Hannah Arendt
Parte II
IMPERIALISMO
Se eu pudesse, anexaria os planetas.
Cecil Rhodes
4.2 - A Herança da Ilegalidade
O franco desrespeito à lei e às instituições legais e a justificação ideológica da ilegalidade foram muito
mais típicos do imperialismo continental do que do imperialismo ultramarino. Em parte, isso se deveu ao
fato de que o imperialismo continental não podia se valer daquela distância geográfica que separava a
ilegalidade de domínio de continentes estrangeiros da legalidade das instituições do país dominador.
Igualmente importante foi o fato de que os movimentos de unificação étnica originaram-se nos países que
jamais haviam conhecido governo constitucional, de modo que a concepção que os seus líderes tinham de
governo e de poder correspondia à visão de decisões arbitrárias vindas de cima. O desprezo pela lei foi a característica de todos esses movimentos. Embora encontrasse maior expressão
no pan-eslavismo do que no pangermanismo, refletia as verdadeiras condições do governo na Rússia e na Áustria-Hungria. Descrever esses dois despotismos, os únicos remanescentes na Europa quando da
eclosão da Primeira Guerra Mundial, só em termos de Estados multinacionais é apresentar apenas um
lado da questão. Eles se distinguiam dos outros Estados por governarem (e não apenas explorarem) os
povos por meio de uma burocracia; o papel dos partidos era insignificante, e os parlamentos careciam de
quaisquer funções legislativas; o Estado governava através de uma administração que aplicava decretos.
Para a Monarquia Dual, o Parlamento era pouco mais que uma associação de debates — e não muito
inteligente. Na Rússia como na Áustria de antes da Primeira Guerra, muito pouca oposição séria partia de
lá; era exercida por grupos externos que sabiam que, se ingressassem no sistema parlamentar, só podiam
perder a atenção e o apoio do povo.
Legalmente, governar por meio de burocracia é governar por decreto, o que significa que a força, que no
governo constitucional apenas faz cumprir a lei, se torna a fonte direta de toda legislação. Além disso, os
decretos têm um aspecto de anonimato (enquanto as leis podem ser atribuídas a determinados homens ou assembleias) e,
portanto, parecem emanar de algum supremo poder dominante que não precisa justificar-se. O desprezo
de Pobiedonostzev pelas "armadilhas" da lei era o eterno desprezo do administrador pela suposta falta de
liberdade do legislador, que é tolhido por princípios, e pela inação dos executantes da lei, que são
limitados pela necessidade de interpretá-los. O burocrata que, sendo mero administrador de decretos, tem
a ilusão de ação permanente sente-se tremendamente superior a esses homens "pouco práticos",
eternamente emaranhados em "sutileza legais" e, portanto, fora da esfera do poder, que, para ele, é a fonte
de tudo.
Para o administrador, a lei é impotente porque, por definição, ela é isolada de sua aplicabilidade. Por
outro lado, o decreto só existe e vale se e quando aplicado; a única justificação que o decreto requer é a
possibilidade de ser aplicado. É verdade que todos os governos usam decretos numa emergência, mas,
nesse caso, a própria emergência é uma nítida justificação e uma automática limitação. No governo
burocrático, os decretos surgem em sua pureza nua, como se já não fossem obras de homens poderosos,
mas encarnassem o próprio poder, sendo o administrador seu mero agente acidental. Não existem
princípios gerais por trás do decreto que a simples razão possa entender, mas apenas circunstâncias que
mudam constantemente e só um perito pode conhecer em detalhe. Os povos governados por decretos
nunca sabem o que os governa, dada não só a impossibilidade de compreender os decretos em si mesmos,
mas também a ignorância cuidadosamente organizada no que se refere a circunstâncias específicas e seu
significado prático, ignorância em que os administradores, na medida em que desempenham o papel de
fonte de poder, conservam os seus súditos. O imperialismo colonial, que também governava por decretos
e era às vezes definido como o regime des décrets,[62*] já era suficientemente perigoso; contudo, o próprio
fato de que os administradores de populações nativas eram importados e tidos como usurpadores diminuía
a sua influência sobre os povos dominados. Somente em países como a Rússia e a Áustria, onde os
governantes nativos e uma burocracia nativa eram aceitos como governo legítimo, pôde o regime de
decretos criar uma atmosfera de arbitrariedade e de segredo que ocultasse com sucesso o seu
oportunismo.
Era amplamente vantajoso o regime de decretos no domínio de territórios extensos com populações
heterogêneas e na política de opressão. Sua eficiência é superior simplesmente porque ele ignora todos os
estágios intermediários entre a fonte emissora e o meio de aplicação, e porque impede o raciocínio
político do povo graças à retenção de informações. Pode suplantar facilmente os costumes locais e não
precisa depender do processo necessariamente lento do desenvolvimento da lei. É muito útil na
implantação de uma administração centralizada porque suprime automaticamente toda a autonomia local.
Se o governo de boas leis já foi chamado de governo de sabedoria, o governo de decretos adequados pode ser
corretamente chamado de governo da esperteza. Porque levar em conta motivos e objetivos ulteriores é
esperteza, enquanto compreender e criar algo por dedução, a partir de princípios geralmente aceitos, é
sabedoria. O governo pela burocracia não deve ser tomado por mero produto dos serviços públicos, que
frequentemente acompanharam o declínio do Estado-nação, como foi, principalmente, o caso da França.
Lá, a administração sobreviveu a todas as mudanças do regime desde a Revolução, entrincheirou-se como
um parasita na estrutura política, desenvolveu seus próprios interesses de classe e tornou-se um
organismo inútil, cuja única finalidade parece ser dificultar e impedir o desenvolvimento econômico e
político normal. Há, naturalmente, muitas semelhanças superficiais entre os dois tipos de burocracia,
principalmente se se der muita atenção à notável similaridade psicológica, dos pequenos funcionários de
todos os países. Mas, se o povo francês cometeu o grave erro de aceitar a sua administração como um mal
necessário, jamais cometeu o erro fatal de permitir que ela governasse o país — embora o resultado tenha
sido que ninguém o governa. A atmosfera governamental francesa é uma atmosfera de ineficiência e
dificuldade; mas nunca criou uma aura de pseudomisticismo.
É esse pseudomisticismo que caracteriza a burocracia quando ela se torna forma de governo. Como o
povo que ela governa nunca sabe realmente por que algo acontece, e como não existe uma interpretação
racional das leis, subsiste apenas uma coisa que importa: o próprio evento brutal e nu. O que acontece
com o indivíduo fica, então, sujeito a uma interpretação de possibilidades infinitas, sem que a razão as
limite e sem que o conhecimento o estorve. Na estrutura dessa ilimitada especulação interpretativa, que
caracteriza toda a literatura russa pré-revolucionária, toda a textura da vida e do mundo assume um
misterioso segredo e uma misteriosa profundidade. Dessa aura emana um perigoso encanto devido à sua
riqueza aparentemente inesgotável; a interpretação do sofrimento tem um alcance muito maior que a
interpretação da ação, porque a primeira ocorre no interior da alma e liberta todas as possibilidades da
imaginação humana, enquanto a segunda é constantemente refreada, e possivelmente reduzida ao
absurdo, pelas consequências externas e pela experiência controlável.
É facilmente perceptível uma das diferenças mais berrantes entre o antigo governo pela burocracia e o
moderno governo totalitário: os governantes russos e austríacos de antes da Primeira Guerra Mundial
contentavam-se com a ociosa irradiação de poder e, satisfeitos em controlar seus destinos exteriores,
deixavam intacta toda a vida espiritual interior. A burocracia totalitária, conhecendo melhor o significado
do poder absoluto, interfere com igual brutalidade com o indivíduo e com a sua vida interior. Como
resultado dessa radical eficiência, extinguiu-se a espontaneidade dos povos sob o domínio totalitário
juntamente com as atividades sociais e políticas, de sorte que a simples esterilidade política, que existia
nas burocracias mais antigas, foi seguida de esterilidade total sob o regime totalitário.
A era em que nasceram os movimentos de unificação tinha, porém, a felicidade de ignorar essa
esterilização total. Pelo contrário, para o observador inocente (como o é a maioria dos
ocidentais), a chamada alma oriental parecia ser incomparavelmente mais rica, sua psicologia
mais profunda, sua literatura mais significativa do que as das "ocas" democracias ocidentais.
Essa aventura psicológica e literária nas "profundezas" do sofrimento não veio a ocorrer na Áustria-Hungria porque a sua literatura era principalmente em língua alemã e, por isso, era e
permaneceu parte integrante da literatura alemã em geral. Em lugar de inspirar imposturas
profundas, a burocracia austríaca levou o seu maior escritor moderno a ridicularizar e criticar
tudo aquilo. Franz Kafka conhecia muito bem a superstição de destino que toma conta daqueles
que vivem sob o domínio perpétuo do acaso, a inevitável tendência a encontrar um significado
sobre-humano especial em eventos cujo significado racional fica além do conhecimento e da
compreensão dos interessados. Tinha plena consciência da estranha atração dessa gente, das
estórias populares e melancólicas, lindamente tristes, que pareciam tão superiores à literatura
mais leve e mais alegre das pessoas mais felizes. Denunciou o orgulho da necessidade, até
mesmo da necessidade do mal, e a repugnante vaidade que identifica a desventura e o mal com
o destino. O que nos espanta é que ele tenha conseguido fazer isso num mundo em que os
elementos dessa atmosfera ainda não estavam inteiramente articulados; confiou no grande poder
de sua imaginação para tirar todas as conclusões necessárias e completar o que a realidade havia
deixado de focalizar inteiramente.[63]
Só o Império Russo da época oferecia um quadro completo do governo pela burocracia. As
condições caóticas do país — grande demais para ser governado, povoado por gente primitiva
sem experiência em organização política de qualquer espécie, que vegetava sob o
incompreensível domínio da burocracia czarista — criavam uma atmosfera de anarquia e de
acaso na qual os caprichos conflitantes dos pequenos funcionários e as ocorrências diárias da
incompetência e da incoerência inspiravam uma filosofia que via no Acidente o verdadeiro
Senhor da Vida, algo como a aparição da Divina Providência.[64] Para o pan-eslavista, que sempre
insistia nas condições muito mais "interessantes" da Rússia em contraste com o tédio vazio dos países civilizados, parecia que a Divindade havia
encontrado uma imanência íntima na alma do infeliz povo russo, sem igual em toda a terra.
Numa torrente infindável de variações literárias, os pan-eslavistas mostravam a profundeza e a
violência da Rússia em oposição à banalidade superficial do Ocidente, que não conhecia o
sofrimento nem o significado do sacrifício, e sob cuja superfície civilizada e estéril escondiam
se a frivolidade e a banalidade.[65] Grande parte da atração dos movimentos totalitários foi ainda
devida à vaga e amargurada atitude antiocidental que esteve em moda especialmente na
Alemanha antes de Hitler e na Áustria, mas que nos anos 20 havia tomado conta também da
intelligentsia europeia em geral. Até o momento em que tomaram o poder, os movimentos
totalitários puderam tirar proveito dessa paixão pelo "irracional"; e, durante os anos em que os
intelectuais russos exerceram considerável influência sobre o estado de espírito de uma Europa
inteiramente conturbada, verificou-se que essa atitude puramente literária era um forte fator
emocional na abertura do caminho para o totalitarismo.[66]
Em contraposição aos partidos, os movimentos unificadores não degeneraram simplesmente em
máquinas burocráticas,[67] mas viram nos regimes burocráticos possíveis modelos de organização.
O pan-eslavista Pogodin descreveu a máquina burocrática da Rússia czarista com admiração
compartilhada por quase todos: "Uma tremenda máquina, construída segundo os princípios mais
simples, guiada pela mão de um só homem (...) que a aciona a cada instante com um único
movimento, na direção e na velocidade que deseja. E não se trata de um movimento puramente
mecânico: a máquina é inteiramente ativada por emoções herdadas: subordinação, confiança
sem limites e devoção pelo czar, que é o seu Deus na terra. Quem ousaria atacar-nos, e quem
não poderíamos forçar à obediência?"[68]
Os pan-eslavistas faziam menos oposição ao Estado que os seus colegas pangermanistas. Por vezes, chegaram a tentar convencer o czar a encabeçar o movimento. A
razão dessa tendência era, naturalmente, que a posição do czar diferia consideravelmente
daquela de qualquer monarca europeu, sem a exceção do imperador da Áustria-Hungria, e que o
despotismo russo nunca chegou a ser um Estado racional no sentido ocidental, mas permaneceu
fluido, anárquico e desorganizado. Assim, o czarismo parecia às vezes, aos olhos dos pan-eslavistas, simbolizar uma gigantesca força motora com uma auréola de singular santidade.[69]
Em contraste com o pangermanismo, o pan-eslavismo não precisou inventar uma ideologia nova
que satisfizesse as necessidades da alma eslava e do seu movimento, mas pôde interpretar — e
transformar em mistério — o czarismo como a expressão antiocidental, anticonstitucional e
antiestatal do próprio movimento. Essa mistificação do poder anárquico inspirou ao pan-eslavismo suas mais perniciosas teorias a respeito da natureza transcendental e da inerente
virtude de todo poder. Concebia o poder como uma emanação divina, que permeava toda
atividade natural e humana. Não constituía mais um meio para a realização de alguma coisa:
simplesmente existia, os homens dedicavam-lhe seu serviço por amor a Deus, e qualquer lei que
viesse a regular ou reprimir sua "força terrível e sem limites" era evidentemente sacrílega. Em
sua completa arbitrariedade, o poder em si era considerado sagrado, fosse o poder do czar ou o
poder do sexo. As leis não somente eram incompatíveis com ele: eram pecado, "armadilhas"
feitas pelo homem para impedir a completa realização do "divino".[70] Fizesse o que fizesse, o
governo era sempre o "Supremo Poder em ação",[71] e bastava ao movimento pan-eslavo aderir a
esse poder e organizar-lhe o apoio popular para santificar todo o povo — uma horda colossal,
obediente ao desejo arbitrário de um só homem, que não era governada pela lei nem pelo interesse,
mas se mantinha coesa unicamente pela força do seu número e pela convicção de sua própria
santidade.
Desde o início, os movimentos carentes da "força das emoções herdadas" tiveram de
diferenciar-se do modelo já existente do despotismo russo em dois aspectos. Tiveram de fazer
propaganda, da qual a burocracia estabelecida mal precisava, e o fizeram com a introdução de
um elemento de violência;[72] e encontraram um substituto para a função das "emoções herdadas"
nas ideologias que os partidos continentais já haviam desenvolvido consideravelmente. Nesse
emprego de ideologia havia, porém, uma diferença: não apenas acrescentavam a justificação
ideológica à representação de interesses, mas usavam as ideologias como princípios
organizacionais. Se os partidos haviam sido entidades para a organização de interesses de
classes, os movimentos se tornaram corporificações de ideologias. Em outras palavras, os
movimentos estavam "carregados de filosofia" e proclamavam haver posto em marcha "a
individualização do universo moral dentro de um coletivo".[73]
A concretização das ideias, originalmente concebida na teoria hegeliana do Estado e da história,
foi desenvolvida por Marx, que deu ao proletariado o papel de protagonista da humanidade. Não
foi por acaso, naturalmente, que o pan-eslavismo russo foi tão influenciado por Hegel quanto o
bolchevismo foi influenciado por Marx. Contudo, nem Marx nem Hegel supunham que seres
humanos reais, e partidos ou países existentes, chegassem a encarnar as ideias; ambos
acreditavam no processo histórico, em que as ideias só se podiam concretizar num complicado
movimento dialético. Foi preciso que a vulgaridade da ralé descobrisse as extraordinárias
possibilidades dessa concretização para a organização das massas. Seus líderes começaram a
dizer ao populacho que cada um dos seus membros podia tornar-se essa sublime e
importantíssima encarnação viva do ideal, desde que fizesse parte do movimento. Assim,
ninguém mais precisaria ser leal ou generoso ou corajoso — pois automaticamente seria a
própria encarnação da Lealdade, Generosidade e Coragem. O pangermanismo demonstrou ser
superior em teoria organizacional, pois espertamente privava o indivíduo alemão de todas essas
extraordinárias qualidades se não aderisse ao movimento (prenunciando já o rancoroso desprezo
que o nazismo mais tarde expressou pelos membros não-partidários do povo alemão); enquanto
o pan-eslavismo, profundamente absorvido em suas infindáveis especulações a respeito da alma eslava, supunha que todo eslavo, consciente ou inconscientemente, possuía tal
alma, fosse ele devidamente organizado ou não. Foi necessária a desumanidade de Stálin para
introduzir no bolchevismo o mesmo desdém pelo povo russo que os nazistas demonstraram
pelos alemães.
Ê esse absolutismo dos movimentos que, mais que qualquer outro elemento, os separa das
estruturas e da parcialidade dos partidos, e serve para justificar sua pretensão de invalidar todas
as objeções da consciência individual. A realidade particular do indivíduo é posta contra o pano
de fundo da realidade espúria do geral e do universal, reduz-se a uma quantidade insignificante
ou desaparece na corrente do movimento dinâmico do próprio universal. Nessa corrente, a
diferença entre os fins e os meios evapora-se juntamente com a personalidade, e o resultado é a
monstruosa imoralidade da política ideológica. Tudo o que é pertinente é encarnado pelo
próprio movimento em ação; toda ideia e todo valor desaparecem na confusão da imanência
pseudocientífica e supersticiosa.
continua página 268...
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Parte II Imperialismo (4.2 - A Herança da Ilegalidade)
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[62*] Ver M. Larcher, Traité elémentaire de législation algérienne, vol. II, pp. 150-2: "O governo de todas as colônias
francesas é o regime des decrets".
[63] Ver especialmente a magnífica história de O castelo, que parece o estranho arremedo de uma obra da literatura russa. A família vive sob uma maldição, sendo seus membros tratados como leprosos até o ponto de se sentirem como tais, apenas porque uma de suas bonitas filhas teve uma vez a ousadia de rejeitar as propostas indecentes de uma autoridade importante. Os aldeões modestos, controlados no mínimo detalhe pela burocracia, e escravos até em pensamento dos caprichos de suas autoridades todo-poderosas, já tinham, havia muito, chegado à conclusão de que estar certos ou errados era uma questão de mero "destino" que não podiam alterar. Não é o remetente de uma carta obscena que é denunciado, como K. ingenuamente presume, e sim o destinatário, que se torna marcado e contaminado. E é a isso que os aldeões se referem quando falam do seu "destino".
[63] Ver especialmente a magnífica história de O castelo, que parece o estranho arremedo de uma obra da literatura russa. A família vive sob uma maldição, sendo seus membros tratados como leprosos até o ponto de se sentirem como tais, apenas porque uma de suas bonitas filhas teve uma vez a ousadia de rejeitar as propostas indecentes de uma autoridade importante. Os aldeões modestos, controlados no mínimo detalhe pela burocracia, e escravos até em pensamento dos caprichos de suas autoridades todo-poderosas, já tinham, havia muito, chegado à conclusão de que estar certos ou errados era uma questão de mero "destino" que não podiam alterar. Não é o remetente de uma carta obscena que é denunciado, como K. ingenuamente presume, e sim o destinatário, que se torna marcado e contaminado. E é a isso que os aldeões se referem quando falam do seu "destino".
[64] A deificação do acaso serve, naturalmente, como racionalização para o povo que não é o senhor do próprio destino.
Ver, por exemplo, Steinberg, op. cit.: "Pois o Acaso é que foi decisivo para a estrutura da história judaica. E o Acaso (...) na
língua da religião se chama Providência" (p. 34).
[65] Um escritor russo disse certa vez que o pan-eslavismo "engendra um ódio implacável ao Ocidente, um culto mórbido de
tudo o que é russo; (...) a salvação do universo ainda é possível, mas só pode vir por intermédio da Rússia. (...) Os pan
eslavistas, vendo inimigos de sua ideia por toda parte, perseguem todos aqueles que não concordam com eles (...)" (Victor
Bérard, Vempire russe et le tsarisme, 1905). Ver também N. V. Bubnoff, Kultur und Geschichte im russischen Denken der
Gegenwart [Cultura e história no pensamento russo contemporâneo], 1927, Osteuropa: Quellen und Studien, vol. 2, cap. V.
[66] Ehrenberg, op. cit., acentua isso no epílogo: as ideias de um Kireievski, Chomiakov, Leontiev, "podem ter morrido na
Rússia após a revolução. Mas agora se espalharam por toda a Europa e vivem hoje em Sofia, Constantinopla, Berlim, Paris,
Londres. Os russos, e precisamente os discípulos desses autores, (...) publicam livros e editam revistas que são lidos em todos
os países europeus; através deles, essas idéias — as ideias dos seus pais espirituais — são representadas. O espírito russo
tornou-se europeu" (p. 334).
[67] Para a burocratizaçâo das máquinas partidárias, Robert Michels, Political parties: a sociológica! study of the oligarchial
tendencies of modem democracy (tradução inglesa Glencoe, 1949, da edição alemã de 1911), ainda é a obra padrão.
[68] K. Staehlin, "Die Entstehung des Panslawismus" [O surgimento do pan-eslavismo], em Germano-SIavica, 1936, vol. 4.
[69] M. N. Katkov: "Todo poder deriva de Deus; o czar da Rússia, porém, recebeu uma importância especial que o
distingue de todo o resto dos governantes do mundo. (...) Ele é sucessor dos Césares do Império Oriental, (...)
fundadores do próprio credo da Fé de Cristo. Reside nisto o mistério da profunda diferença entre a Rússia e todas as
nações do mundo". Citado por Saio W. Baron, Modem nationalism andreligion, 1947.
[70] Pobiedonostzev em Reflections ofa Russian statesman, Londres, 1898: "O poder existe não apenas por si mas
pelo amor a Deus. Ê um serviço ao qual os homens se dedicam. Dai a força terrível e ilimitada do poder e o seu ônus
terrível e ilimitado" (p. 254). Ou: "A lei torna-se uma armadilha não apenas para o povo, mas (...) para as próprias
autoridades que cuidam da sua administração (...) se a cada passo o executor da lei encontra restrições na própria lei
(...) então toda a autoridade se perde na dúvida, é enfraquecida pela lei (...) e esmagada pelo medo da
responsabilidade" (p. 88).
[71] Segundo Katkov, "o governo na Rússia significa uma coisa totalmente diferente do que se entende por governo
em outros países. (...) Na Rússia o governo, em sua mais alta acepção, é o Supremo Poder em ação(...)" (Moissayel.
Olgin, The soul ofthe Russian Revolution, Nova York, 1917, p. 57). Numa forma mais racionalizada, encontramos a
teoria de que "as garantias legais eram necessárias em Estados baseados em conquista e ameaçados pelo conflito de
classes e raças; eram supérfluas na Rússia, onde havia harmonia de classes e amizade entre as raças" (Hans Kohn, op.
cit.).
Embora a idolatria do poder fosse menos acentuada no pangermanismo, houve sempre certa tendência antilegal,
evidente em Frymann, op. cit., que já em 1912 propôs a instituição daquela "custódia protetora" (Sicherheitshaft), isto
é, prisão sem qualquer razão legal, que os nazistas depois usaram para encher os campos de concentração.
[72] Há, naturalmente, uma patente semelhança entre a organização da ralé francesa durante o Caso Dreyfus (ver
parte I, cap. IV) e os grupos russos promotores âe pogroms, nos quais — como na "Centúria Negra" — "a escória
mais violenta e menos culta da velha Rússia se agrupava sob a égide da maioria do episcopado ortodoxo" (Fedotow,
op. cit.), enquanto a "Liga do Povo Russo", com os seus Esquadrões de Combate secretos, recrutava os seus adeptos
entre os agentes inferiores da polícia, pagos pelo governo e liderados por intelectuais. Ver E. Cherikover, "Novos
materiais acerca dos pogroms na Rússia no começo dos anos 80", em Historische Schriftn (Vilna), II, 463; e N. M.
Gelber, "Os pogroms russos no início dos anos 80 à luz da correspondência diplomática austríaca", ibid.
[73] Delos, op. cit.
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