
Volume 6
Volume 7

Nenhum comentário:

Postar um comentário